sexta-feira, março 31, 2006

CDHOA: Parecer sobre as actuais ameaças à Liberdade de Imprensa


Sobre a temática actual das ditas ameaças à Liberdade de Imprensa, leia o pertinente parecer elaborado para a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, pelo Dr. Victor Castro Rosa.

"Parecer sobre as actuais ameaças à Liberdade de Imprensa
31-03-2006


1. Enquadramento constitucional
Segundo o disposto no art.º 37.º da Constituição da República Portuguesa, na versão resultante da última revisão introduzida pela Lei Constitucional n.º 1/2005, de 12 de Agosto, «todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações», não podendo o exercício deste direito ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura.

A liberdade de imprensa é comummente reconhecida como uma manifestação ou qualificação particular desta liberdade, comungando de todo o regime constitucional desta, designadamente a interpretação e integração de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que é aplicável a todos os direitos fundamentais por virtude do disposto no art.º 16.º n.º 2 da mesma CRP.

Determina o n.º 2 do mesmo art.º 37.º que «as infracções cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua apreciação respectivamente da competência dos tribunais judiciais ou de entidade administrativa independente, nos termos da lei.»

Esta alteração ao texto do artigo foi introduzida pela revisão constitucional de 20 de Setembro de 1997, e constituiu uma primeira brecha no princípio de reserva para os tribunais judiciais da apreciação das eventuais violações e excessos no domínio de direitos fundamentais, e bem assim da aplicação dos princípios gerais de direito criminal, os quais exigem, normalmente, muito mais rigor e ponderação, sobretudo no que diz respeito à medida das penas e à sua adequação ao elemento subjectivo (dolo ou negligência).

Com a permissão da fiscalização administrativa destes direitos, e não obstante estarem constitucionalmente assegurados os direitos de defesa e de audiência nos processos contra-ordenacionais ( n.º 10 do art.º 32.º) , parece-nos ter ficado algo fragilizada a posição dos titulares da liberdade de imprensa, que, na prática, vêem as suas possibilidades de defesa reduzidas ao direito de se pronunciarem por escrito, ou oralmente, sobre as acusações que lhes são efectuadas, e a indicar testemunhas que, se a entidade administrativa entender pertinentes os seus depoimentos, não serão ouvidas pela entidade reguladora em audiência contraditória, mas sim à porta fechada (actualmente, excepcionam-se os processos de conciliação).

Por outro lado, o art.º 38.º da CRP, especificamente consagrado à liberdade de imprensa, determina que os jornalistas têm direito de acesso às fontes de informação, e à protecção da independência e do sigilo profissionais, entre outros, importando que, em concreto, seja analisada a forma como tais direitos têm vindo a ser equacionados pelos Tribunais, o que será objecto de atenção mais detalhada no ponto 3 infra.

Finalmente, o art.º 39.º, introduzido pela última lei de revisão constitucional, abre as portas à criação de uma nova entidade reguladora do sector da Comunicação Social que tem por finalidades assegurar o direito à informação e a liberdade de imprensa (contra qualquer tipo de limitação ou censura); a não concentração da titularidade dos órgãos de comunicação social (visando defender a concorrência no sector); a independência da comunicação social perante o poder político e económico (face a eventuais tentativas ilegítimas de influenciar a opinião pública num sentido favorável aos seus interesses); o respeito pelos direitos, liberdades e garantias pessoais (tais como o direito ao bom nome e à consideração pessoal, à imagem, à reserva da vida privada); a possibilidade de expressão e confronto das diversas correntes de opinião (visando defender o pluralismo no acesso à comunicação social por parte das várias correntes de pensamento e opinião); o exercício dos direitos de antena, de resposta e réplica política (instrumental da defesa de outros direitos fundamentais como os acima referenciados e do bom funcionamento da democracia).

Veremos seguidamente quais as principais dúvidas que se colocam relativamente aos poderes e à forma de actuação desta nova entidade reguladora.

