sexta-feira, novembro 29, 2013

Diário da República

Ministério da Justiça - Gabinete da Ministra
Prorrogação do prazo para a Comissão de revisão do Código do Procedimento Administrativo, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e do Código de Processo nos Tribunais Administrativos concluir os seus trabalhos. 

Ministério Público - Procuradoria-Geral da República - Conselho Superior do Ministério Público
Aposentação/jubilação do procurador-geral-adjunto, licenciado Augusto Manuel Gomes de Sousa.

in DRE

quinta-feira, novembro 28, 2013

Tribunal Constitucional - ACÓRDÃO N.º 794/2013 - Limite máximo jornada de trabalho - duração do trabalho - função pública

Tomando a devida liberdade, aqui se verte o teor decisório (com declarações de voto incluídas) do Tribunal Constitucional sobre a matéria em epígrafe.
O teor integral do douto acórdão poderá ser consultado aqui.
Processos n.os 935/13 e 962/13
Plenário
Relator: Conselheiro Pedro Machete



Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:


I. Relatório

1. Um grupo de Deputados à Assembleia da República, eleitos pelo Partido Socialista, veio requerer, ao abrigo do disposto no artigo 281.º, n.º 2, alínea f), da Constituição da República Portuguesa, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral:
a) Das normas do artigo 2.º da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, na interpretação conjugada com a norma constante do artigo 10.º da mesma Lei;
b) Da norma do artigo 3.º da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, na parte em que altera o artigo 126.º do Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas, aprovado pela Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro; e
c) Das normas do artigo 4.º da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto. 

Entendem os requerentes que tais normas são inconstitucionais por violarem – todas elas:
O direito a um limite máximo da jornada de trabalho, previsto no artigo 59.º, n.º 1, alínea d), da Constituição, e o comando constitucional que obriga o Estado a fixar, a nível nacional, os limites da duração do trabalho, previsto no artigo 59.º, n.º 2, alínea b), da Constituição;
Os princípios constitucionais da igualdade, da proteção da confiança legítima e da proporcionalidade próprios do Estado de Direito e acolhidos nos artigos 2.º, 13.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição;
O direito à retribuição previsto no artigo 59.º, n.º 1, alínea a), da Constituição.

Um outro grupo de Deputados à Assembleia da República, eleitos pelo Partido Comunista Português, pelo Partido Ecologista Os Verdes e pelo Bloco de Esquerda, veio requerer, igualmente ao abrigo do disposto no artigo 281.º, n.º 2, alínea f), da Constituição da República Portuguesa, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes dos seguintes artigos da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto:
a) As normas do artigo 2.º, “que fixa o período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas em “oito horas por dia e quarenta horas por semana” (n.º l), obrigando à adaptação dos «horários específicos» (n.º 2, o que se repete no n.º l do art. 11.º)”;
b) As normas do artigo 3.º, “que altera o Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas, no que toca ao período normal de trabalho”;
c) As normas do artigo 4.º, “que altera o Decreto-Lei n.º 259/98, a respeito também do período normal de trabalho”.

Na conclusão do seu pedido, estes requerentes precisam que “por violação dos princípios e das normas constitucionais acima expostos, relevando os princípios da proibição do retrocesso social, da segurança jurídica e da confiança, a par dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, está ferida de inconstitucionalidade material a norma do artigo 2.º e, consequentemente, estão feridas de inconstitucionalidade material as normas dos artigos 3.º, 4.º e 11.º, todos da Lei n.º68/2013, de 29 de agosto”.
 (...)
III. Decisão

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não declarar a inconstitucionalidade das normas dos artigos 2.º, em articulação com o artigo 10.º, 3.º, 4.º e 11.º, todos da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto.

Lisboa, 21 de novembro de 2013  Pedro Machete – Maria João Antunes - Maria de Fátima Mata-Mouros(Votei a decisão essencialmente pelo que consta do ponto 16.da fundamentação. Renovo o ponto 4 da declaração aposta ao Ac. nº 187/2013)  – José Cunha Barbosa - Maria Lúcia Amaral – Lino Rodrigues Ribeiro Ana Maria Guerra Martins (com declaração que se junta) – Catarina Sarmento e Castro (vencida, parcialmente, pelas razões constantes  da declaração de voto junta ) – Maria José Rangel de Mesquita (Parcialmente vencida pelas razões constantes da declaração de voto anexa) – João Cura Mariano (vencido, parcialmente, pelas razões constantes da declaração de voto junta) – Fernando Vaz Ventura (vencido, parcialmente, pelas razões constantes da declaração de voto que junto) –  Carlos Fernandes Cadilha (vencido, parcialmente, pelas razões constantes da declaração de voto em anexo) – Joaquim de Sousa Ribeiro (vencido, em parte, pelas razões constantes da declaração em anexo)        

