domingo, março 26, 2006

Incidente táctico


Eduardo Dâmaso

"O Governo prepara-se para aprovar um programa de coordenação das forças policiais que tem algumas novidades apenas debatidas no circuito fechado dos gabinetes governamentais e das polícias. O seu potencial impacto no processo penal e na vida dos cidadãos obrigaria, porém, a uma atitude de menos secretismo por parte do Governo e de exigência de mais esclarecimento, pela oposição.

A principal mudança está na resposta à figura do "incidente táctico", ou seja, um acontecimento que exige uma rápida reacção policial, como um sequestro. Ora, a gestão do "incidente táctico" vem alterar a hierarquia das competências policiais para actuar no caso concreto e tem, na prática, um efeito suspensivo sobre a intervenção das autoridades judiciais, em particular do Ministério Público.

Perante um crime daquela natureza, o poder de coordenação é entregue à força de segurança territorialmente responsável pela manutenção da ordem pública no local dos factos, PSP ou GNR. Durante o chamado "incidente táctico", será essa autoridade territorialmente competente que determinará os meios e os modos de ataque à situação, não conhecendo qualquer tipo de limitação ao seu poder de decisão. No fundo, é uma solução "à americana", como se costuma ver nos filmes, com frequentes conflitos de competências e, sobretudo, sobre quem pode ou não dar a ordem decisiva para atirar a matar. Tem uma característica própria de operação paramilitar e menos de justiça civil.

A questão não é fácil, mas uma coisa será certa: esta aparente suspensão do tempo jurídico na gestão de um incidente criminal é inaceitável. O critério da territorialidade para determinar quem manda na resposta a factos criminais é uma subversão dos princípios gerais do direito processual penal e da lei que rege a investigação criminal. Apagar a hierarquia própria do inquérito judicial durante os momentos em que decorre a acção levanta todas as dúvidas constitucionais. Tem de lá estar o Ministério Público, os factos têm de ser geridos dentro de um inquérito conduzido pelos padrões do Código de Processo Penal, não se pode transformar em regra aquilo que deve ser a excepcionalidade absoluta. Defender o contrário em nome da eficácia é destruir qualquer valor de justiça. É, afinal, relativizar o valor da vida humana, esquecendo que tantas vezes foi a dita eficácia das forças policiais que somou tragédia à tragédia com o sangue de reféns abatidos pelos ditos salvadores."


in Diário de Notícias

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