2. Poderes da nova Entidade Reguladora para a Comunicação Social
A ERC- Entidade Reguladora para a Comunicação Social é designada pelo Parlamento, de acordo com o disposto no art.º 39.º da CRP e com o respectivo estatuto, o qual foi aprovado por maioria qualificada, publicado em anexo à Lei n.º 53/2005, de 8 de Novembro, sendo actualmente muito questionado este figurino constitucional, na medida em que corta com uma tradição de existir alguma representatividade do sector no órgão responsável pela sua regulação, não obstante ser exigível aos membros do órgão executivo, designado conselho regulador, que sejam pessoas de reconhecida idoneidade, independência e competência técnica e profissional.

Os regulados só poderão estar presentes no Conselho Consultivo, que é um órgão onde se encontram representadas dezasseis entidades, funcionando apenas por meio de pareceres não vinculativos que porventura lhe sejam solicitados pelo conselho regulador, reunindo ordinariamente duas vezes por ano e extraordinariamente por iniciativa do seu presidente ou a pedido de um terço dos seus membros. Não se trata, portanto, de uma verdadeira auscultação dos interesses dos regulados, mas apenas de uma representação formal e sem qualquer peso institucional, a que acresce a disfuncionalidade de um órgão tão amplo.

A auscultação dos interesses e posições dos regulados no processo de tomada de deliberação, ao invés de se fazer mediante consulta pública ao sector ou mesmo mediante notificação aos interessados para se pronunciarem, como é traço característico no funcionamento das entidades deste tipo, antes de dar as suas deliberações como definitivas (v.g por exemplo, a prática do ICP-ANACOM(1) , e da Autoridade da Concorrência(2) ), só poderá ocorrer pontualmente no caso de os eventuais interessados serem convidados a comparecer nas reuniões (admitindo que assim seja para poderem expressar as suas posições) ou caso se trate da elaboração de um regulamento, nos termos do art.º 62.º. Caso contrário, está apenas previsto que as próprias deliberações sejam tornadas públicas, sob a forma de resumo, imediatamente após o termo da reunião, sem prejuízo da necessidade da sua publicação ou notificação quando legalmente exigido.

A ERC está em funções desde o passado mês de Fevereiro, e já tornou públicas no seu sítio electrónico (www.erc.pt) duas deliberações, uma sobre o dever de rigor informativo na agência noticiosa LUSA e outra sobre direito de resposta nos serviços de televisão SIC e SIC NOTÍCIAS (esta última, ainda de teor preliminar).

Têm vindo a ser questionadas as atribuições da ERC no âmbito dos conteúdos editoriais, designadamente a prevista na alínea d) do art.º 7.º, temendo-se, designadamente, que, ao abrigo das mesmas, se propicie a interferência da entidade reguladora em matérias de pendor editorial, sendo certo que, na redacção final do Estatuto, os critérios instituídos para a determinação da exigência e do rigor informativos são apenas os que decorrem dos princípios e regras legais aplicáveis. Só perante uma violação clara e inequívoca destes poderá a responsabilidade dos órgãos de comunicação social sujeitos à actividade reguladora da ERC ser activada. É nesse sentido que, segundo a alínea d) do art.º 24.º nº 3, compete ao conselho regulador fazer respeitar os princípios e limites legais aos conteúdos difundidos pelos regulados, em matéria de rigor informativo, e de protecção dos direitos, liberdades e garantias pessoais.

O problema é que, em matéria de exigência e rigor informativo, a margem de apreciação é necessariamente ampla, e não é a lei que pode determinar tais critérios, uma vez que os mesmos resultam, em boa parte, da sensibilidade e capacidade profissional dos jornalistas, enquadrados apenas por normas e procedimentos de natureza deontológica, dos quais alguns estão já transformados em lei, designadamente no chamado Estatuto do Jornalista que separadamente analisaremos, outros não estão.

O mesmo se poderá dizer mutatis mutandis, da apreciação de conteúdos publicitários, embora aqui a competência da ERC seja subsidiária da de outras entidades fiscalizadoras do cumprimento do Código da Publicidade e demais normativos desta actividade.

Também aqui se trata de fiscalizar o exercício da liberdade de expressão quando não da liberdade de criação cultural. Também as empresas do sector subscreveram um conjunto de princípios de natureza ética a que chamaram Plataforma Comum dos Conteúdos Informativos nos Meios de Comunicação, e consideram que a aferição do rigor e da exigência dos conteúdos informativos deverá fazer-se com base na mesma, sob pena de se poder cair numa discricionariedade ou subjectividade em matéria assaz fundamental.