DECLARAÇÃO DE VOTO


Votei a declaração de não inconstitucionalidade da norma dos artigos 2.º, em articulação com o artigo 10.º, 3.º, 4.º e 11.º, todos da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, afastando-me, no entanto, de alguns pontos essenciais da fundamentação do Acórdão.
Note-se, antes de mais que o que está em causa não é o artigo 2.º isoladamente, mas sim a leitura conjugada deste preceito legal com o artigo 10.º.
Desde logo, não subscrevo o iter argumentativo constante dos n.ºs 10 a 16 da fundamentação relativo ao sentido a atribuir ao artigo 2.º conjugado com o artigo 10.º da referida Lei. Não acompanho, de todo, o modo como se procedeu à articulação sistemática das alterações introduzidas pela Lei constante do Acórdão, nem a forma como a teleologia da lei nele foi tratada, pois considero que não têm a mínima correspondência na letra da lei. Ao interpretar determinada norma vertida em preceito legal, o julgador constitucional não pode, tal como resulta das mais elementares regras hermenêuticas, abstrair-se do elemento literal, que se autonomiza da específica vontade dos ocasionais titulares dos órgãos com competência legislativa. Como refere o n.º 2 do artigo 9º do Código Civil, não pode o intérprete considerar um “pensamento legislativo que não tenha na lei um mínimo de correspondência verbal”.
Ora, sendo a letra da lei o ponto de partida de toda a interpretação jurídica é por ela que vou começar. Em meu entender, o artigo 10.º da lei em apreço apresenta claramente duas partes. A primeira estabelece que o disposto no artigo 2.º tem natureza imperativa, o que significa – sem qualquer margem para dúvidas – que a norma constante do artigo 2.º – o período normal de trabalho dos trabalhadores da função pública é de oito horas por dia e quarenta horas por semana – não pode ser derrogada por nenhuma outra. Em princípio, não se admitiriam períodos normais de trabalho inferiores nem superiores. Porém, como o artigo 2.º, n.º 3, da mesma Lei admite expressamente períodos normais de trabalho superiores previstos em diploma próprio, daqui decorre que a norma do n.º 1 do artigo 2.º só não pode ser derrogada por nenhuma outra de sentido mais favorável ao trabalhador.
Por outro lado, a segunda parte da norma do artigo 10.º estipula que o disposto no artigo 2.º prevalece sobre quaisquer leis especiais e instrumentos de regulamentação coletiva, o que significa que, em caso de conflito com outras normas (recorde-se: mais favoráveis ao trabalhador), a norma do artigo 2.º prima, tem supremacia, ou seja, aplica-se em detrimento dessas outras normas, sejam elas anteriores ou posteriores à entrada em vigor da presente lei.
Tal entendimento – quanto a normas legais e convenções coletivas posteriores à entrada em vigor do ato legislativo em apreço – sai reforçado pelo recente Acórdão n.º 793/2013, que concluiu (ainda que contrariamente à opinião por mim ali expressa, em declaração de voto) que: «(…) a definição do período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas, (…) é um aspeto nuclear e estruturante do regime próprio da relação de emprego público, quer em razão da sua importância para os próprios trabalhadores (…), quer como condição relevante para garantir a eficácia, eficiência e qualidade da ação da Administração na prossecução do interesse público (artigo 266.º, n.º 1, da Constituição). Como tal, aquela definição constitui uma «base do regime da função pública», nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea t), da Constituição» [cfr. § 16]. Sucede, porém, que este entendimento, no sentido de qualificar a norma extraída do artigo 2.º da Lei n.º 68/2013 como matéria de “bases” do regime jurídico da função pública, se afigura contraditório com o que agora se sustenta, isto é, com a afirmação de que a norma extraída da conjugação entre os artigos 2.º e 10.º da Lei n.º 68/2013 «não integra uma lei de valor reforçado nos termos do artigo 112.º, n.º 3, da Constituição, [pelo que] o mesmo também não pode impedir leis especiais novas de derrogarem o período normal de trabalho fixado no artigo 2.º» [cfr. § 10].
Com efeito, não só o n.º 2 do artigo 112.º da Constituição determina que os decretos-lei de desenvolvimento de matérias integradas em leis de bases se subordinam a estas, como a doutrina jusconstitucionalista é unânime em qualificar como “leis de valor reforçado” as que versem sobre matéria de“bases” de determinado regime jurídico, por força do artigo 112.º, n.º 3, in fine, da Constituição. Tal significa que o comando injuntivo resultante do artigo 10.º da Lei n.º 68/2013, por ser forçosamente conjugado com o artigo 2.º desse diploma, goza dessa natureza jurídica reforçada e, portanto, sempre impediria – se se aceitasse a sua redação literal – quer a adoção de leis especiais, quer a negociação e celebração de convenções coletivas mais favoráveis aos trabalhadores em funções públicas.
Este é, em meu entender, o único sentido possível a extrair da letra da lei.
Daqui não decorre, evidentemente, que o sentido literal seja o único a ponderar, nem, tão pouco, que aquele seja mesmo determinante – o que, aliás, na atualidade, é totalmente pacífico na Doutrina. As palavras não têm em si mesmas uma qualidade essencial, sendo fundamental o contexto em que se inserem, bem como a finalidade que prosseguem, pelo que se devem levar em linha de conta outros elementos extrínsecos à fixação linguística, a saber, os elementos sistemático, histórico ou teleológico. Note-se, porém, que estes elementos encontram-se, em certo sentido, dependentes do enunciado linguístico. Com efeito, existe um limite à tomada em conta desses outros elementos, o qual é constituído pela sua necessária correspondência verbal.
Posto isto, importa averiguar se, contra um sentido literal unívoco – como se afigura, em meu entender, aquele que acabei de expor relativamente à norma do artigo 2.º conjugado com o artigo 10.º em apreço nos presentes autos – ainda se podem procurar outros pontos de vista interpretativos, designadamente, ainda se pode explorar a via do cânone da interpretação conforme à Constituição.
É certo que a interpretação conforme à Constituição tem sido normalmente utilizada na fiscalização sucessiva concreta da constitucionalidade das normas. Porém, nada impede – e a Doutrina admite-a (cfr. Rui Medeiros, A decisão de inconstitucionalidade, Lisboa, UCP, 1999, p. 396) – que a mesma ocorra em sede de fiscalização sucessiva abstrata, pelo que é perfeitamente legítimo invocá-la nos presentes autos.
Partindo, assim, do pressuposto de que o sentido que o Acórdão atribuiu à norma não encontra qualquer correspondência na letra da lei, coloca-se a questão de saber se a interpretação conforme à Constituição deve ser delimitada negativamente pela letra da lei ou se se deve aceitar uma interpretação corretiva do sentido literal da norma. Ambas as teses têm adeptos na Doutrina (sobre este debate doutrinário, cfr. Rui Medeiros, A decisão de inconstitucionalidade…, p. 303 e ss).
Já o Tribunal Constitucional tem sido muito cauteloso – e até, de certo modo, restritivo – no recurso à interpretação conforme à Constituição, tendo sustentado que “não parece curial, nem, sequer, admissível que o Tribunal Constitucional proceda a uma interpretação conforme à Constituição que subverta de forma clara e inequívoca, a vontade presumida do legislador” (cfr. Acórdão n.º 254/92).
Em tese geral, estou de acordo com a doutrina consagrada nesta Jurisprudência. Entendo, contudo, que ela não é aplicável ao caso em apreciação, na medida em que a letra da lei e a vontade do legislador não se mostram coincidentes. Assim, se se atender somente à letra da lei chegar-se-ia, porventura, à declaração de inconstitucionalidade, na medida em que se violaria o direito à contratação coletiva inserto no artigo 56.ºs, n.º 3 e 4, da CRP.
Se, pelo contrário, se tiver em consideração a vontade inequívoca do legislador tal declaração poderá, eventualmente, ser afastada. Aliás, em consonância com o que sustentei no Acórdão n.º 602/2013 relativamente ao artigo 7.º da Lei n.º 23/2012, de 25 de junho, publicada no Diário da República, 1.ª série, n.º 121.
É certo que o julgador constitucional se deve manter equidistante dos demais poderes constitucionalmente consagrados, na qualidade de guardião da Constituição, mas deve igualmente, cingir-se ao seu papel de “legislador negativo”.
Assim sendo, sempre que possível, o julgador constitucional deve abster-se de interferir, de modo desnecessário e excessivamente oneroso – e mesmo que se afigure como altamente provável, tal como sucede com a norma ora em apreço, a verificação de uma inconstitucionalidade normativa –, desde que encontre outros mecanismos interpretativos que possam contornar os efeitos que acarretam uma declaração de inconstitucionalidade. Ora, neste caso, atenta a vontade inequívoca do legislador em permitir a vigência de leis especiais e de convenções coletivas de trabalho que derroguem, em sentido mais favorável aos trabalhadores em funções públicas, a fixação de um horário máximo de 40 horas semanais e de 8 horas diárias, não faria sentido que o Tribunal Constitucional insistisse numa declaração de inconstitucionalidade. Ainda que da norma em apreço se extraia um sentido prescritivo inconstitucional, o julgador constitucional pode (e, a meu ver, deve) interpretá-la de tal modo que a mesma seja conforme aos comandos e vinculações jurídico-constitucionais.
Com efeito, a vontade expressa, de forma clara e inequívoca, pelo legislador quer na exposição de motivos da proposta de lei n.º 153/XII que deu lugar à lei n.º 68/2013 quer na “Nota Explicativa” apensa aos presentes autos e quer ainda na proposta de lei n.º 184/XII que se encontra pendente para aprovação como lei na Assembleia da República converge no sentido de considerar que não se pretendeu – nem se pretende no futuro – que a norma do artigo 2.º prevaleça sobre futuros instrumentos de regulamentação coletiva.
Com efeito, analisados os trabalhos preparatórios da Lei n.º 68/2013, nada permite concluir que o legislador tenha pretendido afastar para o futuro a existência de normas mais favoráveis ao trabalhador em matéria de período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas. Ou seja, a imperatividade do artigo 10.º não significa que, para futuro, o legislador e os instrumentos de regulamentação coletiva não possam estabelecer períodos de trabalho inferiores ao estipulado no artigo 2.º da Lei n.º 68/2013.
Da discussão na generalidade da proposta de lei na Assembleia da República pode inferir-se que o proponente da norma pretendeu a equiparação entre o setor público e o setor privado em matéria de período normal de trabalho (cfr. «Diário da Assembleia da República», I Série, n.º 112, de 12 de julho de 2013, p. 5. Ou seja, a vontade presumida do proponente do ato seria aplicar regime idêntico ao do Código do Trabalho, o qual admite redução dos limites máximos de tempo de trabalho por instrumento de regulamentação coletiva (artigo 203.º, n.º 4), como melhor se verá adiante.
Em segundo lugar, a “Nota Explicativa”, proveniente do Ministério das Finanças, apresentada pelo Governo, enquanto órgão proponente da lei em causa, no âmbito destes autos, expressa claramente a ideia que a Lei n.º 68/2013 não teria alterado as normas, constantes de outras leis, que “permitem, por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, a redução daqueles limites máximos (…)” (cfr. § 43), visto que a referida lei não impediria “a redução do novo limite máximo de duração de trabalho, continuando a proporcionar, à semelhança do que sucede no setor privado, a manutenção do espaço anteriormente concedido à autonomia coletiva para negociar períodos de trabalho abaixo daqueles limites (v. g. o referido artigo 130.º do RCTFP)” (§§ 47 e 48). Tudo isto para concluir que“já que a imperatividade do artigo 10.º da Lei n.º 68/2013 não parametriza o comportamento futuro do legislador nem esta lei assume valor reforçado nos termos do artigo 112.º da CRP» (§ 48).
Por último, acrescente-se – ainda que a título complementar – que a iniciativa do Governo da República, que corresponde à Proposta de Lei n.º 184/XII que pretende instituir um regime geral do trabalho em funções públicas remete a matéria das relações entre a lei e os instrumentos de regulamentação coletiva e entre aquelas fontes e o contrato de trabalho em funções públicas, bem como a matéria do tempo de trabalho e do tempo de não trabalho para o Código do Trabalho (cfr. artigo 4.º, alíneas a), g) h), respetivamente, da referida Proposta), o que implica que, num futuro que se julga próximo, o legislador pretende adotar a solução do Código de Trabalho, a qual consta do artigo 203.º. O n.º 1 deste preceito estabelece que “o período normal de trabalho não pode exceder oito horas por dia e quarenta horas por semana”, mas admite no n.º 4 que “os limites máximos do período normal de trabalho podem ser reduzidos por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, não podendo daí resultar diminuição da retribuição dos trabalhadores.
Em suma, o elemento literal é suscetível de ser afastado se se aceitar que o legislador não terá querido efetivamente afastar a possibilidade de períodos de trabalho inferiores a 8 horas diárias e 40 horas semanais dos trabalhadores em funções públicas. Mas isto significa que se afasta a letra da lei e se admite uma interpretação corretiva da mesma.  
Aqui chegados, a questão a resolver é a de saber se se deve aceitar esta interpretação corretiva, em nome de alguns princípios caros à ordem jurídica constitucional, como é o caso, por exemplo, do princípio da hierarquia constitucional e da unidade da ordem jurídica, o princípio da segurança jurídica, o princípio do aproveitamento dos atos normativos, o princípio da presunção da constitucionalidade dos atos normativos e o princípio da proporcionalidade (cfr. Carlos Blanco de Morais, Justiça Constitucional, tomo II, 2.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2011, p. 381 e ss), ou se, pelo contrário, se deve dar prevalência ao princípio do expurgo das normas inconstitucionais da ordem jurídica portuguesa, optando pela declaração de inconstitucionalidade da norma em apreço.
Não obstante a última solução apontada me parecer, em tese geral, mais consentânea com o sistema português de fiscalização da constitucionalidade de normas jurídicas, na medida em que as decisões interpretativas de rejeição, ao contrário das decisões interpretativas de acolhimento, não gozam dos efeitos jurídicos previstos no artigo 282.º da CRP, admito, no entanto, em casos excecionais, como, em meu entender, é o que se está a analisar, aceitar a interpretação conforme com a Constituição mesmo em sentido contrário à letra da lei, se for evidente que o legislador disse o contrário daquilo que teria querido dizer.
Ora, no caso em apreço, já apontei vários argumentos que convergem nesse sentido.
Assim sendo, é com base na interpretação conforme à Constituição que voto no sentido da declaração de não inconstitucionalidade do artigo 2.º em conjugação com o artigo 10.º da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto.      
Ana Guerra Martins



