segunda-feira, março 20, 2006
Horror e 'alargamento de direitos'
João César das Neves
(naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt)
Professor universitário
"Porque é que o homem moderno vê o futuro de forma tão negra? Este é sem dúvida um dos maiores paradoxos da actualidade. Uma recente frase do senhor primeiro-ministro deita alguma luz sobre a origem deste surpreendente enigma.
Desde a revolução industrial o mundo ocidental conhece um grande desenvolvimento e subida do nível de vida. Vivemos de forma que os nossos avós nem conseguiam imaginar e que todo o mundo quer copiar. Mas, apesar dos grandes ganhos obtidos na liberdade, saúde, bem-estar e cultura, quando olha para o futuro a sociedade vê o pior dos horrores. As nossas gerações, apesar de viverem no conforto e progresso têm, se possível, uma visão ainda mais negra do amanhã que as eras antigas.
A antevisão das linhas de evolução institucionalizou-se no género da "ficção científica". E praticamente todos esses prognósticos, feitos com seriedade e argúcia, são assustadores, catastróficos, deprimentes. Desde os mais antigos, Frankenstein (1818) de Mary Shelley e The War of the Worlds (1898) de H.G.Wells, até aos mais recentes, como Star Wars (1977-2005) de George Lucas, todos são unânimes em prever um mundo seguinte pior que o actual.
As causas dessa previsão são muito diferentes. Nuns casos é o ataque de monstros horríveis, como em Starship Troopers (1959) de Robert A. Heinlein, noutros o poder destrutivo da tecnologia, como em Le Secret de l'Espadon (1947) de Edgar P. Jacobs; da revolta das máquinas de 2001 - A Space Odyssey (1968) de Arthur C. Clarke até à manipulação global em The Foundation Trilogy (1951-53) de Isaac Asimov. Normalmente, o resultado é uma sociedade desumana e mecânica, como a de Metropolis (1927) de Fritz Lang.
No meio da miríade de antevisões, duas destacam-se pela sua horrível plausibilidade. A primeira é Nineteen Eighty-Four (1949) de George Orwell, que se pode tomar como a clássica representação de um estado totalitário e sufocante, o protótipo dos sistemas opressivos, do nazismo às teocracias recentes. Um dos elementos mais ameaçadores dessa obra é a sua datação concreta. Ao contrário da maioria destas histórias, a acção não se situa num futuro remoto, mas uns meros 35 anos depois da sua publicação. Só que a previsão falhou. Inspirado na URSS, o livro é curiosamente localizado no ano anterior à subida ao poder de Mikhail Gorbachev, que decretaria o fim do estalinismo.
Se a obra de Orwell permanece como a ameaça dos sistemas alternativos, o outro volume, anterior, é muito pior, pois define a simples evolução do nosso. Brave New World (1932) de Aldous Huxley mantém-se como a mais severa acusação ao sistema ocidental, mostrando como uma sociedade apostada no prazer e na técnica pode deixar de ser humana. Aqui não há ditadores, como o Big Brother de Orwell, cientistas perigosos, como o dr. Frankenstein e o psico-historiador Hari Seldon de Asimov, ou monstros, como os Bugs de Heinlein. Existe só uma comunidade que apodrece no conforto.
Como pode acontecer isto? Um exemplo que ajuda a compreender vê-se na entrevista do eng. Sócrates concedida ao Expresso de 4 de Março. Aí afirmou: "A nossa agenda em matéria de alargamento de direitos vai começar pelo aborto." Aqui temos um homem, governante de um país moderno e civilizado, que pretende usar a melhor máquina jamais montada de criação de bem-estar, o Sistema Nacional de Saúde, para arrancar bebés do seio de suas mães. E o faz em nome do "alargamento de direitos"! Não se trata de um bárbaro, mas de uma pessoa inteligente que, de boa--fé, está empenhada na melhoria do seu país. Mas que se prepara para legalizar uma prática vergonhosa que até os selvagens mais boçais sempre consideraram infame. O nosso sofisticado primeiro-ministro é também o líder de uma maioria que quer aprovar a lei da Procriação Medicamente Assistida, que regulará as práticas mais abjectas do Admirável Mundo Novo. Tudo isto é feito com as melhores intenções, em nome dos valores mais elevados.
As razões que assistem a José Sócrates são facilmente compreensíveis. O aborto higiénico, as experiências com embriões, as "barrigas de aluguer" têm vantagens evidentes. Contra elas está apenas uma "pequena" violência feita sobre os fetos. Esta escolha baseia-se no mesmo raciocínio que criou a pior ficção alguma vez tornada realidade. Nos anos 30 os alemães viam bem as vantagens da ordem que Hitler garantia, em troca de uma "pequena" dose de violência. É assim que o progresso destrói o futuro."
in Diário de Notícias
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