Outro ponto de interrogação que tem sido levantado, e que se prende com um reforço substancial dos poderes de intervenção da entidade reguladora – tanto mais surpreendente quanto se assiste, sobretudo na Europa, a uma tendência de sinal contrário, para dar um espaço cada vez maior a iniciativas de auto-regulação que tornam dispensáveis os mecanismos coercivos da regulação estatal para atingir objectivos de interesse público - é a equiparação dos funcionários e agentes da ERC a agentes da autoridade, para efeitos de acesso às instalações, equipamentos e serviços das entidades reguladas, requisição de quaisquer documentos para análise e de quaisquer informações escritas, actividade de fiscalização «in loco» que poderá mesmo ser acompanhada pelas autoridades competentes, se necessário.

É o já polémico art.º 45.º da Lei n.º 53/20005, que, embora possa, à partida, suscitar apreensão pela forma utilizada, não poderá, no entanto, deixar de ser concatenado com o disposto no art.º 53.º, que impõe aos regulados que facultem à ERC o acesso de funcionários credenciados a qualquer local, no quadro da prossecução das atribuições que lhe estão cometidas, assegurando-se, no respectivo n.º 2, o respeito pelos princípios da proporcionalidade, pelo sigilo profissional e pelo sigilo comercial, sobretudo se estiver em causa uma solicitação aos regulados de informações e documentos. De todas estas ressalvas, importa salientar a remissão para os tribunais judiciais competentes da matéria da ilegitimidade na invocação do sigilo comercial, o que, a contrario, poderá ser interpretado como uma remissão da matéria correspondente ao sigilo profissional para o Código de Processo Penal.

Em recentes debates públicos e entrevistas publicadas, o responsável ministerial do sector tem defendido a correcção desta interpretação restritiva, sendo essa a única razão por que a matéria é omissa na lei. Por outro lado, o Presidente da ERC precisou também publicamente que a intervenção fiscalizadora da ERC só tem cabimento no quadro das suas competências e atribuições, de acordo com o disposto no art.º 5.º dos seus Estatutos, pelo que não faria sentido, por exemplo, aceder à redacção de um jornal ou estação de rádio ou televisão, não sendo tal acto seguramente necessário ou proporcional ao fim visado. Admite-se que assim seja, não obstante a lei não fazer qualquer restrição ao direito de acesso.

Acresce, finalmente, que as deliberações da ERC que têm carácter vinculativo em matéria de direito de resposta, direito de antena e de réplica política deverão ser cumpridas nos seus precisos termos, sob pena de os membros dos órgãos sociais executivos bem como os directores de publicações, informação ou programação dos operadores de rádio e televisão serem pessoalmente responsáveis pela prática do crime de desobediência, entre nós punido com pena de prisão até um ano ou multa até 120 dias (art.º 348.º do CP), sendo certo, por outro lado, que tal comportamento também constitui contra-ordenação punível com coima de € 50.000 a € 250.000, quando cometido por pessoa colectiva. Já as decisões individualizadas deverão ser cumpridas imediatamente à sua notificação, sob pena de poder ser aplicada uma sanção pecuniária compulsória até € 500, tratando-se de pessoa colectiva.

Note-se que, ao contrário do que sucede em sede de Direito Penal, as eventuais condenações proferidas pela ERC não suspendem os seus efeitos por efeito de um recurso para os tribunais judiciais competentes, previsto no art.º 75.º, salvo no caso de ser conseguida uma providência cautelar o que quer dizer que, na prática, e a menos que os regulados queiram correr o risco de incorrer na prática do crime de desobediência, ou no pagamento de sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso no cumprimento, as mesmas terão de ser cumpridas de imediato, ainda que delas se recorra e ainda que mais tarde venha a provar-se que afinal estavam erradas.

Este é o corolário absoluto de um sistema de reforço dos poderes do órgão regulador que permite que se fale, a esse propósito de um verdadeiro «regulador musculado» em oposição àquilo que sucedia com a Alta Autoridade para a Comunicação Social e antes desta com o Conselho de Imprensa.