DECLARAÇÃO DE VOTO

1. Acompanhei a decisão de não inconstitucionalidade da norma constante do artigo 2.º da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, que consagra o período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas, fixando-o em oito horas por dia e quarenta horas por semana.
Subscrevi, nessa parte, embora com alguns pontos de discordância, o essencial da fundamentação do Acórdão.
Os pontos da fundamentação em que mais me distancio – designadamente no que respeita à valoração do princípio da proteção da confiança – não me conduziriam a considerar violados os parâmetros apreciados, pelo que sempre chegaria a idêntica solução, numa leitura da norma que correspondesse, apenas e só, à fixação de um horário máximo de trabalho de oito horas por dia e quarenta horas por semana.

2. Contudo, a minha leitura das normas em apreciação, para a qual é decisivo o conteúdo e alcance do artigo 10.º da Lei n.º 68/2013, não coincide com a do Acórdão (teria subscrito a que foi, então, proposta no memorando apresentado pelo Senhor Conselheiro Presidente Joaquim de Sousa Ribeiro, que pode ser apreendida na respetiva declaração de voto).
Em tal leitura não ignoro que o proponente da Lei n.º 68/2013 veio, em nota explicativa junta ao processo de apreciação da constitucionalidade, sustentar uma diferente interpretação. Mas considerei-a, desde logo, demasiado afastada do teor literal de um dos preceitos que a suporta. Pelo que, como afirmámos já, o entendimento que fizemos do que hoje, de facto, dispõe a lei, não coincide com a interpretação avançada pelo Acórdão (nessa matéria são, aliás, bem visíveis as variadíssimas e contraditórias leituras que a norma provocou, para tal bastando atentar nas manifestações inscritas nas declarações de voto apostas ao presente Acórdão, até por aqueles que se manifestaram pela inexistência de vício gerador de inconstitucionalidade).

3. Assim, apesar de me ter pronunciado no sentido da não inconstitucionalidade da norma do artigo 2.º, quando consagra o período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas, fixando-o em oito horas por dia e quarenta horas por semana, fiquei vencida ao votar a inconstitucionalidade da norma resultante da interpretação conjugada do mesmo artigo 2.º com o artigo 10.º da Lei n.º 68/2013.
Dela resulta, a meu ver, que, ao mesmo tempo que se impõe uma jornada de trabalho de trabalho de 8 horas diárias e 40 horas semanais (aumento, em si mesmo, não inconstitucional), também se proíbe que lei especial ou instrumento de regulamentação coletiva de trabalho possam prever um período normal de trabalho inferior.
A norma do artigo 2.º, que vem impugnada, fixou a duração normal da jornada de trabalho, sem prejuízo das exceções de períodos normais de trabalho superiores, que possam ser previstas em diploma próprio, autorizadas pelo seu n.º 3. Deste modo, deu cumprimento à imposição constitucional prevista no artigo 59.º, n.º 1, alínea d), da Constituição, que exige que se estabeleça um limite máximo da jornada de trabalho (imposição de realização imperativa, independentemente de cuidarmos aqui de saber se o é por ser um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, ou por constar de uma norma constitucional suficientemente precisa, com caráter de regra, pelo que seria direta e imediatamente aplicável). A fixação deste limite é um princípio estruturante da Função Pública para os efeitos da delimitação de competência legislativa da Assembleia da República (artigo 165.º, n.º 1 alínea t) – veja-se o recente Acórdão n.º 793/2013).
Ora, na norma resultante da interpretação conjugada do disposto no artigo 2.º com o disposto no artigo 10.º, ao ser imposta uma jornada normal de trabalho que não pode sofrer alteração por via de instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, está a fixar-se o limite máximo da jornada de trabalho e, simultaneamente, por este valor ser imodificável, a estabelecer-se o seu limite mínimo obrigatório, coincidente com o período normal de trabalho de 8 horas diárias e 40 horas semanais. Ou seja, o artigo 10.º, ao estabelecer a imperatividade e prevalência do regime previsto no artigo 2.º, define o alcance vinculativo deste último.
Ao afastar a possibilidade de fixação de regime mais favorável por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, deve considerar-se que esta solução normativa viola o direito à contratação coletiva, previsto no artigo 56.º, n.º 3, da Constituição.
Na verdade, como a entendemos, a norma do artigo 10.º determina que a previsão do artigo 2.º (que fixa o horário de 8 horas diárias e 40 horas semanais) seja imperativa, sobrepondo-se às convenções coletivas de trabalho que venham a ser celebradas no futuro, e que prevaleça sobre as convenções já celebradas (para além de leis especiais, o que, naturalmente, não está aqui em causa).
Em nosso entender, a lei pode, e deve, estabelecer um limite máximo da jornada de trabalho, e o Tribunal Constitucional – no presente Acórdão – não censura o limite fixado nas 8 horas diárias e 40 horas semanais. Mas já não deveria ser permitido ao legislador vedar a fixação, mediante instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, de horários que, cumprindo o limite superior fixado por aquele padrão normal, pudessem vir a ser convencionados, para o futuro, beneficiando o trabalhador. Do mesmo modo, em meu entender, será constitucionalmente censurável que da norma em apreciação resulte a prevalência do horário normal agora fixado, sobre contratos coletivos de trabalho pretéritos que hajam fixado um horário de trabalho inferior.
Ora, no caso da norma conjugada em apreço, não só o limite horário definido no artigo 2.º prevalece sobre o anteriormente acordado na contratação coletiva, como também veda, para o futuro, que um instrumento de regulamentação coletiva de trabalho se desvie desse teto imperativamente estipulado na lei, favorecendo o trabalhador.
Cabendo à lei fixar o horário normal de trabalho – ao estabelecer o limite máximo da jornada de trabalho (artigo 59.º da Constituição) –, o legislador não pode retirar, por completo, à disponibilidade da contratação coletiva, a modelação do horário de trabalho, desde que cumprido aquele limite.
A modelação do concreto horário de trabalho – negociado a partir do valor de referência necessariamente fixado por lei – integra o núcleo essencial do direito à contratação coletiva (artigo 56.º, n.º 3, da Constituição). Pelo que não pode deixar de se considerar constitucionalmente desconforme.

