segunda-feira, abril 10, 2006
Maria José Morgado: É "inaceitável" a proposta de criar um foro para titulares de cargos políticos
A crise aberta na Polícia Judiciária indica a necessidade de "definir um sistema de poder policial que funcione em articulação com o Ministério Público e com os tribunais", considera a procuradora-geral adjunta Maria José Morgado, em entrevista ao PÚBLICO /Rádio Renascença no programa "Diga Lá Excelência".
O foro especial para crimes praticados por titulares de cargos políticos, pode conduzir à situação de alguns países da América Latina em que há razões de Estado que travam e limitam as investigações criminais, diz ainda Maria José Morgado, salientando que, nesta proposta em estudo para incluír no Código Penal, vê "um sinal de protecção dos titulares de cargos políticos quando devíamos ser intransigentes".
PÚBLICO - Os acontecimentos recentes que levaram à demissão do director nacional na Polícia Judiciária indicam que há uma tentativa de instrumentalização política da PJ?
Maria José Morgado - Indicam coisas mais profundas... a necessidade de definir um sistema de poder policial que funcione em articulação com o Ministério Público e com os tribunais. Nesse campo, há conflitos de interesses e forças divergentes que podem causar problemas sérios, no futuro.
Como é que analisa as divergências existentes dentro no Governo quanto à tutela da PJ?
Não sei se há divergências porque elas não foram tornadas públicas. Gostaria de fazer um esforço para não nos perdermos aqui com a intriga política. O que pode existir, neste momento, é uma disputa entre estas duas concepções de sistema policial, uma autoritária e outra, liberal. Mas temos um problema muito mais complexo que é a partilha de competências entre as polícias, o que cria interesses conflituantes enormes e diários.
De que forma?
A PSP e a GNR desempenham funções simultaneamente de investigação criminal e de natureza administrativa. A PJ tem uma função exclusivamente de natureza processual, de prevenção e de repressão e de colaboração com os tribunais na recolha da prova. E isto cria situações muito complexas de se gerir ao nível do desempenho da função policial, da administração da justiça e do sistema de informações...
Que se poderiam resolver se houvesse uma tutela única das várias forças?
Não sei se a tutela única, neste momento, resolveria.
Portanto, está contra a eventualidade que foi noticiada da "transferência" da tutela dos serviços da Interpol e da Europol, da PJ para a Administração Interna?
Parece que isso foi desmentido.
Houve uma resolução decidindo que esses serviços permaneceriam sob a tutela da PJ. Está contra essa eventualidade?
A questão é que se vai tornar administrativa uma informação que tem vocação judicial e se destina à investigação criminal. E se estamos a torná-la administrativa, estamos a perder potencialidade no combate ao crime. Se aliarmos a isso o foro espacial para crimes praticados por titulares de cargos políticos, podemos encontrar-nos numa situação quase de países da América Latina em que há razões de Estado que travam e limitam as investigações criminais. E isso é inaceitável.
O responsável da Unidade de Missão encarregada da revisão dos códigos penal e de processo penal, o dr Rui Pereira, já veio explicar essa questão do foro especial.
É inaceitável. Os magistrados têm um foro especial. Os que cometem crimes são julgados num tribunal imediatamente superior à sua hierarquia. Quantos conhece que foram condenados?
Para o caso dos políticos, esse foro especial não tem justificação?
É inteiramente disparatado e desajustado, além de manifestar desconfiança em relação aos magistrados na primeira instância. É desajustado em relação à forma de funcionamento dos tribunais superiores e põe em causa a própria estrutura acusatória do processo. Vejo nesta proposta um sinal de protecção dos titulares de cargos políticos quando devíamos ser intransigentes. Veja-se o que se passou agora no caso de corrupção na Câmara de Marbella. Há um fosso entre a reacção do Governo espanhol e a reacção do Governo português quando foi o caso Felgueiras. Há um fosso.
Já se pronunciou contra a intenção do Governo de rever a lei orgânica da PJ e falou numa "falsa reestruturação". Porquê?
A última lei orgânica da PJ foi de Novembro de 2000 quando António Costa era ministro da Justiça. Não percebo esta ansiedade política de cada ministro de ter a sua lei orgânica. O que é preciso saber é de que forma a Polícia Judiciária vai cumprir as suas funções.
A reforma dos códigos penal e do processo penal em curso não será uma forma de algumas destas questões poderem ser resolvidas, inclusivamente as que têm sido mais debatidas pela opinião pública como, por exemplo, as escutas telefónicas?
As escutas são um assunto mediatizado e parece impossível uma abordagem crítica. Objectivamente, nós temos escutas só por ordem judicial. Segundo estatísticas do procurador geral distrital de Lisboa, para 280 mil inquéritos foram pedidas 368 escutas, no ano passado. Destas, mais de duzentas respeitavam a crimes de tráfico de droga. É um número que não causa inquietação. Para todo o país, segundo a estatística fornecida pelo procurador geral, haverá 13 mil escutas, não é um número preocupante.
O que pode ser preocupante é a falta de controlo das transcrições e destruição das escutas pelos magistrados...
Em relação aos processos normais, as exigências de formalidades das escutas são tais que só têm conduzido à impunidade e ao desmantelamento de toda a prova recolhida.
Preocupa-a então o pensamento do actual director nacional da PJ, de apreensão quanto às escutas?
O que me parece é que a preocupação dele é que não haja banalização da utilização deste meio de obtenção de prova.
Apesar das desilusões, da conflitualidade da sociedade actual, sente-se recompensada pela luta que travou, no passado, como militante da extrema-esquerda ou acha que não valeu a pena?
Não tenho nenhum sentimento de infelicidade. Todos os dias entro no tribunal com a mesma alegria que tive no primeiro dia em que tomei posse. Não sinto esse desgaste.
Leia a entrevista completa na edição de hoje do jornal "PÚBLICO".
Por Paula Torres de Carvalho(PÚBLICO) e Dina Soares (Rádio Renascença), in PUBLICO.PT
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