3. Defesa do dever de sigilo profissional (protecção das fontes de informação) – A Lei da Imprensa e o Estatuto do Jornalista
Segundo a lei de imprensa vigente, a Lei n.º 2/99, de 13 de Janeiro, no seu art.º 3.º, «a liberdade de imprensa tem como únicos limites os que decorrem da Constituição e da lei, por forma a salvaguardar o rigor e a objectividade da informação, a garantir os direitos ao bom nome, à reserva da intimidade da vida privada, à imagem e à palavra dos cidadãos e defender o interesse público e a ordem democrática».

Dispõe ainda o n.º 1 do art.º 17.º que as publicações periódicas informativas devem adoptar um estatuto editorial que defina claramente a sua orientação e os seus objectivos e inclua o compromisso de assegurar o respeito pelos princípios deontológicos e pela ética profissional dos jornalistas, assim como pela boa fé dos leitores.» Trata-se pois de uma consagração legal de critérios deontológicos.

Porém, a verdadeira «porta de entrada» do Código Deontológico aprovado pelo Sindicato dos Jornalistas nos critérios legais para aferição da exigência e do rigor informativos é o Estatuto do Jornalista, aprovado pela Lei n.º 1/99 de 13 de Janeiro, e que se encontra em curso de alteração, estando o Governo a preparar um anteprojecto de proposta de lei com essa finalidade.

O principal traço característico desta alteração é a autonomização e o desenvolvimento normativo de disposições relativas aos direitos de autor dos jornalistas sobre os seus trabalhos.

O anteprojecto de proposta de lei pretende ainda complementar substancialmente o art.º 14.º do Estatuto do Jornalista com um conjunto de obrigações de natureza deontológica, atribuindo competência disciplinar para o sancionamento do respectivo incumprimento à Comissão da Carteira Profissional do Jornalista, e cominando as sanções de repreensão escrita, sanções pecuniárias de € 100 a € 10.000 e suspensão do exercício da actividade profissional até 12 meses. Recorde-se que, actualmente, o Código Deontológico dos Jornalistas só vincula os jornalistas sindicalizados, sendo louvável a intenção de fazer com que todos sejam abrangidos pelas obrigações e pelas sanções disciplinares, tanto mais que a Comissão encarregue de as aplicar é composta por 8 jornalistas com dez anos de experiência e um jurista de reconhecido mérito e experiência na área da comunicação social, que será cooptado pelos demais membros por maioria absoluta, o qual presidirá.

O diploma pretende ainda reforçar as garantias do exercício da profissão jornalística no tocante, por exemplo, à protecção do sigilo das fontes, passando a ler-se «não podendo ser responsabilizados pelo seu silêncio» no n.º 1do art.º 11.º onde actualmente se lê «não sendo o seu silêncio passível de qualquer sanção, directa ou indirecta». A noção de responsabilidade poderá aqui estar a ser introduzida de forma a abranger a responsabilidade civil, uma vez que o termo «sanção» só se aplica ao direito punitivo, seja ele de natureza criminal ou meramente disciplinar. No entanto, a formulação adoptada parece perder em precisão e rigor, uma vez que acaba por induzir um hipotético sentido de irresponsabilidade, quando a protecção do segredo das fontes é na verdade um acto assumidamente responsável, praticado em ordem ao cumprimento das exigências deontológicas da profissão, e que, ao contrário do que aparenta, pode ter consequências graves para quem o pratica, nomeadamente em caso de processo penal.

É cada vez mais evidente que uma sociedade democrática moderna como a nossa não pode prescindir dos órgãos de comunicação social na sua função de «watchdogs» da legalidade e do interesse público, uma vez que são os únicos que, no exercício profissional e descomprometido da liberdade de expressão, traduzem um poder de controlo da actividade da classe política e dos outros poderes fácticos ou do Estado, possibilitando a detecção e correcção de irregularidades, desvios e comportamentos menos claros, susceptíveis de prejudicar o interesse colectivo e individual.

