segunda-feira, março 20, 2006

Boletim da Ordem dos Advogados n.º 40


Com o tema central "Segurança e Direitos Humanos", já está em distribuição o BOA nº 40.
Leia o Editorial - "Compreender e aceitar o lugar da religião na vida pública é, para o Ocidente, tão fundamental como é para o Islão discernir quais as fronteiras entre o religioso e o político".

"LIMITES

A pretexto da publicação por um jornal dinamarquês de um conjunto de caricaturas do profeta Maomé, temos assistido a um desfile de protestos e violências que acabou por motivar um intenso debate político e filosófico em torno tanto dos limites da liberdade de expressão como dos limites da tolerância pelos sentimentos religiosos.

Este debate, sem ter na sua essência a natureza de um debate jurídico, interpela, como é óbvio, de forma particularmente intensa todos os juristas: o suum cuique tribuere, o primeiro preceito do Direito que manda dar a cada um aquilo que é seu, pressupõe um outro que também deve receber o que lhe pertence. Por isso, o Direito, a ordenação da vida social segundo a justiça é, no fundamental, a justa compatibilização de direitos que, vistos em abstracto, seriam incompatíveis.

A afirmação de que certas liberdades não podem conhecer limites é, neste quadro, um irresponsável e incendiário disparate que nenhum jurista, seguramente, se atreve a proferir. A consagração da liberdade de expressão como direito fundamental, após as revoluções liberais, não impediu que os ordenamentos jurídicos continuassem a punir e a classificar no elenco dos crimes, a difamação e as injúrias. E não tem impedido, antes pelo contrário, o movimento das legislações penais no sentido da introdução de novos limites. Basta pensar na definição como ilícito de natureza penal das condutas que incitem ao ódio contra um povo, à discriminação e violência raciais ou religiosas, ou que se traduzam na difamação ou injúria de pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional ou religião.

Aliás, a tendência vai no sentido do acentuar das limitações, por exemplo, através da penalização do “negacionismo” (a negação da existência histórica de certos crimes de guerra ou contra a paz e a humanidade, já prevista no artigo 240º nº 2, b) do nosso Código Penal) ou da pretendida punição dos chamados “crimes de ódio”, a respeito dos quais hoje se discute nos países onde foram primeiro acolhidos na legislação penal, se está ou não a ser ultrapassada a fronteira entre a punição das condutas e a punição das convicções dos seus agentes e, por essa via, da própria liberdade de pensamento.

Ora, no actual estado dos acontecimentos, é imperioso condenar o fanatismo, o carácter orquestrado e manipulado das reacções ocorridas em muitos países muçulmanos, cuja vida cívica, aliás, na maior parte dos casos, está longe de ser um exemplo de liberdade de expressão e de tolerância (designadamente pelas outras religiões e pelos outros crentes). Se devemos compreender que é legitimo que os muçulmanos se sintam ofendidos nas suas crenças com caricaturas que associam Maomé ao terrorismo, nenhuma justificação pode ser dada para a violência com que essa revolta se manifestou.

Mas também é fundamental pensar nos destinos a que levarão os actuais rumos das sociedades ocidentais. Fenómenos como a legislação francesa sobre o véu islâmico e demais símbolos religiosos podem ser interpretados como representando uma tendência de expulsão da religião da vida pública.

Ora, “a religião ou o credo constituem, para aquele que os professa, um dos elementos fundamentais da sua concepção da vida, devendo ser integralmente respeitados e garantidos”, como se diz no preâmbulo da Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação baseadas na Religião ou no Credo, adoptada pelas Nações Unidas em 1981.

Compreender e aceitar o lugar da religião na vida pública é, para o Ocidente, tão fundamental como é para o Islão discernir quais as fronteiras entre o religioso e o politico. Este é, porventura, um dos caminhos que ainda restam para evitar o choque das civilizações.

Miguel de Almeida Motta > Advogado > miguelmotta@cg.oa.pt"

Fonte: Ordem dos Advogados

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