quinta-feira, março 02, 2006

O processo civilizacional


Artigo de opinião
Autoria de : Ruben Carvalho

"O assassínio no Porto por um bando de jovens de um travesti doente, desprotegido e em fase terminal de vida coloca problemas colectivos que não é possível - e muito menos aceitável - ignorar.

Não sendo um livro recente (o original é de 97, a tradução portuguesa de 2001), é legítimo apontar a necessidade da leitura de uma reflexão sobre a violência axial no pensamento do século XX: a de Norbert Elias, exposta magistralmente no seu O Processo Civilizacional e para que a obra indica- da constitui uma sugestiva introdução (A Sociologia de Norbert Elias. Nathalie Heinich. Temas e Debates. Lisboa, 01).

Elias aponta o controlo da violência entre os homens como o elemento essencial da evolução das civilizações - o que é hoje um paradigma aceite: um descontrolo do recurso à violência corresponde sempre a um retrocesso civilizacional. Mesmo que circunstancial ou localizado.

Mas interessa saber em função de quê, que processos conduzem a uma desregulação dos parâmetros que o percurso civilizacional generalizou numa sociedade estabilizada. E aqui não é possível ignorar o que - parafraseando Hanna Arendt - poderíamos designar pela banalização da violência e o papel nela desempenhado pelos media, em especial a TV e os jogos de computador. O problema não é apenas (nem sequer essencialmente) a generalização plástica do comportamento violento, a sua apresentação acrítica e mesmo lúdica: o mais importante é a virtualização da violência, a sua banalização inteiramente despida das suas consequências. O sangue, a dor, o sofrimento, a ferida, a própria morte tornam-se apenas um efeito, um fenómeno plástico e imaginário, com imagem e som mas sem realidade. Não há dor, não há sofrimento real sentido ou partilhado, não há morte. E nada é irremediável: basta fazer reset, basta voltar ao início do programa ou rewind o CD. Pior: a morte é um objectivo lúdico, um triunfo apenas com consequências em pontuação - após o qual tudo recomeça. Os 14 jovens do Porto sabiam efectivamente o que é matar? O que é a morte? O que é o sofrimento? Regressados àquele prédio em ruínas vendo um ser vivo agonizante, a partir de que referências o contemplavam?

Em que grau de civilização os situámos?"

Fonte: Diário de Notícias

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