segunda-feira, abril 24, 2006
A JUSTIÇA E OS TRIBUNAIS sua pretensa crise e razões da sua actualidade
A. José M. Ramos
Magistrado Judicial
"Dois singelos aspectos a destacar:
- a «carolice», nota-base do funcionamento dos Tribunais;
- as férias judiciais como (pretenso) factor do «engarrafamento» do sistema.
Constitui hoje lugar comum falar da crise da Justiça e, por óbvia inerência, dos Tribunais, estes indubitavelmente a (última, se não, a única) face visível da Justiça. È que, de facto, e como dizia o Saudoso Mestre Manuel de Andrade, «é o juiz quem talha na carne viva dos interesses humanos».
Na verdade, é fácil apontar o dedo, e todos temos, mais ou menos, uma (ontológica) aptidão para assim proceder, seja qual for o assunto e o maior ou menor domínio que dele possamos porventura ter. E a Justiça não foge a uma tal ancestral regra.
Ora, e se é certo que isto constituiu, estou crente, uma inelutável verdade, não é menos verídico que uma tão fácil quão insindicável postura não pode (não deve) ser assumida por todos, mormente por quem tem responsabilidades em tal domínio, políticas ou outras, nestas se incluindo as dos variados «agentes» judiciários.
Cientes de uma tal persistente realidade, conviria, por isso, que, os responsáveis pelo sistema de justiça, seja qual for a vertente que uma tal responsabilidade encerre, assumissem uma postura serena, convicta e responsável, tendente à resolução dos reais (e não meramente virtuais) problemas da Justiça que, inquestionavelmente, existem e, pior do que isso, subsistem, e à vista de todos (ao menos daqueles que os quiserem ver).
Os caminhos para alcançar tão desejável desiderato podem ser os mais variados, consoante a própria opção (estrutural) política que se venha a eleger como paradigma para o efeito (discutir sistemas e opções políticas não estará nunca no nosso horizonte; o que não afasta as nossas legítimas convicções – aqui radica a cidadania, enquanto vínculo jurídico-político que, traduzindo a pertinência de um indivíduo a um Estado, o constitui perante este num particular conjunto de direitos e obrigações).
A verdade, porém, é que sem esse esforço que, quanto a nós, terá de ser colectivo, interdisciplinar e «desinteressado», nada de positivo poderá ser alcançado. No entanto, e apesar de todos, ao que julgo, disso estarmos perfeitamente cientes, face àquilo que os trinta anos de vivência democrática nos vêm ensinando, continuo enclausurado no meu cepticismo, pois que, e mormente ao nível político, apadrinhar as boas ideias dos outros ainda constitui invulgar virtude, infelizmente. Isto posto.
Apesar de tal sentido desencanto, e seguindo a encabeçada temática – o «timing» em que é trazida a lume a crise da justiça – diremos que constituiu ilação, quanto a nós, incontornável, que a discussão de uma tal temática anda associada, por via de regra, a épocas em que decorrem nos Tribunais julgamentos (ditos) mediáticos (a questão da Justiça/Tribunais e a sua – delicada e controversa – relação com os «media» ultrapassa as margens desta singela proposta de discussão). De facto, é a partir de tal tipo de processos que surgem as (ditas) grandes questões da Justiça, esta normalmente então «travestida» de crise, ou seja, as subitamente (pasme-se) descobertas das pretensas falências do sistema.
Ora, e quanto a nós, isto constituiu, seguramente, um mau presságio, pois que, como é sabido, e ao menos por via de regra, não há nenhum problema que seja bem resolvido «a quente», uma vez que falece, desde logo, a desejada serenidade, o que, e por inerência, afecta as próprias convicções (de raíz, quando existam), pois que assim arredadas pelos pontuais e imediatos «desejos», inquinando, a par, e por isso mesmo, o próprio sentido de exigíveis responsabilidades. No fundo, predomina a paixão/emoção, em notório detrimento da desejável razão.
Sem citar exemplos concretos que grassam no quotidiano dos nossos tribunais – tarefa que nunca empreenderemos – tem sido esta a experiência portuguesa, mormente nos últimos tempos. E, quanto a tudo o resto (80 ou 90% dos casos) nenhum problema existe, aparentemente, tanto mais que os Tribunais os vão solucionando, sem contestação palusível. Só que disto, o que, afinal, vai funcionando normalmente, raramente se fala, fazendo-se sobressair, teimosamente, apenas os aspectos negativos do sistema. E é precisamente este «esquecimento» global que faz realçar a necessidade de tentar perceber a razão pela qual se coloca em crise todo o sistema de Justiça apenas a propósito de pontuais situações (as ditas mediáticas).
Deixaremos esta questão em aberto, para reflexão de quem quiser ou entender dever fazê-la, convictos, no entanto, de que deve ser repensado o «timing» em que são trazidas a lume tais (emblemáticas) discussões. Isto, obviamente, sem prejuízo da percepcionada necessidade de que uma tal tarefa deve ser encetada, mas de forma estruturada, e não meramente conjuntural, e serenamente empenhada, o que pressupõe já, e a par, a responsável aceitação duma associada honestidade intelectual, mormente política.
