domingo, abril 30, 2006
Um código para os consumidores
J. Pegado Liz
Representante dos consumidores no Comite Económico e Social Europeu
"1. Ocupado com a defesa dos consumidores em vários fora internacionais, não pude acompanhar esse grande evento nacional que terá sido o lançamento do Código do Consumidor português. A ter tido a oportunidade de aí ter estado, gostaria de ter cumprimentado certos elementos meus conhecidos da comissão encarregada da sua elaboração, alguns meus amigos de longa data, e, em especial o seu presidente, o prof. Pinto Monteiro, pelo que não pode deixar de ser considerada a obra de uma vida, tanto o tempo que lhe dedicou - cerca de dez anos - com afinco, convicção denodo e persistência.
2. Este reconhecimento devido e de direito não pode, nem deve, no entanto, impedir a interrogação, que não é meramente de dúvida sistemática, quanto à natureza, utilidade, consistência e oportunidade da iniciativa.
3. Dizia-me, há anos, Pinto Monteiro, já em antevisão do desfecho final, que se "trataria de um verdadeiro código" - e eu, entre perplexo e atemorizado, perguntava-me que Cerberus ou que Hidra, e com quantas cabeças, estaria a ser concebido, ainda que sem pecado. O resultado excedeu em muito as minhas expectativas. Trata-se de um "verdadeiro código", embora "pós-moderno" no dizer do autor, com todos os defeitos que isso comporta.
4. Desde logo porque, com o formato pretendido e conseguido - mérito seu - se introduz um elemento de rigidificação numa área do direito que é, e deve ser, por essência e natureza, exactamente o oposto - um direito vivo, em constante evolução e adaptação a uma realidade da vida social e económica em permanente mudança.
5. Por outro lado, porque é hoje comummente aceite que o chamado "direito do consumo" - que nunca direito dos consumidores! - nos aspectos essenciais não tem autonomia científica, representando, quando muito, o fruto de uma evolução precoce em domínios que o direito civil deverá acabar por integrar, como já o estão a fazer países de tradição civilista não mais avançada que a nossa, mas que o compreenderam mais cedo.
6. Depois porque, apesar do esforço ingente desenvolvido, o resultado não é consistente. Basta pensar que a simples adopção próxima de directivas comunitárias, por exemplo, do crédito ao consumo, ou da Televisão sem Fronteiras, ou da revisão da directiva sobre as cláusulas abusivas, ou dos recentes e sucessivos regulamentos em matérias de processo civil, ou da responsabilidade penal na violação da propriedade intelectual, são de molde a subverter capítulos inteiros do código, que assim perderá, a breve trecho, toda a sua utilidade como instrumento de simplificação legislativa.
7. E que dizer da surpreendente "transposição", de uma penada, e em "segredo", da directiva das práticas comerciais desleais, quando países como Reino Unido e Alemanha criaram comissões interdisciplinares com os mais renomados juristas para o seu estudo e a resolução dos problemas que ela põe. Produziram milhares de páginas, escritos notáveis, e alimentam discussões de alto nível em instâncias internacionais!
8. Como não ficar estarrecido quando num "código" se regulam em pormenor montantes das coimas a aplicar, organização dos serviços do Estado, extinção de organismos e criação de outros para durarem para a eternidade, porque os "códigos", por natureza, têm necessariamente vocação de eternos?! E não só organismos do Estado mas também associações de consumidores, cooperativas de consumo, fundações de defesa dos consumidores, entidades reguladoras (aliás já desactualizadas) tudo num megalómano sistema com foros de verdade universal, à boa maneira medieva.
9. Não foi por acaso que a moda da codificação - datada de há 30 anos - não fez carreira nos países da UE, sendo reconhecidos os fracassos da França, onde existe uma mera compilação de textos avulsos, ou da Bélgica, onde o "código Bourgoignie" nunca saiu do papel. E mesmo onde, de feição embora muito mais comedida, tal ideia vingou, como em Malta (com um código "grande" de apenas 111 artigos), é hoje alvo de acerbas críticas por inconsistência e inutilidade práticas, face à rapidíssima evolução do direito comunitário e dos novos meios e usos comerciais nesta área.
10. Esta apreciação da iniciativa não dispensa uma análise detalhada e criteriosa de todo o articulado, nada menos de 708 artigos!, em boa hora posta à discussão pública e na qual devem intervir além dos juristas de profissão todos os interessados, que se não limitam ao consumidor e suas organizações representativas, mas igualmente os profissionais, os produtores, os comerciantes, todos os agentes económicos e parceiros sociais.No seu todo, porém, o melhor que se pode augurar deste "código" é que seja guardado como referência de inestimável valor doutrinário. Mas que nenhuma decisão política mais voluntariosa e menos reflectida o transforme em lei da República."
in Diário de Notícias
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