Por isso é que o número 2 do projectado art.º 11.º do Estatuto do Jornalista enuncia os casos em que, de acordo com o processo descrito no art.º 135.º do CPP, é admissível o incidente de quebra do sigilo profissional, concretizando desta forma aquilo que no CPP se enuncia em abstracto como «sempre que esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante». As causas legítimas de revelação das fontes de informação enunciadas são as seguintes:
a) investigação de crimes graves contra as pessoas (incluindo crimes dolosos contra a vida e a integridade física);
b) investigação de crimes graves contra a segurança do Estado. A norma refere como condição da revelação das fontes, parecendo-nos que em ambas as situações acima enumeradas, que aquela se mostre como a única forma possível de obter as respectivas informações. O uso da palavra «respectivas» inculca o sentido de ser aplicável aos casos das duas alíneas.

De acordo com o disposto no art.º 135.º do CPP, e partindo do princípio de que é legítima a invocação do segredo profissional, «o Tribunal imediatamente superior àquele onde o incidente se tiver suscitado, ou, no caso de o incidente se ter suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o plenário das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo».

As quebras do sigilo profissional ordenadas pelos Tribunais Superiores não tinham, até há pouco tempo, tradição no nosso ordenamento jurídico, mas ultimamente foram proferidas algumas decisões que deixam os órgãos de comunicação social muito preocupados com alguma leveza na ponderação.

É de salientar negativamente, a este propósito, pelo seu carácter pioneiro, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20/08/2002, que determinou a prestação de testemunho por parte do jornalista «free lancer» José Luís Ferraz Manso Preto, no âmbito da instrução de um processo-crime contra Jaime Manuel de Macedo Pinto, acusado da prática do crime de tráfico de estupefacientes. O objectivo do Tribunal da Relação seria obter a revelação do nome do inspector da PJ que teria dado ao depoente a informação sobre o facto de o caso da operação de apreensão de um significativo volume de estupefacientes, tendo o representante do Sindicato dos Jornalistas desaconselhado a referida quebra.

O jornalista manteve a sua recusa em revelar o nome da sua fonte, depois de se aconselhar com vários outros colegas e advogados, razão pela qual lhe foi aplicada pelo 4.º Juízo Criminal da Comarca de Lisboa uma pena de prisão de 11 meses, suspensa por três anos, posteriormente revogada por acórdão absolutório do Tribunal da Relação de Lisboa que considerou, no caso concreto, interesse prevalente e preponderante ao da realização da justiça a protecção do segredo profissional.

Mais recentemente, o País foi confrontado com o caso da busca ao jornal 24 horas, do Grupo Lusomundo, na qual foram apreendidos computadores pessoais dos jornalistas, contendo, alegadamente, dados de tráfego e outros dados pessoais de terceiros, cuja eventual utilização não autorizada se estaria a investigar, em conexão com o chamado «envelope nove» junto aos autos do processo de pedofilia na Casa Pia. A busca foi presidida por um juiz de instrução mas… será legítima a violação dos instrumentos de trabalho e dos arquivos pessoais dos jornalistas? Essa questão foi, entre outras, também suscitada perante o Tribunal da Relação de Lisboa.

Importa confrontar o regime do Estatuto do Jornalista e do CPP com os casos previstos na Recomendação do Comité de Ministros do Conselho da Europa n.º R(2000)7 sobre o direito dos jornalistas de não revelarem as suas fontes de informação, aprovada em 8 de Março de 2000, bem como a prática do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), encarregado de velar pela boa aplicação da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.

A referida Recomendação, destinada a servir de orientação aos Estados Membros do Conselho da Europa, enuncia em anexo algumas definições básicas e 7 princípios fundamentais, dos quais o mais relevante é o terceiro, de acordo com o qual, em linha com o TEDH, são as seguintes as condições que deverão verificar-se cumulativamente para que possa considerar-se justificada a quebra do sigilo profissional relativamente às fontes da informação: a) i) existência de um interesse público superior («overriding requirement in the public interest»), considerando que deverá ser provada a necessidade imperativa da quebra do sigilo profissional; ii) verificação de circunstâncias suficientemente vitais e de natureza séria; b) i) não existirem medidas alternativas razoáveis ou já foram tentadas de forma exaustiva por parte das autoridades ou dos interessados na quebra (que terão de ser partes legítimas, segundo o disposto no princípio 5.º). ii) o interesse superior que determina a necessidade da quebra deverá ser provado; iii) as circunstâncias deverão ser suficientemente vitais e de natureza séria; iv) a necessidade de quebra corresponde a uma necessidade social premente; v) a apreciação de cada Estado-Membro está de acordo com a jurisprudência do TEDH.
Estes requisitos deverão verificar-se em todas as fases do processo em que o direito do jornalista possa ser invocado. O acórdão fundamental do TEDH nesta matéria é o que foi proferido no caso Goodwin v. Reino Unido, de 27/03/1996, norteado por uma preocupação fundamental de preservação do papel dos órgãos de comunicação social como «watchdogs» do funcionamento da democracia, face ao risco de «congelamento» das fontes de informação («chilling effect»). Neste processo, foi considerado que o interesse da empresa em saber quem tinha passado a informação ao jornalista não era superior ao interesse público na não revelação das fontes, podendo as consequências ser impedidas por outras vias.