Aqui chegados, e passando ao subsequente tema preconizado, importa falar agora, ainda que sumariamente, do funcionamento dos Tribunais e da assinalada «carolice» (expressão apenas utilizada pelo seu insubstituível conteúdo significante), com destaque para a questão das férias judiciais enquanto pretenso factor de «engarrafamento» do seu funcionamento.
Ora, quem conhecer, minimamente, como funcionam os tribunais portugueses, facilmente concluirá que não funcionam muito bem, por múltiplas e diversificadas razões. Destas, e a título meramente exemplificativo, sublinharemos apenas a notória falta de meios, materiais e humanos, uns e outros com considerável extensão.
No entanto, e apesar de tamanhas limitações, lá vai sendo dada resposta aceitável e, apesar de tudo, eficaz ao «grosso da coluna», ou seja, aquilo (os tais 80/90%) de que praticamente ninguém fala. Só assim, de resto, a credibilidade dos tribunais se vai mantendo, ainda que a muito custo, tamanha é a gratuita e negativa publicidade que deles se tem procurado fazer, ao menos nos últimos tempos (há até quem pense, e o diga, que praticamente não se trabalha nos tribunais). E uma tal réstea de êxito dos tribunais radica, afinal, também no seu grau de eficácia, inquestionavelmente existente, quer se queira, quer não. Isto, apesar das inúmeras limitações do actual sistema, que, quanto a nós, mormente no plano legislativo, não tem dado resposta ajustada e cabal àquilo que é, naturalmente, «reivindicado» pela nossa concreta realidade (a mera «importação» de leis encerra «ab initio» uma ontológica e inultrapassável inadequação, e, por isso, nada resolve). No entanto, convém salientá-lo, a existente (e possível) resposta dos tribunais apenas subsiste mercê da «carolice» de todos aqueles que integram o sistema (operativo) da Justiça, ou seja, de quem efectivamente neles arduamente trabalha, independentemente da sua diferenciada função.
É que, na verdade, quer os funcionário judiciais, quer os magistrados trabalham (trabalhavam ...) horas a fio para conseguir levar a cabo a (incomensurável) tarefa quotidiana de dar resposta às incontadas solicitações que dos tribunais reclamam justiça. Trata-se de uma tarefa árdua, complexa e infinita e sempre executada com afinco, dedicação e (até há pouco tempo) sem limites. E só por isso vai sendo dada (a possível) resposta a tamanhas e diversificadas solicitações.
Acontece que, de repente, quem assim sempre «escravizou» a sua própria vida pessoa e familiar em prol da Justiça, vê-se confrontado com uma trazida (e injusta) imagem de inércia, único (ao que parece) factor do mau funcionamento do sistema. Ou seja, facilmente a ilimitada dedicação foi eleita como factor basilar, se não o único, de ineficácia, razão pela qual, e em «perfeita» e conveniente consonância, foi igualmente erigida como autêntico polo aglutinador de vastos (e imerecidos) privilégios. E daí até se conseguir encontrar, rapidamente, a unilateral e ideal solução para um tal diagnosticado problema bastou apenas um simples passo: reduzir as «imensas» férias judiciais, afinal o engulho do bom funcionamento dos tribunais e, por inerência, do atraso da Justiça.
Ora, e como assinalámos antes, não é nossa preocupação (nem poderia sê-lo) tecer considerações de índole político. O que não nos impede – exercício do direito de cidadania - de expressar, livre e respeitosamente, o nosso sentir e, por isso mesmo, aqui fica a nossa total e percebida discordância.
Na verdade, o (pretenso) «mito» das férias judiciais nada irá resolver (o futuro o dirá), bastando para tal verificar que o período de férias a que tem direito quem trabalha nos tribunais é objectivamente inconciliável com o modelo legalmente estatuído/ imposto o que, de resto, levou já à necessidade de um ajuste legislativo, assim logo «ab initio» diferente do solenemente propagandeado. De resto, só com muito boa vontade de todos aqueles que nos tribunais trabalham, estribada no sempre presente sentido de responsabilidade, foi possível elaborar os mapas de férias, sendo certo que, na prática, a existente funcionalidade em nada saiu melhorada, por manifesta e objectiva impossibilidade.
No entanto, uma tal «milagrosa» medida contém pelo menos uma incontestada virtualidade: conseguiu acabar de vez com a atrás mencionada «carolice» (quem semeia ventos, colhe tempestades ...). E, sem ela, até então incontestavelmente existente, e legalmente impossível de exigir, não se augura um bom futuro para os Tribunais e, como é óbvio, para o bom e célere funcionamento da Justiça.Que disso não tem culpa.
E que ninguém (a) quis ouvir. Com muita pena nossa, os que na Justiça ainda acreditámos."
in O Primeiro de Janeiro
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