sábado, abril 08, 2006

ENTREVISTA CONCEDIDA AO INDEPENDENTE PELO DR. ANTÓNIO CLUNY, PRESIDENTE DO SMMP, PUBLICADA NA EDIÇÃO DE 07.04.2006


«O episódio das demissões na PJ foi infantil»

O Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público diz que a crise na Judiciária é apenas uma parte da crise da Justiça. E avisa que a nova reforma penal, que oferece várias alternativas à prisão e limita a prisão preventiva, pode apenas estar a esconder a falta de dinheiro do Estado.

Entrevista por Adriana Vale

Como vê a crise na Polícia Judiciária (PJ)?
Esta crise reflecte um pouco o estado geral da situação na justiça. Esta crise, aparentemente, tem como causa directa um problema de financiamento na PJ e como causa secundária a questão do gabinete nacional da Interpol e até o do plano coordenador de segurança. Em que medida a questão mais evidente serve apenas para encapotar ou ocultar os compromissos obtidos para a resolução das outras duas questões é matéria que ainda não estou capaz de elucidar, mas parece-me que isso será mais visível se a partir da tomada de posse da nova direcção forem garantidos, agora, os meios financeiros para que a PJ possa funcionar normalmente.

Estava-se à espera que Santos Cabral saísse numa situação de estrangulamento financeiro para depois dar novos meios a uma nova equipa?
Não digo isso, quero ver como as coisas vão evoluir. Se a partir de agora houver outras condições de funcionamento para a PJ que não houve até agora isso significa que faltou vontade política de as dar antes. Mas não faço futurologia.

E os outros problemas?
Mantêm-se. Um parece estar provisoriamente resolvido, que é o do gabinete da Interpol. O outro é mais complexo e tem a ver com uma filosofia de sistema. Como é que vão ser resolvidos, em que medida e qual será o sentido que lhes irá ser dado é que nos poderão também dar uma resposta para a compreensão desta crise. Só que a crise da PJ também não pode ser pensada por si própria. Tem que ser pensada no contexto mais geral da crise do sistema penal em Portugal. E das ideias que se tenham para a justiça penal.

Como?
Quero dizer que nós não podemos desligar toda esta crise da ideia da lei-quadro da política criminal, não podemos desligar esta crise de todas as tentativas que houve para demitir o procurador-geral da República, das propostas de lei que estão em cima da mesa relativamente ao Código Penal, à lei da mediação penal... É necessário para ter uma compreensão total do que é o caminho e do sentido para onde se vai que todas estas peças sejam analisadas em conjunto e não parcelarmente, como até agora tem acontecido.

E qual é o plano que está aqui em causa?
Não sei exactamente qual é o plano, porque faltam duas peças a anunciar: uma delas será, eventualmente, a alteração do Código de Processo Penal e outra será uma possível alteração do Estatuto do Ministério Público - ou, finalmente, da própria Constituição nesta matéria.

Mas o Ministério Público (MP) não ganha com esta nova direcção nacional da PJ, que é composta por magistrados do MP? As relações com esta magistratura não serão mais fáceis?
Não é por ser-se juiz ou magistrado do Ministério Público que as relações entre a PJ e o Ministério Público funcionam melhor ou pior. Em primeiro lugar porque qualquer juiz ou magistrado do MI) que vá para a Polícia Judiciária deixa de exercer essas funções e passa a assumir o estatuto próprio da polícia. Passam a ser funcionários com uma dependência política mais rigorosa ou estreita.

Deixam de ser magistrados...
Deixam de ser magistrados ou juízes. Já tivemos boa colaboração com juízes que foram directores da PJ e muito má. Já tivemos muito boa colaboração com magistrados do MP e muito má colaboração... O problema é de articulação legal. Isto não é uma questão corporativa.

Não é um problema de pessoas?
Não é um problema de pessoas à partida... No caso concreto é que vamos ver como é que as coisas se desenrolam. É preciso ver os percursos e os compromissos que as pessoas têm quando assumem determinado tipo de cargos e quando depois, confrontadas com as realidades, são chamadas a assumir compromissos.

E sobre o episódio das demissões na PJ?
Cada um tem de assumir em consciência as suas posições. As questões têm de ser transparentes e claras. Se o ministro quer demitir, tem que dizer que demite. Não temos que nos andar a enganar uns aos outros. O que é que ganha o ministro em dizer que demitiu e que o outro não se demitiu? Quem é que ganha? Ganha o quê? Ninguém ganha nada.

Uma demonstração de autoridade?
Toda a gente percebeu corno é que as coisas se passaram, saber quem se demitiu ou foi demitido é o resultado de um processo anterior em que alguém disse que não estava de acordo com determinada situação. A partir daí tanto faz. Não há autoridade nenhuma que se mascare com situações destas. É infantil.

E a questão da Interpol e da Europol...
Estas duas relacionam-se com a perspectiva do desenho que se quer para o sistema penal. Para a ideia que possa vir a ter-se sobre a forma como deve ser governado o sistema de investigação penal. Isto é, se se quer um regime mais virado para uma acção telecomandada do poder político ou se se quer um caminho de reforço da autonomia do sistema (não estou a falar exclusivamente do Ministério Público) relativamente às preocupações políticas de cada momento ou de cada governo.