Em face da interpretação alcançada da conjugação do artigo 2.º com o artigo 10.º, esta seria, aliás, a única posição coerente com a que anteriormente assumi relativamente às normas constantes do artigo 7.º do Código de Trabalho. Considerei, então, que tais normas, embora não vedando a celebração de novo instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, impunham a cessação ou suspensão, antes do seu termo, da eficácia de instrumentos de regulamentação coletiva em vigor, já que sobrepunham disposições do Código de Trabalho às previsões constantes de instrumentos de regulamentação coletiva celebrados antes da entrada em vigor da Lei n.º 23/2012, de modo a tornar imperativas aquelas disposições, sempre que estes instrumentos fossem mais favoráveis para o trabalhador (para isso fazendo cessar a sua eficácia, ou suspendendo-a).
Por essa razão, considerei que também aquelas normas violavam o direito de contratação coletiva (artigo 56.º, n.º 3, da Constituição), abalando a confiança naqueles instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho (declaração de voto aposta ao Acórdão n.º 602/2013).
No caso em apreço, a proibição da modelação mais favorável ao trabalhador opera nos dois sentidos: para o futuro (interpretação negada pelo Acórdão), impedindo a consagração, por via de negociação coletiva, de alterações ao período de trabalho normal dos trabalhadores em funções públicas, de sentido mais favorável; para o passado, fazendo cessar os instrumentos de que resultasse um horário laboral inferior ao limite agora fixado.

4. Foi pelas razões sumariamente expostas que, embora não me havendo pronunciado pela inconstitucionalidade da norma do artigo 2.º em si mesmo considerado, quando prevê a fixação do horário normal de trabalho nas 8 horas diárias e 40 semanais, votei a inconstitucionalidade da norma extraída da conjugação do artigo 2.º com o artigo 10.º, havendo, nessa parte, ficado vencida, desde logo, em virtude do entendimento diverso que deles fez o presente Acórdão.

Catarina Sarmento e Castro


DECLARAÇÃO DE VOTO

            A) Divergi da Decisão do presente Acórdão no que respeita à norma do artigo 10.º da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, pelas razões essenciais que de seguida se explicitam.
O artigo 10.º da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, com a epígrafe «Prevalência», determina que «O disposto no artigo 2.º tem natureza imperativa e prevalece sobre quaisquer leis especiais e instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho».
Acolhe-se, no essencial, o Acórdão e a sua fundamentação quando afirma, em conclusão, quanto ao sentido das normas objeto do pedido de fiscalização, que o que está em causa no artigo 2.º da Lei n.º 68/2013, mesmo lido em articulação com o artigo 10.º da mesma Lei, é o aumento da duração do período normal de trabalho de referência dos trabalhadores em funções públicas para oito horas diárias e quarenta horas semanais (II, A) 15) e, ainda, que aquela norma, quando confrontada com os parâmetros constitucionais invocados pelos requerentes, não se afigura contrária à Constituição da República Portuguesa (II, B) a F)).
Não obstante entende-se, quanto ao sentido das normas objeto do pedido de fiscalização, que caberia ainda no pedido a apreciação da conformidade constitucional da norma do artigo 10.º na parte em que, por referência à nova duração do período normal de trabalho de referência dos trabalhadores em funções públicas prevista no artigo 2.º, determina a prevalência deste sobre os instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho anteriores ao início da vigência da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto – ainda que por confronto com um parâmetro constitucional não invocado pelos requerentes. 
O resultado daquela norma do artigo 10.º, por referência à nova duração do período normal de trabalho de referência dos trabalhadores em funções públicas prevista no artigo 2.º, é o de fazer prevalecer o regime ora definido pelo legislador, menos favorável ao trabalhador do que a anterior duração do período normal de trabalho de referência, sobre os regimes adotados por via da contratualização coletiva que se revelem mais favoráveis àquele, fazendo cessar os efeitos de convenções coletivas já firmadas – na medida em que não impede a consagração, por via de nova negociação coletiva, de alterações ao novo período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas em sentido mais favorável a esses trabalhadores.
Da aplicação da norma do artigo 10.º em causa, por referência ao período normal de trabalho de referência previsto no artigo 2.º, resulta que aquela afeta o exercício concreto, já ocorrido, do direito fundamental de contratação coletiva, ao determinar a prevalência do novo período normal de trabalho de referência sobre instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho já celebrados e, assim, determinando uma conformação externa e a posteriori do conteúdo das convenções coletivas afetadas.
Tal ingerência agora operada no conteúdo do direito de contratação coletiva afigura-se excessiva à luz do disposto no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, já que não se consideram prevalecentes os objetivos a prosseguir, indicados na Proposta de Lei n.º 153/XII que deu origem ao diploma sindicado – a aplicação de um mesmo período normal de trabalho a todos os trabalhadores que exercem funções públicas e a pretendida maior convergência entre os trabalhadores do setor público e do setor privado, com ganhos para a prestação dos serviços públicos e para as populações que os utilizam (por via do alargamento do número de horas de atendimento semanal dos serviços públicos) e para a competitividade da economia nacional – quando confrontados com o valor constitucionalmente protegido da negociação coletiva já vertida em concretas convenções coletivas de trabalho vigentes.
 O resultado da prevalência é a afetação do regime (ou regimes) resultante de instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, livremente celebrado pelas estruturas associativas que subscreveram os instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho. Para mais tratando-se de domínio do contrato de trabalho em funções públicas incluído na reserva de contratação coletiva, as razões que terão determinado a opção do legislador não justificarão a pretendida e efetiva ablação do exercício, em concreto, do direito fundamental de contratação coletiva.
Acresce que a ingerência em causa também se afigura desnecessária na medida em que se dirija a instrumentos de contratação coletiva necessariamente sujeitos a um termo (cfr. artigo 363.º e seguintes do Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas) que determinará num futuro próximo, se antes não for acordado pelas partes, a renegociação das cláusulas contratuais agora postas em crise, fazendo participar as estruturas representativas dos trabalhadores, no exercício do direito de contratação coletiva (artigo 56.º, n.ºs 3 e 4, da CRP) e os representantes das entidades empregadoras públicas.
Atendendo ao exposto, a nossa pronúncia foi no sentido da inconstitucionalidade da norma do artigo 10.º da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, na parte em que determina a prevalência do disposto no artigo 2.º – em matéria de duração do período normal de trabalho de referência dos trabalhadores em funções públicas – sobre instrumentos de regulamentação coletiva de trabalhos anteriores ao início de vigência da mesma Lei, por se entender que se verifica uma restrição desproporcionada do direito consagrado no artigo 56.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.

B) Divergi, parcialmente, da fundamentação do presente acórdão no que respeita à apreciação da violação do princípio da proteção da confiança, pelas razões essenciais que de seguida se explicitam.
Não se acolhe a fundamentação do Acórdão na parte em que admite, por duas ordens de razões – a tendência para a laboralização da relação de emprego público (e assim também em matéria de duração do trabalho) e, mercê da conexão entre horário de trabalho e trabalho extraordinário, o impacto do aumento do período normal de trabalho sobre os custos associados ao trabalho e, por essa, via, sobre a redução da despesa pública –, que não se pode falar de justificada expectativa de manutenção do status quo e, assim, de uma situação de confiança digna de tutela.
Entende-se que, não obstante ambas as ordens de razões poderem corresponder a propósitos do legislador no quadro da sua margem de conformação legislativa, ainda assim é de admitir que possam existir expectativas legítimas, justificadas em boas razões e que os privados tenham feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade do «comportamento» estadual – não só por força da evolução passada da jornada normal de trabalho da função pública, no sentido da sua diminuição, mas também por força da necessária organização da sua vida privada e familiar em função do regime vigente até à entrada em vigor da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto – e que tais expectativas legítimas se afiguram merecedoras de tutela.
O incremento do período normal de trabalho de referência dos trabalhadores em funções públicas – sem prejuízo da fixação de períodos de trabalho inferiores, designadamente por novo instrumento de regulamentação coletiva de trabalho – afigura-se gravosa pela intensidade do sacrifício que implica em virtude quer da redução do período de descanso e de lazer, quer da necessidade de reorganização da vida privada e familiar em função do novo período normal de trabalho de referência – a qual pode implicar também, entre outros aspetos organizativos, custos acrescidos para o trabalhador por força dos seus compromissos familiares e relacionados com a educação do seu agregado familiar e a assistência ao mesmo, os quais, num contexto de redução, ainda que temporário, do rendimento disponível auferido pelos trabalhadores em funções públicas, podem, sobretudo para os que auferem rendimentos mais baixos, assumir um peso significativo no seu orçamento familiar.
Isto sem prejuízo de se reconhecer que possam existir razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento estadual e, assim, a alteração legislativa sindicada – a redução de custos associados ao trabalho extraordinário e, por essa via, a redução, de modo sustentado, da despesa pública. Admite-se, pois, que o incremento do período normal de trabalho de referência dos trabalhadores em funções públicas pode constituir uma medida necessária e adequada ao fim de interesse público a prosseguir pelo legislador, no âmbito da sua margem de conformação legislativa. E, na medida em que deixa ao trabalhador um período diário que lhe permite ainda o gozo de outros direitos fundamentais, como o direito ao repouso e aos lazeres – e, apesar de com um esforço acrescido, o direito à conciliação da atividade profissional com a vida familiar – não se afigura desproporcionada.

