sexta-feira, abril 14, 2006

Poder político quer tornar “mais dócil” o poder judicial


Entrevista a António Martins, Presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses

Juízes são o bode expiatório para os males da Justiça , diz António Martins, mas uma nova greve “não está nos horizontes” da associação sindical.

António Martins, recém-empossado presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, justificou a sua candidatura ao cargo como uma forma de inverter a situação no que respeita ao Estado de Justiça. Agora, aponta como inimiga a descrediblização dos juízes para propósitos que não são muito saudáveis, como a influência de outros poderes para tornar o poder judicial mais “dócil.”

A anterior direcção sindical foi várias vezes acusada de mover uma guerra contra o ministro Alberto Costa. A linha, a partir de agora, será igualmente crítica?
Cada pessoa é uma pessoa. Não andarei à procura de paralelismos ou diversidades. A relação com o ministro da Justiça passará por dois aspectos: exigência da nossa parte de respeito e disponibilidade para com os juízes. Nomeadamente a disponibilidade para os juízes se assumirem como peças essenciais em termos de perspectivas de reformas para melhoria do sistema de Justiça.

Houve falta de respeito de Alberto Costa para com os juízes?
Houve uma atitude de tentativa de deslegitimação do poder judicial e uma tentativa de colocar nas costas dos juízes o mau funcionamento do sistema de Justiça. Colocaram-nos como bode expiatório dos males da Justiça.

A independência dos juízes está ameaçada com este Governo?
O que existe é a ideia de descredibilização dos juízes para propósitos que não são muito saudáveis.

E que são...
Ter um poder judicial dócil e sujeitos a influências de outros poderes. E as medidas da carreira plana, a responsabilização dos juízes através do direito de regresso são exemplo disso.

Como viu a greve dos juízes de Outubro?
A greve dos juízes tem sempre que ser excepcional. E esta foi a segunda vez em 32 anos de democracia. Esta direcção actual não tem nos seus horizontes a realização de qualquer greve. No que respeita à greve de Outubro, acho que foi tarde demais. Deveria ter sido logo em Junho – quando estava em causa a deslegitimação do poder judicial. Ter-se-ia conseguido uma coisa que infelizmente não se conseguiu: passar a mensagem que a greve tinha a ver com questões essenciais do poder judicial e não com questões marginais como a redução das férias judiciais ou com os serviços sociais do MJ.

Como vê a demissão de Santos Cabral da direcção da PJ?
O que aconteceu foi um pedido de cessação de funções por parte da direcção da PJ. E mais uma vez o Ministério da Justiça pretendeu transmitir uma falsa ideia que houve uma demissão por parte de Alberto Costa. E vejo com preocupação que isto surja pela possibilidade de a Interpol e a Europol passarem para a alçada da PCM. Não sei o fundamento desta decisão, mas pode ser por ignorância ou má fé. Por ignorância ou por não se compreender o que essas unidades significam em termos de polícia e o que são realmente.

Concorda com a contingentação dos processos, já defendida por Alberto Costa?
Não é uma questão de concordar. É uma questão de os juízes estarem disponíveis para colocar em cima da mesa todas estas questões. Os juízes não estão aqui para defender privilégios, mas sim para servir a Justiça.

Como classifica a exigência, feita pela Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, para que o MJ disponibilizasse o estudo que serviu de base à redução das férias judiciais? Veio tarde de mais?
Já passou o prazo. Há muito tempo que um colega nosso pediu que lhe fosse disponibilizado este estudo, invocado pelo MJ com o argumento técnico de conseguir um ganho de produtividade de 10% com a redução das férias judiciais. E já há muito tempo decorreu o prazo que a lei prevê para apresentação desse estudo. Por isso, este cidadão juiz apresentou a queixa à Comissão que referiu. Não sei se esse estudo existe. E mesmo que exista, não sei se é um mero estudo de mercearia.

Perfil: António Martins

António Francisco Martins, desembargador do Tribunal da Relação de Coimbra, 46 anos, entrou para o Centro de Estudos Judiciários em 1984 e iniciou a sua carreira no Seixal. Passou por Setúbal, Barreiro, e Cuba. Esteve no Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa e no Tribunal da Boa Hora. Entre Dezembro de 1995 e Março de 1999 fez um pequeno interregno na magistratura judicial e assumiu o combate ao tráfico de droga na Polícia Judiciária, onde foi director adjunto do então director nacional e também juiz Fernando Negrão. Está no Tribunal da Relação de Coimbra desde Setembro do ano passado.

