segunda-feira, abril 24, 2006

Valores constitucionais


Paulo Ferreira da Cunha
Professor Universitário
pfcunha@justice.com

"Fala-se muito em crise de valores, mas trata-se fundamentalmente de vivermos um tempo de transição nos valores morais dominantes. Ao contrário do que poderia pensar-se, verifica-se um grande consenso axiológico constitucional. Porque há grande consenso nos valores políticos, apesar das guerras da ribalta política. A Constituição torna jurídicos os valores políticos, como verdadeiro código de direito político que é. Pode parecer estranho, mas o facto é que discutimos muito mais sobre os meios que sobre os fins. E os fins políticos e constitucionais últimos das nossas sociedades são também valores: Liberdade, Igualdade e Justiça. E, no plano internacional, a Paz. Falemos só dos três primeiros, por agora.

A Liberdade é, antes de mais, um valor. Isso significa que é estrela de brilho próprio no firmamento das realidades humanas, e que é determinante e não determinada. No máximo, pode articular-se e assim receber limitações não compressivas da sua essência (mas apenas da sua latitude) por parte de outros valores. Mas a ela se não pode nunca renunciar, no seu cerne.

A Liberdade tem mesmo de dialogar com outros valores, sob pena de se negar a si mesma: uma só estrela no céu da mundividência não faz uma abóbada celeste iluminada. Classicamente, a Liberdade dialoga com outras categorias com dimensão política: a Segurança (que não tem dignidade de valor) ou a Igualdade (que é valor). Muitos pensam, e bem, que uma Liberdade insegura ou uma Liberdade alheia à sorte dos mais desfavorecidos, não pode orgulhar-se desse nome. Por isso, há quem omita a segurança como valor (integrando-a na própria Liberdade ou na Justiça) e quem à Igualdade (para não provocar confusões) chame Solidariedade, Justiça social, ou algo semelhante (mas nisso tudo confunde um pouco). Todavia, quando se fala de Igualdade num contexto valorativo (não, obviamente, em ambiente colectivista) não se trata de igualitarismo nivelador “por baixo”, “por igual”, ou “à chegada”, mas de igualdade (na verdade, equivalência) de oportunidades à partida. Não é apenas a igualdade asséptica (e na realidade muito problemática se a si mesma limitada) da mera paridade dos sujeitos perante a lei. Esta acepção de liberdade será até em certo sentido injusta, quando tomada à letra: pois nem todos são iguais; e daí que a Equidade (que alguns, e bem, já a integram na própria Justiça) venha explicar que, se o que é igual reclama tratamento igual, já o que é desigual se deve tratar desigualmente.

O valor político da Igualdade, inseparável dos demais, é ainda um complemento e uma explicitação do valor da Liberdade: pretende libertar aos demasiado ricos do fardo da sua riqueza e aos demasiado pobres da sina da sua pobreza. Não igualitarizando-os, obviamente, mas mostrando-lhes o predomínio do Ser sobre o Ter: que a hipervalorização do material obnubila. Ao dizer a um e a outro que são iguais, iguais em essência, iguais em dignidade, irmana-os na mesma condição humana, liberta-os a uns da arrogância, da auto-suficiência e do desprezo, e a outros da inveja, do ódio e da subversão. A Igualdade é assim outra coisa que a nivelação, e é muito mais que a parificação de riquezas materiais: é um valor também antropológico. Mas é óbvio que, para além da nivelação, a igualdade implica essa máxima de Rousseau: que nenhum homem seja suficientemente rico que possa comprar outro, nem suficientemente pobre para ter de vender-se.

Ao afirmarmos que o Homem é Livre, é um sem número de consequências que daí resultam. Não menos ao afirmarmos que os Homens são iguais.

O valor Justiça desdobra-se em várias dimensões. Até porque a Justiça é valor, é princípio e é virtude. Para alguns a máxima virtude até: porque, ao contrário das demais, tem repercussão nos outros e não apenas na própria pessoa.