Tem sido privilegiado esse telecomando?
Falta saber o caminho que virá a ser dado às outras peças, que ainda não estão desenhadas. À partida, com as peças já conhecidas, a questão pode apontar nesse sentido, mas a construção das outras duas ou três peças pode inverter completamente o sentido. Será um bocadinho temerário dizer que o sentido é já este ou aquele - posso sentir uma grande vontade para ir para determinado lado mas essa grande vontade passa também pela obtenção de um apoio alargado na Assembleia. E eu não acredito que qualquer partido ou qualquer maioria, só por si, se sinta legitimado - ou legitimada - para subverter completamente o regime actual.

Essa eventual subversão traduzir-se-ia em quê?
Traduzir-se-ia numa direcção muito mais apertada e efectiva por parte do poder político sobre os caminhos da investigação, sobre a selecção dos casos levados a julgamento...

Para o sindicato, a lei-quadro da política criminal traduz-se concretamente em quê?
Não conheço o último desenho que foi dado e como é que virá a ser aprovado. Sei que houve algumas evoluções, apesar de tudo positivas, que acolheram algumas das preocupações que nós deixámos em sede de comissão parlamentar. Isto dependerá das negociações políticas, embora me pareça que as preocupações apresentadas pelos partidos da oposição tivessem sido consagradas. Por outro lado, essa lei - que só por si não ofereceria graves problemas -, conjugada, por exemplo, com a lei da mediação penal, que permite introduzir a mediação em crimes públicos que não admitem desistência de queixa...

... Isso traduzido em casos concretos quer dizer o quê?
Quer dizer que permite ao MP, em determinados crimes até cinco anos, não deduzir acusação mas remeter para mediação. A ideia que tenho é que a lei é só para crimes com vítimas, pessoais, concretas... Nos crimes particulares a mediação pode ser um bom instrumento. A questão que se coloca é saber - se as vítimas se recusarem imediatamente à mediação - por que razão se há-de mandar primeiro para mediação. Por exemplo, se eu nem quero ver a cara do senhor que me agrediu, é uma perda de tempo passar pela mediação. E gostava de saber quanto dinheiro se irá gastar a pagar aos mediadores, qual o seu regime de contratação, quem são e quem os selecciona...

Dizem que a formação será entregue ao Ministério da Justiça...
Em colaboração e com protocolos com quem? Isso é entregue, mas depois há o "outsourcing"... É tudo isso que é importante ter em conta. O próprio Código Penal tem alguns aspectos que também podem abrir caminho a uma maior intervenção do Ministério Público. Mas essa maior intervenção pode passar a estar condicionada pela tal lei da investigação criminal. Ou, em última análise, por qualquer alteração do estatuto do MP que esteja agendada. Nesta altura não temos uma perspectiva muito clara do que aí vem, embora já seja bastante claro que temos de ter alguma preocupação com as possibilidades abertas com este sistema.

Mas as sementes estão lançadas?
Poderão estar. Vamos ver como os deputados acabam por querer assumir isto. Notei, quando foi a discussão da própria lei-quadro da política criminal, que a questão não era muito consensual, mesmo no seio da própria maioria. Estamos à beira de uma mudança de paradigma. E penso que não é para melhor.

Se mudasse o ministro da Justiça tudo isto seria sanado?
Não tem a ver com pessoas, tem a ver com orientações políticas. Estas não são traçadas por um ministro mas por um governo e por uma maioria. Podem mudar um pouco as arestas do sistema mas não muda a política da maioria. A não ser que haja uma paragem de reflexão e de autocrítica e se opte por inverter o caminho. Mas isso não me parece muito possível.

Era um objectivo do primeiro-ministro?
Não sei se era um objectivo do primeiro-ministro. Nas questões de justiça não é uma pessoa especialmente habilitada. Penso que era um objectivo da maioria. Mas, como toda a política deste governo, não era um objectivo claro e pré-anunciado.

É uma surpresa constante...
É uma surpresa mas que estava pensada. Mas até é bom que estivesse, porque se isto tudo forem medidas avulsas e não enquadradas então é pior... Prefiro acreditar que há um plano, mesmo que não concorde com ele, do que estar perante uma situação em que as medidas, afinal, não têm nada a ver umas com as outras, embora todas em conjunto possam vir a produzir uma criatura que não estava prevista. Isso é que me assusta.

Grande parte destes projectos têm saído da unidade de missão...
A mediação não. Isso é que é estranho.

Porquê?
Porque me leva às vezes a pensar que há plano e planos. Ainda hoje não sei como é que se pode estar a repensar em reformular o Código de Processo Penal quando do outro lado sai uma medida que esgota de sentido grande parte dos processos abreviados, ou simplificados.