Maria José Rangel de Mesquita



                            DECLARAÇÃO DE VOTO


O presente acórdão optou por efetuar uma interpretação dos artigos 2.º e 10.º, da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, no sentido de que a consagração de novos limites máximos de referência do tempo de trabalho diário e semanal dos trabalhadores em funções públicas se impunham quer a leis especiais, quer a instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho pré-existentes, derrogando quaisquer disposições nessa matéria, mas não impedia a celebração de futuros instrumentos de regulamentação coletiva que acordassem na prestação de trabalho por tempos inferiores aos novos limites máximos.
Se esta interpretação corretiva da letra da lei, salva a constitucionalidade da parte do artigo 10.º, da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, onde se prescreve que o disposto no artigo 2.º, tem natureza imperativa, não afasta o problema da constitucionalidade da parte do mesmo preceito que confere prevalência ao novo período normal de trabalho fixado no artigo 2.º, da mesma Lei, sobre os instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho celebrados em data anterior à entrada em vigor do diploma sob apreciação.
Incluindo-se esta dimensão normativa no objeto do pedido formulado pelos deputados do Partido Socialista e não estando este Tribunal limitado na sua apreciação pelos parâmetros constitucionais invocados pelos Requerentes, não podia o Tribunal Constitucional omitir a confrontação daquele segmento com o direito à contratação coletiva constante do artigo 56.º, n.º 3 e 4, da Constituição.
Ora, recorrendo ao raciocínio efetuado aquando da fiscalização do disposto no artigo 7.º da Lei n.º 23/2012, de 25 de junho, que recentemente introduziu alterações ao Código de Trabalho (Acórdão n.º 602/13), constata-se que as normas relativas à duração do trabalho diário e semanal não integram um regime caracterizado pela sua injuntividade, com exceção da definição do seu limite máximo; bem pelo contrário, tais matérias, pela sua conexão imediata com os direitos dos trabalhadores ao repouso, à conciliação da atividade profissional com a vida familiar e à proteção da família consagrados no artigo 59.º, n.º 1, da Constituição, são naturalmente vocacionadas para serem objeto de negociação coletiva, podendo ser definidas em termos mais favoráveis ao trabalhador, em instrumento de regulamentação coletiva.
O disposto no artigo 10.º, da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, na parte em que confere prevalência ao novo período normal de trabalho fixado no artigo 2.º, da mesma Lei, sobre os instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho celebrados em data anterior à entrada em vigor do diploma sob apreciação, traduz-se, por conseguinte, numa intromissão ilegítima do legislador num campo que ele próprio reconhece estar aberto à livre negociação dos trabalhadores e entidade patronal, neste caso o próprio Estado, uma vez que desconsidera o resultado dessas negociações.
Extinguir os efeitos vinculativos de uma convenção coletiva, produzidos “nos termos da lei” em vigor no momento da celebração, por lei posterior, em matéria que se mantém na disponibilidade dos contratantes, é um atentado à garantia institucional que o reconhecimento constitucional do direito à contratação coletiva subentende.
Por isso, mesmo seguindo a interpretação corretiva adotada por este acórdão do disposto no artigo 10.º, da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, a norma resultante dessa leitura deveria ter sido declarada inconstitucional, por violação do artigo 56.º, n.º 3 e 4, da Constituição.

João Cura Mariano



DECLARAÇÃO DE VOTO


Importa, desde logo, deixar claro que a minha divergência não reside na conformidade constitucional das normas constantes do artigo 2.º da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, na medida em que estabelecem o aumento da duração do período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas para oito horas diárias e quarenta horas semanais. O problema reside na articulação desse preceito com o disposto no artigo 10.º da Lei n.º 68/2013, mormente com a imperatividade que estatui para tal período normal de trabalho.
Com efeito, não vejo como possível, face ao peso e relevo fulcral que a imperatividade assume na relação entre fontes normativas juslaborais, que a hermenêutica acolhida na posição que encontrou vencimento possa subsistir, sem contrariar a letra do preceituado no artigo 10.º. Sobretudo quando se confronta essa formulação - que se presumecuidada - com a que se encontra no artigo 7.º da Lei n.º 23/2012, de 25 de junho, que introduziu alterações ao Código do Trabalho, e onde se encontra, de forma expressa, a aplicabilidade do regime então fixada aos instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho celebrados antes da sua entrada em vigor, deixando margem para a contratação coletiva futura consagrar regras mais favoráveis. E, porque assim foi, cabe notar, entendi que tal normação não afetava o núcleo essencial da autonomia coletiva, em termos de conduzir à inconstitucionalidade de tais normas, face aos artigos 56.º, n.º 3 e 4, e 18.º, n.º 2, da Constituição, conforme declaração aposta no Acórdão n.º 602/2013.
Ora, a normação em apreço, na conjugação que cabe estabelecer entre o artigo 2.º e o artigo 10.º da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, não se limita a estabelecer a imediata aplicabilidade e a automática prevalência do novo regime legal. Em virtude da imperatividade com que foi editado, o regime projeta igualmente para o futuro a inalterabilidade para menos da jornada de trabalho diária e semanal por via de instrumentos de regulação coletiva, sem que se perfilem interesse constitucionalmente relevantes para remover doravante da contratação coletiva, no âmbito do Regime de Contrato de Trabalho em Funções Públicas, tal elemento fulcral, peça nuclear para a conformação dos períodos de repouso e lazer do trabalhador, incluindo naturalmente o trabalhador em funções públicas, e, bem assim, das condições para a conciliação da atividade profissional com a vida familiar. A essencialidade desse domínio de regulação decorre claramente da inclusão do limite máximo da jornada de trabalho na alínea d), do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição.
Assim, e em linha com o entendimento que defendi no âmbito do Acórdão n.º 602/2013, pronunciei-me pela violação dos artigos 56.º, n.º 3 e 4, e 18.º, n.º 2, da Constituição, na parte em que a normação decorrente da conjugação entre os artigos 2.º e 10.º da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, impede – veda – o estabelecimento por instrumentos de regulação coletiva para o futuro de período normal de trabalho mais favorável, pela afetação do núcleo essencial do direito de contratação coletiva que comporta.

