quinta-feira, abril 27, 2006

“As medidas tomadas por Alberto Costa são perversas”


Entrevista: Júlio Castro Caldas

Por Filipa Ambrósio de Sousa

Caos na acção executiva é “um entrave à competitividade”. E as decisões previsíveis nos tribunais “são raras”, garante o ex-ministro da Defesa.

O anterior bastonário da Ordem dos Advogados considera que a crise da Justiça passa por interiorizar na consciência política de todos os portugueses que o poder judicial deve ser organizado constitucionalmente de outra forma. Mais críticas ao Governo e às férias judiciais que foram um “anúncio demagógico e mal pensado.”A solução, garante o ex-ministro da Defesa de António Guterres, não passa por terapêuticas parcelares de mudança do sistema. Castro Caldas assume ainda que a actual estrutura da Ordem está desatenta em relação a aspectos fundamentais.

Justiça em tempo útil. É uma utopia em Portugal?
Todos os juristas acreditam na Justiça como utopia. Depois do 25 de Abril não houve uma meditação muito profunda sobre o que seria a arquitectura do poder judicial na Constituição. E deixou-se decantar a arquitectura antiga e descurou-se um pouco dos fundamentos de legitimação do poder judicial. Manteve-se uma ideia do juiz funcionário que era o paradigma do antigo regime e o sistema foi-se progressivamente degradando. As instituições democráticas no exercício da função judicial não estão a funcionar regularmente.

Foi ministro da Defesa no último Governo Guterres. Sente que há hoje falta de interesse político em resolver os problemas?
É difícil conseguir - aliás das coisas mais difíceis de se conseguir é o regular funcionamento do princípio da separação de poderes - desde o tempo de Montesquieu. E a discussão do exercício do poder judicial e das suas bases é difícil de discutir, assim como o paradigma da sua legitimação democrática. A tradição judiciária portuguesa foge dos paradigmas norte-americanos com a Justiça a ser exercida pelo júri e pelo Ministério público eleito.

Isso levou à falta de confiança na Justiça, que é hoje uma realidade?
O paradigma da Justiça de funcionários leva a que os cidadãos não tenham confiança na Justiça. E com a morosidade injustificável que leva a tantas e tantas condenações do Estado português no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, como até pela sua imprevisibilidade Hoje é raro haver previsibilidade nas decisões dos nossos Tribunais. Pela falta de certeza jurídica do nosso direito e também pela forma como as nossa decisões jurisdicionais são exercidas.

As medidas propostas pelo Governo põem causa a independência do poder judicial?
De modo nenhum posso concordar com uma greve de juízes. Acho que quando as crises com esta gravidade se acentuam desta forma, todos contribuem com factores de degradação - A própria crise é acentuada quando os magistrados fazem greve e acentuam a faceta de funcionalização da magistratura, enquanto deviam demonstrar uma vontade de criação da sua própria autonomia e liberdade. Ao fazerem esta greve acentuaram uma vertente paradigmática de vincular ao poder da Administração o exercício da judicatura. E os fundamentos desta greve?Compreendo os factores de absoluta insatisfação que passam pelas vertentes de não dotação de meios informáticos e de todo o tipo de equipamentos. São meio arcaicos. Chega a haver registos de prova que não são audíveis, inexistência de computadores e mesmo de assistentes de magistrado, para a recolha de informação ou compilação de informação.

E a redução das férias judiciais?
Foi um anúncio demagógico e mal pensado. Porque ainda hoje a medida é inexequível. Desde há muito que se discute esta questão das férias judiciais - desde o meu tempo de bastonário. É evidente que o a matriz das férias judiciais foi pensada ainda numa sociedade de matriz agrária. A modificação da sociedade agrária para uma sociedade urbana introduz factores que obrigam a uma meditação coerente sobre o que se devia fazer. E discuti isso com vários ministros da Justiça nos seis anos en que fui bastonário. Mas os períodos de férias ajudavam muito a arrumar a casa. Hoje a situação não faz sentido. Não deveriam haver férias judiciais nenhumas, e cada magistrado tira as férias nas alturas que mais lhe convier.

O ministro da Justiça escusava de ter pedido esta guerra?
Acho que escusava de ter comprado esta guerra. Se a quisesse ter, mais valia ter de uma forma mais coerente - com um modelo organizativo de turnos durante um período de férias. A situação neste momento é de impossibilidade técnica de organização de turnos.

Qual o balanço que faz do mandato de Alberto Costa?
Eu acho que lhe deram uma tarefa impossível…

Mas é uma tarefa dada a todos os ministros da Justiça…
Mas é impossível na medida em que não está interiorizada na consciência política de todos os portugueses que o poder judicial deve ser organizado constitucionalmente de outra forma. O debate tem de ser muito mais à frente e não pode estar inserido no plano de Governo de julgar que as coisas podem funcionar melhor com algumas terapêuticas parcelares de mudança do sistema.

Como avalia as medidas já tomadas pelo MJ? Reformas pontuais? Ou com um plano estabelecido?
O actual ministro da Justiça aceitou um paradigma de funcionamento do sistema judicial que está condenado. Por muitas medidas que queira tomar de correcção do sistema, o conjunto de melhorias que pode introduzir não é suficiente nem adequado ao que é necessário fazer.

E a solução passa...
São numerosas outras coisas, quer no domínio da legitimação do poder, quer no domínio do exercício de novas formas de judicatura, quer no domínio da alteração de número de comarcas e Tribunais. As medidas que tem tomado são perversas.

Em que domínios?
Pretender reduzir os custos da tramitação processual a partir da formatação de formulários é um erro. Porque a Justiça fez-se para os casos que não cabem em formulários. Temos a situação caótica da acção executiva e nada mudou. isso é caótico para a nossa competitividade.

Concorda com o plano de Governo sobre mapa judiciário?
Tem de ser muito bem explicado. E não pode ser baseado em indicadores de natureza demográfica, económica e estatística. O novo mapa rodoviário português simplifica muito esta situação. E também o sistema comunicacional simplifica muito as coisas. Tudo pode modificar-se pela agregação de comarcas porque existem de facto algumas comarcas no país que dantes eram relevantes e que agora não o são…

Acha que a posição do Ministro da Justiça está ameaçada?
Essa questão - pela experiência governativa que tive - é do foro íntimo de José Sócrates. A tendência é a de que quando essas coisas acontecem é de acentuar o espírito de ‘bunker’. Não é pela praça pública se falar ou dizer que as coisas se modificam…

Não acha que com esta questão da Polícia Judiciária foi evidente o conflito entre os ministérios da Administração Interna e da Justiça?
Não. Acho que existe uma não clarificação do paradigma e do modelo das polícias e que existem numa situação conjuntural de segurança que é grave. E que hoje devia ter outro tipo de paradigma.

Mas concorda com os que defendem que a PJ devia sair da alçada do MJ?
Não. O que eu quero é uma polícia eficiente do ponto de vista da investigação. E não o é por ausência de meios…

Como viu este reforço orçamental tardio dado à PJ?
Na política, quando as coisas correm mal, parece que existe a lei de Murphy… tem que correr mal até ao fim….Já estava mal quando se fez o orçamento e poderá ter havido tentativas de corrigir um erro de caracterização orçamental. E e depois esse erro veio-se acumulando Digo isto pelas declarações mais ou menos agressivas e trocas de ofícios. Uns disseram umas coisas que não deviam dizer, outros disseram outras coisas que não deviam dizer…

Texto integral da entrevista em DIÁRIO ECONÓMICO

in Diário Económico

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