Há um desgoverno?
Não sei, e é por isso que digo que ainda não consegui perceber totalmente o desenho do sistema. E é por isso que tenho proposto a todos os responsáveis que seria do máximo interesse para o país e para os decisores políticos, designadamente para os deputados, que se fizesse uma grande conferência da Assembleia da República sobre a política criminal em geral em que se analisasse em conjunto todos estes diplomas, em vez de se estar a votar cada um por si sem se ter a noção de como é que eles se articulam. Ou então que o Governo dissesse claramente como é que se articulam e para obter que fim. E uma democracia séria impõe que os deputados, quando votam cada lei, saibam que a seguir se vai articular com outras leis e que quando elas todas começarem a girar o resultado vai ser aquele e não outro que não estava previsto - ou que não se queria.

Por exemplo, qual vai ser o resultado das férias judiciais? O resultado está à porta...
As férias foram um fenómeno de folclore populista. O resultado está à porta: os tribunais vão ficar parados muito mais tempo do que estavam anteriormente e com condições de funcionamento deficientes por muito mais tempo do que estavam anteriormente. Mas isso era visível, e a certa altura foi um risco que o Governo quis correr. Primeiro fez o folclore, depois apercebeu-se da incongruência do sistema.

Falou de uma tentativa de afastar o procurador-geral. Que futuro para a Procuradoria?
O futuro da Procuradoria-Geral não depende só da nomeação deste ou doutro procurador-geral. Depende da necessidade que todos nós sentimos de uma reestruturação geral dos serviços da Procuradoria, da orgânica do Ministério Público para dar resposta às novas realidades.

Quais?
Por exemplo, uma resposta dinâmica a problemas de política criminal que tem de ser pensada não só a nível nacional mas também a nível local. Aquilo que é prioridade a nível nacional pode não o ser em determinado sítio. Para uma resposta mais eficiente à criminalidade, que pode não ser grave mas é aquela que preocupa o cidadão, é importante o desenvolvimento de uma proximidade entre os magistrados do MP e as for as policiais nos grandes centros urbanos. Que estes centros fossem divididos em bairros, para que se conheça melhor os casos e seja possível um contacto mais directo com as forças policiais.Um dos problemas do nosso sistema penal é que ele é absolutamente cínico e perverso.

Porque...
Isto é uma opinião pessoal, e parece-me que o problema se vai acentuar com algumas das reformas. As pessoas vão sendo detidas e depois colocadas na rua sem julgamento, porque não houve um processo abreviado que as fizesse julgar logo. Hoje são apanhadas por isto, amanhã por aquilo, e depois são soltas. Isto vai-se acumulando, e quando acaba por chegar a julgamento aquela pessoa que até achou que o regime era benévolo vê-se confrontada com um cúmulo jurídico de 12 anos de cadeia. E nunca se apercebeu de que o sistema não consentia, de facto, aquele tipo de comportamento. Talvez fosse necessário, para alguns tipos de comportamento, penas imediatas, que não seriam cumpridas em prisões gigantescas, sem condições de salubridade e humanidade, mas em ambientes mais pequenos e com acompanhamento mais estreito. Num momento em que se vai constatando que a criminalidade juvenil aumentou, é mais violenta, que a criminalidade organizada de gangues aumenta e a violência nas escolas também, não sei se o sinal que está a ser dado à sociedade com estas propostas, como as do Código Penal (por muito bem intencionadas que sejam), não é negativo.

Com a nova revisão evitam-se as viagens até à cadeia?
Não há prisão preventiva, não se utilizam os mecanismos de julgamento imediato, protela-se - com a ideia da mediação penal - três ou quatro meses, as pessoas vão entrando num regime de aparente permissão.

Os furtos podem ir para a mediação?
Podem. Os esticões também. Cria-se uma situação que pode vir a criar uma ideia muito perigosa. E depois há um outro problema em termos políticos: quando estas coisas correm mal, a tendência é para extremar para o lado inverso. É o efeito do pêndulo. Podemos então passar de um sistema realmente liberal para um ultra-repressivo, que também é extremamente perigoso.

Agora estamos no excesso liberal?
A pergunta que eu me faço é se não estaremos a encobrir a incapacidade financeira do Estado para resolver estes problemas...

Não há dinheiro para mandar ninguém para a cadeia?
Não temos cadeias que cheguem, não temos dinheiro para alimentar os detidos, não temos cadeias em condições humanas e adequadas aos diversos tipos de pessoas que são internadas. Não há dinheiro para investir. Será que estamos a tentar dar resposta a uma situação socialmente estudada ou apenas a aliviar as finanças do Ministério da justiça?

Tudo indica que não há mesmo dinheiro...
Não é por acaso que o professor Costa Andrade vem dizer que não percebe que se façam reformas sem fazer um observatório da criminalidade. Hoje não se brinca com reformas sem ter um conhecimento muito grande da criminalidade. Senão corremos o risco de fazer na Justiça o que já se fez nos anos 70 e 80 na Educação - um experimentalismo perigoso -, com os resultados que temos à vista. Temos de parar todos para reflectir.


via www.smmp.pt

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