Fernando Vaz Ventura

DECLARAÇÃO DE VOTO

Votei vencido quanto à decisão de não declaração de inconstitucionalidade da norma do artigo 2º em conjugação com a do artigo 10º da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, quando interpretada no sentido de que o disposto nesse preceito tem natureza imperativa e prevalecente sobre quaisquer outras disposições legais ou convencionais.
A Lei n.º 68/2013 pretendeu estabelecer a duração do período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas, alargando-o para oito horas por dia e quarenta horas por semana, e alterando em conformidade o Regime de Contrato de Trabalho em Funções Públicas (RCTFP), aplicável aos trabalhadores contratados, e o Decreto-Lei n.º 259/98, de 18 de agosto, que define as regras e os princípios gerais em matéria de duração de trabalho para os trabalhadores com vínculo de nomeação.
A técnica legislativa adotada foi a de introduzir um princípio regra, que consta do artigo 2º, e não prejudica a existência de horários específicos e de períodos normais de trabalho superiores (n.ºs 2 e 3), e adaptar ao período normal de trabalho de referência, por via dos subsequentes artigos 3º e 4º, as disposições do RCTFP e do Decreto-Lei n.º 259/98 que se referissem especificamente ao tempo de trabalho. A necessidade de operar expressamente essas alterações, como sucede relativamente aos artigos 123º, 126º, 127º, 127º-A, 127º-C, 127º-D, 131º e 155º do RCTFP e aos artigos 3º, 7º, 8º, 16º e 17º do Decreto-Lei n.º 259/98, deve-se ao facto de estarem aí em causa disposições que continham uma menção específica a um período de referência (período de atendimento, adaptabilidade, banco de horas, duração média do trabalho, trabalho noturno), que carecia de ser adaptado em função do novo regime regra fixado pelo artigo 2º para o período normal de trabalho.
A norma do artigo 10º da Lei n.º 68/2013 estabelece, por seu turno, que o disposto nesse artigo 2º «tem natureza imperativa e prevalece sobre quaisquer leis especiais e instrumentos e regulamentação coletiva de trabalho». Essa norma tem dois segmentos prescritivos: por um lado, qualifica a disposição que fixa o período normal de trabalho como imperativa, impedindo – face ao significado jurídico corrente que esta expressão possui no direito laboral – que futuros instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho possam convencionar horários de trabalho inferiores ao estabelecido por essa disposição; por outro lado, confere prevalência a esse regime-regra em relação a quaisquer outras disposições legais ou convencionais, significando a derrogação tácita de preceitos, ainda que incluídos no RCTFP ou no Decreto-Lei n.º 259/98, que possam instituir um regime jurídico divergente.
Nesse sentido, a Lei n.º 68/2013 deve ser entendida como instituindo o regime geral em matéria de período normal de trabalho, relativamente ao qual quaisquer outros diplomas legais – ainda que possam caracterizar-se tecnicamente como leis gerais – são tidos, para o efeito previsto no artigo 10º, como constituindo regimes especiais que cedem perante o disposto naquele artigo 2º.
Deve assim ter-se como tacitamente revogada a disposição do artigo 130º do RCTFP, que permite a redução dos limites máximos dos períodos normais de trabalho, bem como a do artigo 7º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 259/98, que admite a possibilidade de serem estabelecidos regimes de duração semanal inferiores através de despacho dos membros do Governo responsável pelo serviço e que tiver a seu cargo a Administração Pública.
Neste contexto, não tem qualquer relevo hermenêutico no plano de uma interpretação sistemática da lei, que o legislador tenha alterado disposições do RCTFP ou do Decreto-Lei n.º 259/98 que se referiam especificamente ao período normal de trabalho e simultaneamente se tenha abstido de modificar outros preceitos desses diplomas, que possam conter um regime divergente em relação ao regime geral definido no artigo 2º. Essa é uma mera consequência da técnica legislativa utilizada. O legislador optou por definir um princípio geral em matéria de horário normal de trabalho, fazendo-o prevalecer sobre quaisquer disposições em contrário, e modificou a redação de preceitos contidos em diplomas especiais apenas na medida do estritamente necessário à conformação do estabelecido nesses preceitos com o regime regra. Não existe, por outro lado, qualquer incoerência no sistema visto que devem ter-se como tacitamente derrogadas quaisquer disposições que contrariem o regime geral, sendo justamente essa a função da regra de prevalência que decorre da segunda parte do artigo 10º da Lei n.º 68/2013.
Por outro lado, o sentido interpretativo a atribuir a este preceito, nos termos agora expostos, além de ser aquele que mais se aproxima da letra da lei, é o único que se mostra consentâneo com a teleologia do diploma. Como resulta da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 153/XII, que deu origem à Lei n.º 68/2013, a alteração do período normal de trabalho de 35 para 40 horas semanais visa obter uma maior convergência entre os trabalhadores do setor público e do setor privado, com vantagens para a prestação dos serviços públicos para as populações que os utilizam e para a competitividade da própria economia nacional, aproximando, assim, a média nacional de horas de trabalho da média dos países da OCDE, além de se justificar por razões de contenção orçamental. Sendo estes os objetivos do legislador, seria inteiramente incongruente que o princípio geral em matéria de período normal de trabalho, que se pretendeu instituir como padrão uniformizador, em ordem à dita convergência com o setor privado, pudesse ser afinal afastado mediante a possibilidade de fixação de horários inferiores nos termos gerais do disposto no artigo 130º do RCTFP e do artigo 7º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 259/98 e que o efeito prático da pretendida uniformização não fosse mais de que eliminar eventuais disposições avulsas que contivessem um regime divergente.
Por outro lado, havendo de entender-se a norma do artigo 2º, interpretada conjugadamente com a do artigo 10º, como possuindo um caráter de imperatividade, ela tem necessariamente o sentido de impedir para futuro a celebração de convenções coletivas de trabalho que se destinem a fixar horários de trabalho com limites inferiores ao previsto no regime geral.
E, nessa perspetiva, a norma afronta o direito à contratação coletiva reconhecido pelo artigo 56º, n.º 3, da Constituição.
Esta disposição, ao garantir às associações sindicais o direito de contratação coletiva «nos termos da lei», estabelece uma reserva legal de conformação do direito, impondo ao legislador a delimitação negativa do conteúdo das convenções coletivas de modo a assegurar um mínimo de eficácia constitucionalmente relevante e garantir um conteúdo útil próprio. Gozando de liberdade conformativa, ao legislador está vedado afetar ou modificar o conteúdo essencial do direito.
Embora a Constituição não faça alusão expressa às matérias que poderão ser objeto de contratação coletiva, não deixa de fornecer contributos relevantes para a delimitação do seu âmbito na medida em que comete às associações sindicais a defesa e promoção «dos direitos e interesses dos trabalhadores» (artigo 56º, n.º 1) e enuncia um conjunto de direitos dos trabalhadores e de imposições sobre as condições de trabalho (artigo 59º, n.º 1). Estas normas e princípios constitucionais, que incluem o direito ao limite máximo da jornada de trabalho e ao descanso semanal, não podem deixar de ser tidas como referência para a delimitação do núcleo duro típico das matérias que constituirão o objeto próprio das convenções coletivas (VIEIRA DE ANDRADE/FERNANDA MAÇÃS, Contratação Coletiva e Benefícios Complementares de Segurança Social, Scientia Ivridica, Maio-Agosto de 2001, Tomo L, n.º 290, pág. 34)
Ao excluir da contratação coletiva a matéria respeitante à fixação do horário de trabalho, ao fazer caducar as convenções coletivas vigentes e impedir que novos instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho possam estabelecer condições mais favoráveis (por a elas se opor a norma imperativa do artigo 2º da Lei n.º 63/2013), o legislador efetua uma restrição ao conteúdo essencial do direito fundamental que lhe é vedada pelo artigo 18º, n.º 3, in fine da Constituição. E que, para além disso, não cumpre as exigências atinentes ao princípio da proporcionalidade a que se refere o n.º 2 desse preceito. De facto, poderia entender-se que a medida é idónea à satisfação de valores constitucionalmente relevantes tal como seja o incremento da produtividade, a diminuição do custo do trabalho e a melhoria da prestação de serviços aos cidadãos; mas de nenhum modo é um meio necessário ou indispensável para a satisfação desses interesses e que se situe numa justa medida em relação aos fins a realizar, visto que a fixação de um horário de trabalho mais favorável do que aquele que consta do regime geral, por via da contratação coletiva, só poderia ser obtida por acordo das partes e com base na realização de interesses que ao Estado, enquanto entidade empregadora, sempre lhe caberia prosseguir e defender.
Votei por isso a inconstitucionalidade da norma do artigo 2º em conjugação com a do artigo 10º da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, na parte em que impede a celebração futura de convenções coletivas de trabalho de sentido mais favorável, por violação do direito à contratação coletiva.