O TEDH entendeu, desde logo, que as limitações à liberdade de expressão teriam de ser fundamentadas na lei; que o valor da informação ou o grau de interesse público na informação pretendida não era o factor decisivo, devendo tratar-se de um interesse legítimo, à luz do art.º 10.º § 2.º, o qual deveria ser interpretado restritivamente, por forma a só ser considerado legítimo em face dos próprios fundamentos que se superiorizam ao dever de manter o sigilo das fontes. O art.º 10.º § 2.º enumera razões para a restrição da liberdade de expressão, sem estabelecer uma hierarquia: a prevenção da desordem ou do crime; a protecção da saúde ou da moralidade, a protecção dos direitos de outros, a prevenção da revelação de informação recebida em confidência, a manutenção da autoridade e imparcialidade da justiça. Qualquer restrição ao direito de preservação do segredo profissional terá de ser fundamentada nalgum destes legítimos interesses; teria ainda que passar no teste da necessidade numa sociedade democrática (cfr. The Sunday Times v. Reino Unido ( n.º 2) de 26/11/1991 e também Fressoz e Roire v. França, de 21/01/1999).

Por outro lado, os interesses prosseguidos não poderão ser realizados sem a quebra do sigilo, ou seja haverá que estabelecer uma causalidade adequada entre a quebra do sigilo e a realização do interesse legítimo; todas as fontes alternativas, mesmo não jornalísticas, deverão ter sido tentadas. Deverão procurar-se, por outro lado, alternativas menos intrusivas para alcançar o resultado pretendido. O interesse prosseguido deverá ser proporcional aos meios utilizados para o prosseguir e deve suplantar o interesse na preservação do sigilo profissional. O Grupo de Especialistas em Direito dos Media e Direitos Humanos (MM-S-HR) apontou a protecção da vida humana, a prevenção de crimes graves, a defesa no âmbito de um processo por quem vem acusado da prática de um crime grave.

O anexo à citada Recomendação prevê ainda outros princípios, tais como a não revelação das fontes no âmbito de processos de abuso de liberdade de imprensa (P4); a exigência do cumprimento de determinados requisitos e regras procedimentais no processo de quebra do sigilo profissional (P5); a proibição de intercepção de comunicações, de vigilância, de buscas e apreensões com o objectivo de contornar a protecção do sigilo das fontes – com a prescrição de limites à utilização da informação acidentalmente obtida por entidades policiais ou autoridades judiciárias (P6): a protecção contra a auto-incriminação por parte dos jornalistas (p7).

Embora se possa perceber que o texto da proposta governamental de alteração ao Estatuto do Jornalista se inspira claramente na referida Recomendação do Conselho da Europa, quer na parte procedimental, quer nos fundamentos, a verdade é que a prática dos Tribunais Portugueses coloca claramente em cima da mesa um risco elevado de, porventura por falta de uma descrição mais pormenorizada das situações em que se pode considerar que o interesse público ou valor fundamental em causa sobreleva o dever de protecção do sigilo profissional, ser, ou poder vir a ser, extremamente frequente o levantamento do sigilo profissional, em detrimento da liberdade de imprensa, sem que se proceda à tentativa de explorar vias alternativas, cedendo à tentação de assumir cedo demais que não existe qualquer outra forma de obter a informação.

Por outro lado, nos processos acima mencionados, que passaram ou estão a passar pelos tribunais portugueses, não parece estarem em causa a prática de crimes graves contra a vida ou a integridade física de alguém, ou mesmo de atentados contra a segurança do Estado.