Os espíritos conservadores de todos os quadrantes, que em todos os há (falamos objectivamente, sem qualquer intenção pejorativa ou estigmatizadora) têm tendência a privilegiar a segurança (independentemente da Liberdade ou da Justiça) que lhes parece condição de tudo o mais.

Os espíritos mais burocráticos, racionalistas e utópicos, também existentes em várias cores políticas (e continuamos a falar objectivamente) propendem, por seu turno, para tudo querer submeter a um ideal abstracto de Igualdade (na verdade, desejam a uniformização) de onde lhes parece vir a resultar a felicidade geral. Como a igualdade não existe em estado livre, tem sempre de ser arquitectada teoricamente por quem raras vezes é capaz de se não reservar os melhores proventos na distribuição, contradizendo assim o ideal.Os espíritos livres, por fim, não são ingénuos. Não podem ser ingénuos. Conhecendo a complexidade dos problemas e as tentações e imperfeições humanas, optam pela Liberdade. Uma Liberdade com Justiça, e que não olvida a Igualdade. Porque a Justiça tanto é um rigoroso princípio de Direito (e o seu princípio determinante): o dar o seu a cada um, como ainda é uma constante e perpétua vontade de fazer Justiça no mundo (esta é a Justiça social). E aí, sem os mal-entendidos das perversões da Igualdade, a Justiça brilha como sol entre os valores políticos: porque a Justiça parecer ser como que a medida de Liberdade e Igualdade.

A Constituição de 76 parece ter sido manancial inspirador da espanhola de 78. E com base no nosso trabalho em grande medida pioneiro, os constituintes espanhóis foram capazes de dar o passo seguinte… Tornaram claro e distintos, logo no primeiro artigo da Constituição Espanhola, os valores já expressos para a nossa ordem jurídica.Evidentemente que ninguém foge à sua circunstância: e, com medo decerto de tentações totalitárias, deram excessivo valor, promovendo a valor político, o pluralismo político (nomeadamente a pensar no partidário). Mas aparte este excesso de zelo, é importante ver que a Constituição Espanhola nos ajuda assim a ler a nossa. Nela estão claramente enunciados os três valores: Liberdade, Igualdade e Justiça.

Para que servem os valores constitucionais? Para quem tem do Direito uma visão imediatista, dir-se-ia mesmo míope, parece serem meras palavras vagas, sem qualquer importância prática. Sociologicamente, podemos observar que uma ordem (ainda que mal dada, ainda que ilegal) de um ditadorzinho em miniatura, numa repartição, ou uma circularzinha de um pequenino burocrata, têm efeitos directos, imediatos, e quantas vezes fatais (irrecuperáveis) na nossa vida jurídica de todos os dias. Contudo, num Estado de Direito Democrático espera-se que, accionando os mecanismos de garantias, o cidadão lesado, o funcionário injustiçado, possam ver brilhar de novo a Justiça

Ora, a pairar, tutelares como deuses benfazejos, velando pela reposição do legal e do justo, estão os valores juspolíticos da Liberdade, da Igualdade e da Justiça. Desde logo, e para além de muito mais concretizações: quando um agente jurídico, quando um aplicador do Direito (e todos nós somos aplicadores do Direito, e mais vezes do que supomos) tem uma dúvida de interpretação, sobre o sentido ou o alcance de uma norma ou de um sistema de normas, deve antes de mais perguntar-se qual das soluções é mais concorde com a Liberdade, mais promove a Igualdade, mais contribui para que se atribua a cada um o que é seu, ou seja, mais se faça Justiça.Em mil e um casos concretos se coloca a questão. E é uma pedra de toque. O burocrata agarrar-se-á à ordem e à letra da norma. Mas o jurista compreenderá que há uma hierarquia das fontes, em cujo topo está a Constituição, na qual o mais importante são os valores, seguidos dos princípios, e das normas – estas por sua vez com sua hierarquia…

Estas simples verdades que qualquer caloiro de Direito deve saber, parece depois tornarem-se matéria transcendente mais tarde, quando os caloiros passam a drs., tanto são olvidadas por quem decide..."

in O Primeiro de Janeiro

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