Carlos Fernandes Cadilha


DECLARAÇÃO DE VOTO


1.     Começo por deixar bem claro que as razões da posição dissidente que assumi nada têm a ver com o disposto no artigo 2.º da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, em si mesmo considerado. Considero, na verdade, que a fixação do período normal dos trabalhadores em funções públicas em oito horas diárias e quarenta semanais, com possibilidade de previsão de períodos normais de trabalho superiores, não seria constitucionalmente desconforme, se não sofresse a incidência do disposto no artigo 10.º da mesma lei.
Simplesmente, a conjugação entre os dois preceitos é inevitável. Desde logo por força do próprio conteúdo deste artigo, que expressamente se destina – e é essa a sua única função – a fixar o sentido vinculativo do artigo 2.º Mas a consideração isolada das normas do artigo 2.º também não é possível por obediência ao princípio do pedido, já que o primeiro grupo de requerentes solicita a apreciação e declaração de inconstitucionalidade das “normas constantes do artigo 2.º na interpretação conjugada com a norma constante do artigo 10.º”
Do teor do artigo 10.º resulta que o artigo 2.º vale com a força vinculativa que aquele artigo lhe inoculou. Sendo assim, é verdadeiramente crucial estabelecer o significado prescritivo do enunciado no artigo 10.º, para se medir o alcance da mutação legislativa operada pela Lei n.º 68/2013, ao fixar um mais dilatado período normal de trabalho em funções públicas. E essa tarefa, tratando-se de fiscalização abstrata, cabe ao Tribunal Constitucional, uma vez que, ao contrário da fiscalização concreta, o conteúdo e alcance da norma a fiscalizar não são um dado, resultante da atividade interpretativa do tribunal a quo.
Sob a epígrafe “prevalência”, o artigo 10.º reza assim: «O disposto no artigo 2.º tem natureza imperativa e prevalece sobre quaisquer leis especiais e instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho».
Numa interpretação objetivista, melhor correspondente ao “horizonte do destinatário”, dir-se-á que o preceito comporta dois segmentos distintos, com uma valência normativa própria, sendo um a atribuição de natureza imperativa ao artigo 2.º e o outro a fixação da sua prevalência sobre quaisquer leis especiais e instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho. A imperatividade, como não pode deixar de ser, rege para o futuro, pelo que, por esta via, fica proibido o afastamento deste regime, designadamente pelo exercício da autonomia coletiva e individual. A prevalência, em contrapartida, tem como objeto referencial fontes normativas em vigor, significando a sua consagração que o regime de duração de trabalho estabelecido no artigo 2.º da Lei n.º 68/2013 suplanta, derrogando-os, os períodos inferiores constantes de leis especiais ou de instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho anteriormente celebrados e ainda vigentes.
 Por esta dupla via se garantiria, em grau máximo, a aplicação efetiva e uniforme do novo regime – sendo certo que “a aplicação de um mesmo período normal de trabalho a todos os trabalhadores que exercem funções públicas” é um objetivo confesso da iniciativa legislativa, constante da exposição de motivos da proposta que conduziu à Lei n.º 68/2013.
Este resultado interpretativo é, não só possível, como o que mais naturalmente decorre da letra do preceito e daquele elemento da ratio legis. No mesmo sentido aponta também a fixação de um período “normal” de trabalho, em vez de um período “máximo” de prestação de trabalho, como seria mais natural se o que estivesse em causa fosse exclusivamente uma garantia para os trabalhadores e não também (ou sobretudo) a imposição de uma maior duração em confronto com a anteriormente vigente – isto sem prejuízo de dever ser entendido, como sustenta fundadamente o Acórdão, que «o período normal de trabalho é um período que, com ressalva de lei especial e dos mecanismos legalmente previstos de flexibilização do tempo de trabalho, não pode ser excedido, pelo que a sua duração baliza simultaneamente um limite máximo».
É este também o resultado interpretativo a que chegam os requerentes, o que os leva a qualificar como “limite mínimo imperativo” o fixado no artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 68/2013.
Tal resultado é insistentemente contrariado na “Nota explicativa” apresentada pelo Governo e também rejeitado pelo Acórdão, que, no termo de um longo percurso interpretativo, atribui ao artigo 10.º o seguinte sentido: «A imperatividade de tal período de trabalho estatuída no artigo 10.º da Lei em apreço visa tão só garantir que os novos limites máximos se impõem, quer a leis especiais, quer a instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho, desde que as primeiras e os segundos sejam anteriores à mesma Lei e prevejam uma duração do trabalho mais reduzida».
Retira-se daqui que a proibição e a prevalência estabelecidas no artigo 10.º são unidirecionais, regeriam apenas para o passado, ficando em aberto a possibilidade de redução dos limites horários agora fixados, quer por leis especiais, quer por instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho.
Mas esta interpretação tem claramente contra si a formulação do enunciado normativo. Ela funde num único comando prescritivo os conceitos de “imperatividade” e de “prevalência”. Ora, a esta “reductio ad unum” dos dois segmentos opõe-se a obrigatória presunção de que o legislador “soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (artigo 9.º, n.º 3, 2.ª parte, do Código Civil). Os dois conceitos têm denotações não coincidentes, pelo que nem sequer se pode alvitrar que estamos perante uma redundância, um uso (desnecessário) de dois significantes com o mesmo sentido. É forçoso, por conseguinte, concluir que o legislador, ao atribuir “natureza imperativa” ao disposto no artigo 2.º quis exprimir algo de diferente do que diz ao estabelecer, no segundo segmento do artigo 10.º, a prevalência desse regime sobre as leis especiais e os instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho.
Esta conclusão não levaria necessariamente à interpretação de que se quis afastar a conformação futura, por instrumento de regulamentação coletiva, de períodos de trabalho de menor duração se pudéssemos admitir que a “natureza imperativa” corresponde aqui ao regime-regra de semi-imperatividade ou de imperatividade relativa, ou seja, à fixação de um limite horário máximo que se impõe ao empregador, mas não impede a redução, por via convencional, do horário de trabalho. Mas não creio que tal interpretação tenha cabimento. Seria, na verdade, absolutamente anómalo que o legislador autoqualificasse como imperativa uma disposição legal apenas para estabelecer que ela pode ser afastada por instrumento de regulamentação coletiva, isto é, para dizer exatamente o contrário do que o termo, utilizado sem mais, inculca. Não é para reafirmar o regime-regra que o termo é utilizado (raramente, aliás), mas, bem ao invés, para o pôr fora de ação, estabelecendo uma imperatividade rígida e absoluta (cfr., por exemplo, a articulação da epígrafe com o disposto no artigo 250.º do Código de Trabalho, quanto ao regime de faltas).
O modo como, no lugar paralelo tão próximo (no tempo, na matéria e na intenção reguladora) do artigo 7.º da Lei n.º 23/2012 (última revisão do Código do Trabalho), o legislador conformou as relações entre fontes de regulação depõe no mesmo sentido de que, com o artigo 10.º da Lei n.º 68/2013, quis, contrariamente ao que pretende o Acórdão, algo mais do que colocar os trabalhadores em funções públicas “numa situação inicial de igualdade”, sem prejuízo da possibilidade de estabelecimento, no futuro, de diferenciações. Nos n.ºs 1, 2 e 3 daquela norma da Lei n.º 23/2012 deixou-se, na realidade, bem expresso que a sobreposição da lei importava apenas a nulidade ou redução do estabelecido em instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho celebrados antes da sua entrada em vigor. Custa a admitir que, para exprimir aproximativamente o mesmo, o legislador, pouco mais de um ano volvido, cominasse perentoriamente a imperatividade e a prevalência do artigo 2.º da Lei n.º 68/2013 sobrequaisquer instrumentos de regulamentação coletiva, sem estabelecer qualquer distinção temporal entre eles.
Bem sei que o elemento literal não é o único, nem sequer o decisivo, fator de interpretação. E a posição que fez vencimento socorreu-se de elementos sistemáticos de interpretação que, prima facie, podem lançar alguma dúvida sobre a correspondência entre o teor do artigo 10.º e a intenção reguladora que a ele presidiu.
É o caso, sobretudo, da manutenção em vigor do artigo 7.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 259/98. Na verdade, num mesmo diploma – a Lei n.º 68/2013 – o legislador que, pelo artigo 10.º, estabeleceu a imperatividade e a prevalência do disposto no artigo 2.º, alterando, em consequência, para quarenta horas a duração semanal do trabalho fixada no n.º 1 do artigo 7.º do citado Decreto-Lei, deixou intocado o n.º 2 do mesmo artigo. Daqui retira o Acórdão a conclusão de que «a imperatividade estatuída no artigo 10.º daquela Lei não afasta a possibilidade de reduzir a duração semanal (e, por consequência, também a diária) fixada na lei para os trabalhadores nomeados». E, como o contrário representaria uma incongruência interna da Lei n.º 68/2013, o mesmo deve valer para os trabalhadores contratados.
Mas o Decreto-Lei n.º 259/98 rege apenas para os trabalhadores com vínculo de nomeação, área em que não opera, como fonte normativa autónoma, a contratação coletiva, pelo que o n.º 2 do artigo 7.º passa ao lado da questão da articulação do novo regime de duração do trabalho com o estabelecido naquela fonte. De resto, a atribuição à manutenção desta norma de alcance explicitante do pretendido significado do artigo 10.º provaria de mais, já que o que nela se estabelece é a salvaguarda absoluta, tanto para o futuro como para o passado, de regimes de duração inferiores. Basta atentar na sua formulação: «O disposto no número anterior não prejudica a existência de regimes de duração semanal inferior já estabelecidos, nem os que se venham a estabelecer (…)» (itálico meu).
Também não subscrevo a ideia de que, à luz do artigo 4.º, n.º 1, da Lei n.º 59/2008 (RCTFP), seria necessário que do artigo 126.º, n.º 1, deste diploma «resultasse um qualquer impedimento a que o número de horas de trabalho diário e semanal pudesse ser afastado por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho mais favorável». A alteração no artigo 126.º, n.º 1, é introduzida pelo artigo 3.º da Lei n.º 68/2013, destinando-se a colocar aquela norma em consonância com o período de duração do trabalho fixado no artigo 2.º deste diploma. Desta forma, o regime daquele artigo replica o desta norma, com a carga vinculativa que ela incorpora, por força do disposto no artigo 10.º Ao atuar sobre o artigo 2.º, o artigo 10.º atua também sobre a nova redação do artigo 126.º, n.º 1, que mais não é do que a sua reprodução, no âmbito do RCTFP. O novo artigo 126.º, n.º 1, não é dissociável nem se autonomiza do modo como a Lei n.º 68/2013 fixa o período normal do horário de trabalho. Se não fosse assim, aliás, o primeiro segmento do artigo 10.º da Lei n.º 68/2013, com a sua cominação da natureza imperativa daquele período, perderia completamente campo de aplicação, pois não é aplicável aos trabalhadores com vínculo de nomeação, por força do n.º 2 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 259/98, e também não o seria aos trabalhadores contratados, na interpretação seguida no Acórdão.
Em suma, é minha convicção de que as razões de ordem sistemática e teleológica invocadas não logram contrariar o sentido inequívoco objetivado no texto do artigo 10.º da Lei n.º 68/2013, em consonância com três das quatro razões apontadas, na exposição de motivos da proposta de lei, como objetivos da medida.
Em conformidade com a interpretação do artigo 10.º de que parto, pronunciei-me, pois, pela inconstitucionalidade da norma obtida pela conjugação da norma do artigo 2.º com aquela disposição normativa. Essa norma atenta contra o artigo 56.º, n.º 3, da CRP, na medida em que, dotando de natureza imperativa o horário de trabalho fixado e fazendo-o prevalecer sobre instrumentos de regulamentação coletiva, impede a celebração de contratos coletivos de trabalho com períodos laborais inferiores e acarreta a caducidade de cláusulas convencionais vigentes, com esse conteúdo. Pelo menos quanto a esta segunda vertente, creio que resulta afetado o núcleo essencial do direito à contratação coletiva. Seguro é, em qualquer caso, que estamos perante uma restrição excessiva de tal direito. Na verdade, o Estado, enquanto empregador, dispunha de outros instrumentos menos lesivos para assegurar uma tendencial uniformização de um horário de trabalho em funções públicas mais dilatado. Em relação a instrumentos de regulamentação coletiva em vigor, recorrendo ao exercício das faculdades de denúncia previstas nos artigos 363.º a 366.º do regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas. Em relação a contratos a celebrar, a Administração Pública, enquanto parte, teria o controlo dos termos a convencionar, podendo rejeitar propostas não consonantes com o interesse público.
 Daí a justificação de uma declaração de inconstitucionalidade parcial qualitativa.