NOVO GABINETE DE ESTUDOS E OBSERVATÓRIO DOS TRIBUNAIS

Num quadro de alteração do mapa judiciário, quais vão ser as propostas da ASJP?
Esta questão é uma das matérias sobre que o Gabinete de Estudos e Observatório dos Tribunais – que pretendemos criar – se vai debruçar. Teremos respostas através de um documento que pretendemos apresentar ao ministro da Justiça. Defendemos que não se pode fazer uma revisão do mapa judiciário de uma forma economicista – vamos extinguir comarcas que não têm volume processual elevado e passar os juízes para os que têm processos a mais. Porque a Justiça é um bem de primeira necessidade e o Estado não pode abdicar de o fornecer. Na óptica da magistratura, os juízes estão cá para realizar Justiça e estão disponíveis para encontrar fórmulas de melhoria da Justiça. Passa por se encontrar um ‘ratio’ de trabalho adequado – e o número de processos que cada juiz tem é o elemento que queremos introduzir. Cada juiz deve ter um determinado número de processos.

CRÍTICAS AO GOVERNO E NOVAS PROPOSTAS

1 - Disponibilização do estudo que serviu de base à redução das férias judiciais
"Já passou o prazo. Já há muito tempo que um colega nosso pediu que lhe fosse disponibilizado este estudo, invocado pelo MJ com o argumento técnico de conseguir um ganho de produtividade de 10% com a redução das férias judiciais. E já há muito tempo decorreu o prazo que a lei prevê para apresentação desse estudo. Por isso, este cidadão juiz apresentou a queixa à Comissão que referiu. Não sei se esse estudo existe. E mesmo que exista, não sei se é um mero estudo de mercearia.”

2 - Nova proposta para a gestão de financiamento dos Tribunais“
Sinceramente conheço muito pouco da proposta e o que tive acesso não é nada de diferente do que já acontecia. Já no tempo de António Costa o Instituto de Gestão Financeira concentrava os pagamentos e os procedimentos e desempenhava uma macrocefalia nesta matéria financeira dos tribunais. Não vejo nenhuma novidade naquilo que é apresentado como uma gestão nova.”

3 - Formação do CEJ, que acumula a formação da magistratura judicial e do MP
Nós propomos no nosso programa sufragado a separação entre as áreas de formação da magistratura do Ministério Público e da magistratura judicial. Quando se concorre para o CEJ já se concorre ou para juiz ou para o Ministério Público. Não faz sentido a situação como está actualmente. Não se pode estar à espera do último ano para se decidir para qual das magistraturas se vai seguir.

4 - Desmaterialização dos processos anunciada pelo Governo
“Eu já nem sei o que o ministro Alberto Costa quer sobre esta matéria. Inicialmente, a expressão utilizada era a “desmaterialização dos processos. Mas depois houve uma mudança no discurso dele - começou a falar de desmaterialização de recursos. Não sei sinceramente o que o Ministério da Justiça quer fazer nesta matéria”, acrescenta António Martins.

5 - Falta de meios informáticos para os tribunais e juízes
“Ao contrário da ideia de que os juízes são avessos a mudanças ou problemáticos com as novas tecnologias, a verdade é esta: pese embora o esforço do Ministério no que respeita à formação, a verdade é que são raros os juízes que ainda escrevem as sentenças à mão. Muitas vezes o que falta são mesmo os meios técnicos – porque há muitos colegas a trabalhar com computadores de primeira geração.”

6 - Contingentação dos processos por juízes proposta pelo Governo
Concorda?
“Não é uma questão de concordar. É uma questão de os juízes estarem disponíveis para colocar em cima da mesa todas estas questões. Os juízes não estão aqui para defender privilégios, mas sim para servir a Justiça.“

7 - As medidas de António Martins para os juízes
Sistema de contingentação ponderada de processos; criação de uma bolsa de juízes; reorganização do mapa judiciário; exigência de regras de clareza no sistema de concursos para acesso aos Supremos Tribunais; abertura de vagas e colocações de juízes.

Entrevista por Filipa Ambrósio de Sousa, in Diário Económico

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