sexta-feira, abril 14, 2006

Carta aberta do PGR ao Colunista Dr. Teixeira da Mota


Carta aberta do PGR ao Colunista, publicada no jornal "Público" de 11/04/2006.

"CARTA ABERTA DO PGR AO COLUNISTA

José Souto de Moura


Caro dr. Teixeira da Mota

Acabo de o ler na crónica intitulada "Os dez andamentos", do PÚBLICO, de "domingo, dia 9, e o "décimo andamento" leva-me a escrever-lhe, já que se refere à minha pessoa. Em causa uma afirmação que eu teria feito, atribuindo à PGR a condição de "órgão dei soberania", e daí a sua mais que natural reacção. Vou então tentar esclarecer o que surge, aparentemente, como um, mais um lamentável equívoco. Não que a questão tenha uma grande importância, mas também não podemos viver só para as coisas - muito importantes, sob pena de nos transformar) mos nuns grandes maçadores.

Há uns dias fui a Coimbra a convite da República Direito falar sobre a proposta de lei do Governo relativa à política criminal. Tema que, aliás, já me levado à Comissão da Assembleia da República, em Janeiro. No debate que se seguiu à minha exposição houve uma intervenção do seu colega dr. João Nabais, que, entre outras considerações, referiu como passo positivo o facto de o procurador-geral ou, através dele, o Ministério Público passada a prestar contas perante a Assembleia da República, concretamente no âmbito da execução de certas política criminal.

A seguir, e em jeito de comentário a essa intervenção, sublinhei, ainda dessa vez, que nunca estaria em causa, na posição que acabara de defender na intervenção minha de subtracção a eventuais prestações de contas. Disse é que, na - arquitectura congeminada para o equilíbrio e independência dos poderes do Estado, aqui e agora o facto de o Procurador-geral da República "prestar contas" perante a Assembleia seria um pouco exótico. Antes tinha referido que seria útil esclarecer se o Procurador-geral passaria a ir ao Parlamento ao nível, digamos, da mera consultadoria, ou para uma verdadeira prestação de contas.

Não que não fosse perfeitamente configurável essa prestação de contas. Não que pudesse trazer qualquer malefício ao chamado "Estado de direito". Só que no sistema que temos, ou seja, com a lei que temos, a começar pela lei constitucional, tal não faria, a meu ver, nenhum sentido. Dei até o exemplo da Hungria, em que o Procurador-geral da República é eleito pelo Parlamento, e obviamente que responde perante ele. Só que cá não se quis ir por aí.

Passando agora ao que me leva a escrever estas linhas, eu nunca poderia dizer que a PGR era órgão soberania, porque nem sequer o Ministério Público o é. Durante anos ensinei no CEJ, colhendo a lição de Figueiredo Dias, que, no uso das suas competências penais, o MP deveria ser caracterizado como órgão autónomo de administração da justiça penal. Quanto à Procuradoria, será ela um órgão de Estado inconfundível com a administração, tal como, por exemplo, o provedor de Justiça. E relativamente ao Procurador-geral propriamente dito, esse será um órgão individual da referida PGR.

Por ter falado em órgão de Estado, algum dos presentes, jornalista talvez, terá julgado que órgão de Estado e órgão de soberania se equivaliam. E assim se passou a atribuir-me uma afirmação, sem dúvida bizarra, que não fiz. Curioso é que as reacções se centraram na questão do órgão de soberania, sem, que ninguém, que eu saiba, se tenha preocupado I com a questão fundamental. Seja o MP, ou a PGR, ou o Procurador-geral o que forem, do ponto de vista: t da sua caracterização conceptual, e seguramente, não são órgãos de soberania, por que é que hão-de.,) responder perante o órgão político Parlamento?

Sabido que a legitimação para o exercício do cargo de Procurador-geral não depende do Parlamento. Sabido que a manutenção nesse mesmo cargo ï depende só da confiança conjunta do governo e do Presidente da República. Sabido por último que o MP é, entre nós, unia magistratura completamente - hierarquizada que concorre para a realização da justiça, e portanto está ligada funcionalmente aos tribunais, que são órgãos de soberania, mas independentes do poder político.

É tudo e só uma questão de coerência do sistema. Coerência que, creio, não deve ser maltratada devido a meras vicissitudes de conjuntura.

Aqui fica o que lhe quis dizer, com a minha estima e consideração."


Fonte: SMMP

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