2.     Numa versão mitigada da interpretação seguida no Acórdão, poderá eventualmente sustentar-se que, não sendo essa interpretação a única possível, ela é, mesmo assim, possível, pelos cânones hermenêuticos comuns, pelo que, assegurando (na ótica que fez vencimento) a conformidade com a Constituição, deveria ter preferência.
Mesmo neste quadro de uma benigna interpretatio, a conclusão não se justifica. Há, na verdade, que ter em conta que tal interpretação, a admitir-se, não é, seguramente, a que mais se conforma com o sentido da fórmula normativa, só podendo alcançar-se por uma rebuscada “engenharia interpretativa”, que conduz à correção da letra da lei.
No plano hermenêutico geral, é discutida a admissibilidade de uma interpretação conforme à Constituição corretiva da lei (cfr., sobre o ponto, Rui Medeiros, A decisão de inconstitucionalidade. Os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade, Lisboa, 1999, 302 e s.). Gomes Canotilho parece excluí-la, ao enunciar o princípio da exclusão da interpretação conforme a constituição mas “contra legem”, que “impõe que o aplicador de uma norma não pode contrariar a letra e os sentido dessa norma através de uma interpretação conforme a constituição” (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5.ª ed., Coimbra, 2003, 1210) e ao afastar tal interpretação quando “em contradição com o sentido literal ou sentido objetivo claramente recognoscível da lei (…)” (ob. cit., 1211).
Seja qual for a melhor solução, fora do domínio da fiscalização abstrata de constitucionalidade, neste domínio e em configurações deste tipo, levanta-se uma dificuldade específica quanto à admissibilidade do critério, atinente à falta de eficácia vinculativa das decisões de não inconstitucionalidade. Parece correto sustentar-se que, em processo de fiscalização abstrata, quando uma mesma disposição normativa é passível de várias interpretações, sendo uma delas, com fundamento sólido nas regras de interpretação, contrária à Lei Fundamental, deverá o Tribunal Constitucional optar pela declaração de inconstitucionalidade, tendo em conta, precisamente, a impossibilidade de impor aos órgãos administrativos e judiciais a adoção de uma interpretação conforme à Constituição. Sobretudo quando não há ainda um “direito vivente”, em resultado da efetiva aplicação da interpretação conforme, «a preferência, no âmbito da fiscalização abstrata sucessiva, vai claramente para as decisões interpretativas de acolhimento» (Rui Medeiros, ob. cit., 406). E, para este efeito, não faz as vezes de um direito efetivamente aplicado uma proclamada intenção aplicativa, em certo sentido, ou um juízo de oportunidade que tenha em conta o que consta do artigo 105.º, n.º 3, da Proposta de lei n.º 184/XII: «O período normal de trabalho pode ser reduzido por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, não podendo daí resultar diminuição da retribuição dos trabalhadores». Não dispondo o Tribunal Constitucional português de instrumentos do tipo das declarações provisórias de constitucionalidade, ou das decisões apelativas, é pelo juízo quanto à conformidade constitucional, no presente, da situação normativa objeto de valoração que deve exclusivamente determinar-se o sentido da decisão.
Como o mesmo Autor expende, noutro local (Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, III, Coimbra, 2007, p. 854):
«Em qualquer caso, não se pode olvidar que, no sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a decisão interpretativa de rejeição está totalmente desprovida de eficácia vinculativa geral e, ao permitir a subsistência no ordenamento jurídico de leis ambíguas, configura-se como um instrumento inadequado à garantia de uma proteção efetiva da Constituição. Daí que, atenta a força obrigatória geral das declarações de inconstitucionalidade proferidas em sede de fiscalização abstrata sucessiva, o Tribunal Constitucional deva preferencialmente, quando pretender lançar mão da interpretação conforme à Constituição, proferir uma decisão interpretativa de acolhimento. Numa palavra (…) a opção por uma decisão interpretativa de acolhimento, ao pôr em relevo o sentido inconstitucional da lei, traduz a solução mais consentânea com um sistema que se preocupa, fundamentalmente, com a expurgação das normas inconstitucionais do ordenamento jurídico (...)»
No caso presente, uma interpretação da norma resultante da conjugação do artigo 2.º com o artigo 10.º, tal como a sustentada no pedido, ou seja, no sentido da imperatividade absoluta e da prevalência do regime jurídico do período normal de trabalho em funções públicas fixada no artigo 2.º, não só não pode, de facto, qualificar-se como descabida, como é, no mínimo, aquela que, independentemente da vontade do legislador que esteve na sua origem, encontra mais consistente suporte nos fatores objetivos de interpretação.
É quanto basta, de acordo com a orientação acima enunciada, para que, no presente caso, se afaste a possibilidade de uma interpretação conforme à Constituição.

3.     De resto, mesmo que assim não fosse, a própria interpretação perfilhada pelo Acórdão, de que o artigo 10.º só derroga as leis especiais e os instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho anteriores à Lei n.º 68/2013, que prevejam uma duração de trabalho mais reduzida, não impedindo o estabelecimento, no futuro, de regimes de duração de trabalho mais favoráveis aos trabalhadores, atentaria, em minha opinião, contra o direito à contratação coletiva.
Como já sustentei em declaração de voto aposta ao Acórdão n.º 602/2013, a propósito do artigo 7.º da Lei n.º 23/2012, entendo que fere o conteúdo essencial do direito à contratação coletiva a ineficácia, por lei posterior, ex abrupto e sem mais, do produto do anterior exercício da autonomia coletiva, durante o seu período de vigência. Como defendem Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, Coimbra, 2007, 745, « (…) a lei não pode impor a caducidade retroativa de normas de convenção coletiva de forma a afetar a estabilidade dos contratos afetados com base nessas normas».

Joaquim de Sousa Ribeiro"

Fonte: Tribunal Constitucional