Antes parece evidenciar-se, em ambos os casos, que a verdadeira finalidade da quebra do segredo profissional é a descoberta de quem divulgou factos que permitiram à Comunicação Social alertar a opinião pública e desencadear os competentes procedimentos por parte das autoridades judiciárias, para então exercer represálias, ao invés de prosseguir uma estratégia de averiguação das verdadeiras causas dos problemas denunciados.

4. Nova configuração do crime de violação do segredo de justiça
Por último, importa referir a existência de alguma preocupação referente ao futuro artº 371º do Código Penal, segundo a actual proposta da Comissão de Reforma competente:
"1. Quem, estando vinculado ao segredo de justiça, ilegitimamente der conhecimento, no todo ou em parte, de acto ou elemento de processo penal que se encontre coberto por esse segredo, ou a cujo decurso não for permitida a assistência do público em geral, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, salvo se outra pena for cominada para o caso pela lei de processo.
2. A mesma pena é aplicada a quem, tendo tomado conhecimento de acto ou elemento previsto no número anterior, dele der conhecimento, no todo ou em parte, prejudicando a investigação criminal.
3. Para efeitos do número anterior considera-se que prejudica a investigação criminal quem divulgar: a) meio de obtenção de prova projectado ou em curso ou meio de prova a produzir; b) mandado de detenção ou a aplicação de medida de coacção ou de garantias patrimonial cuja execução ainda não tiver sido iniciada; c) a identidade de testemunha sob protecção ou de agente encoberto. (...)"
Conquanto seja de louvar a intenção de restringir a punição do crime de perigo, e perigo concreto, a quem prejudicar a investigação ao dar conhecimento de acto ou elemento coberto pelo segredo de justiça, subsiste a dúvida fundamental que é saber se apenas se verifica crime nos casos previstos nas alíneas ou se aquelas são meramente exemplificativas, podendo vir a verificar-se a posteriori que uma notícia prejudicou o inquérito.

Caso se entenda que só nos casos previstos nas alíneas existe o crime de violação de segredo de justiça, será relativamente objectivável qualquer situação susceptível de criar perturbação para o decurso da investigação: caso contrário, o jornalista poderá ver cerceado o seu direito de revelar factos atinentes ao processo, com receio de que seja dado a conhecer algum elemento que possa ser usado em prejuízo da investigação.

De qualquer modo, há que compatibilizar o regime enunciado com o que vem previsto na Recomendação do Conselho da Europa n.º R (2003) 13, de 10 de Julho de 2003, relativa à divulgação pelos meios de comunicação social de informações relativas a processos-crime, sendo relevante, a este respeito, o princípio 6.º do respectivo Anexo, segundo o qual as autoridades judiciais e as forças policiais devem manter os meios de comunicação social informados acerca do essencial dos procedimentos, desde que tal não prejudique o segredo das investigações ou diligências, nem atrase ou impeça o [bom] resultado das mesmas.

No caso de investigações prolongadas, a informação deverá ser prestada regularmente, tendo em conta o direito dos jornalistas de proceder a investigação paralela, a qual, de outra forma, se arrisca a prejudicar a investigação, revelando, por exemplo, a identidade de testemunhas, ou contactando com os presumidos criminosos.

De qualquer forma, o Conselho da Europa chama a atenção para o facto de que uma investigação absolutamente secreta não ser conforme com o art.º 10.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e de que a investigação paralela dos «media» também tem aspectos positivos, tal como encontrar testemunhas ou suspeitos da prática de crimes, ou alertar a opinião pública para novas situações.

Victor Castro Rosa
Advogado

Notas:
1-Art.º 8.º da Lei n.º 5/2004 de 10 de Fevereiro (Lei das Comunicações Electrónicas)
2-Art.º 33.º e 38.º da Lei n.º 18/2003 de 11 de Junho (Regime Jurídico da Concorrência)"


Fonte: Ordem dos Advogados

1 comentário:

Arrebenta disse...

Pensamento da Tarde
Muito se ladra contra a prevalência, na Blogosfera, dos anónimos. Quando começará alguém a ladrar igualmente contra os anónimos poderes ocultos que se ocultam, manipulam, e representam as pretensas caras do Discurso Instituído na Atmosfera?...

http://braganza-mothers.blogspot.com