segunda-feira, abril 17, 2006

O cartaz da discórdia


Vergonha e humilhação, dizem uns. Acto terrorista, consideram outros. Não há quem fique indiferente ao enorme cartaz entre varandas de um prédio de dois andares, a parecer devoluto, na Estrada de Benfica, em Lisboa. A mensagem anuncia que um inquilino só paga 1,60 euros de renda mensal. Uma forma de protesto do senhorio, revoltado com a lei das rendas e ansioso por expulsar o arrendatário.

O silêncio impera entre os comerciantes e moradores daquela rua – uma espécie de código de solidariedade com o idoso de 80 anos que habita o piso térreo do prédio, que há muito pediu obras de restauro, nunca feitas.

Ana Paula Batista, 40 anos, é das poucas que fala. “É vergonhoso e embaraçoso para o morador. Aquilo não se faz. Só mostra que não deve haver muito entendimento entre o senhorio e o inquilino. Mas devia haver diálogo e não chegar a esta humilhação!”

Outra mulher, que não se quis identificar, acha “ridículo”. “Com uma renda de um euro e 60 não há obras, mas isso deve-se a um defeito da lei. O senhorio deve é querer ver-se livre do inquilino para vender o terreno. Mas não está certo fazer uma coisa destas ao homem.”

O arquitecto Pedro Cid, 51 anos, considera que atitudes destas ilustram o “alto nível de especulação imobiliária” que grassa em Lisboa e um pouco por todo o País. “O cartaz devia estar assinado e não anónimo.”

ACTO TERRORISTA

Jorge Morgado, secretário-geral da Associação para a Defesa dos Consumidores (Deco) não tem meias palavras para definir o cartaz. “É um acto terrorista do senhorio!” Refere que as casas têm um preço, que deve ser equitativo com as condições oferecidas.

"Mas isto não dá direito ao senhorio de expor assim as suas relações com o inquilino. Ao longo dos anos teve hipótese de actualizar o valor das rendas e rentabilizar o investimento.”

Morgado considera ainda que a autarquia de Lisboa devia intervir em defesa do idoso, “que não terá meios nem condições para responder à chantagem e à situação abusiva de força de que está a ser vítima”.

SENHORIO REVOLTADO

José Pais, o senhorio, justifica o cartaz. “Quero chocar o sistema. Como podem os senhorios fazer obras ou viver com rendas de um euro e 60? Não humilho ninguém, estou é indignado e tenho direito à indignação.”

Não actualizou a renda porque, diz, saía a perder. “A lei obriga que, para actualizar a renda, escreva ao inquilino uma carta registada com aviso de recepção. Ia pagar muito mais do que os três cêntimos do aumento de dois por cento da renda.”

Salienta também que, apesar de não conhecer o inquilino, filho da arrendatária, quer é “que ele entregue a chave para deitar abaixo o prédio e construir-se um novo”.

CASAS ALUGADAS

ESPECULAÇÃO

António Machado, director da Associação dos Inquilinos Lisbonenses, diz que “no caso do cartaz, se o valor da renda é baixo a responsabilidade é só do senhorio”. Acrescenta que o proprietário não terá alterado a renda em 1985 (ano das actualizações) e mantido outros fogos devolutos, sem obras, para especular com os terrenos. “Há centenas de exemplos em Lisboa, mesmo de entidades públicas ou instituições, como a Santa Casa.”

ACTUALIZAÇÃO

Em 1985 foi publicada a lei da actualização extraordinária do valor das rendas, até então congeladas. Contratos celebrados antes de 1969 têm aumentos anuais de 3,15 por cento; em 1969, 2,7 por cento; e depois de 1970, 2,1 por cento.

NOVA LEI

No dia 28 de Junho entra em vigor a nova lei do arrendamento, que aumenta o valor das prestações a pagar nos contratos mais antigos de arrendamento e facilita o despejo de um inquilino que não pague renda há mais de três meses.

Por Cristina Serra, Foto: Jorge Paula, in Correio da Manhã

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