terça-feira, março 21, 2006

Efeitos colaterais


Adriano Moreira
Professor universitário

"A guerra fria era caracterizada por uma ameaça de destruição recíproca, com a qual os dois blocos militares conseguiram transferir os conflitos armados para as guerras marginais, e preservar o regime de guerra improvável e paz impossível em toda a área do Norte rico do mundo.

As armas nucleares estavam supostamente em boas mãos, na opinião que cada um dos centros de decisão tinha sobre si próprio, mas os analistas, ao longo desse meio século de medo recíproco, foram insistindo no perigo da disseminação, uma mensagem que se tornou mais instante à medida que o conceito de armas de destruição maciça se tornou mais complexo.

Os tratados feitos com o objectivo de evitar esse risco, orientados por uma inquietação que nunca incluiu a renúncia das potências que dispunham da supremacia da técnica e do arsenal produzido, encontraram-se desafiados quando, caído o Muro de Berlim em 1989, se iniciou uma nova corrida nuclear, complementada pela procura das restantes capacidades de destruição maciça.

Para tornar mais inquietante este risco de subida aos extremos com utilização das armas supremas, o Presidente da França, que em tempos decidiu ignorar as restrições sobre os ensaios nucleares, explicitou recentemente uma circunstância até agora apenas avaliada com prudência analítica. Discursando na Ille-Longue em 19 de Janeiro sobre a filosofia da force de frappe, tornou claro que, no seu pensamento, o uso do poder nuclear não visa apenas "a integridade do território, a protecção da população, e o livre exercício da soberania", mas também a "garantia dos recursos estratégicos e a defesa dos países aliados".

Um discurso que a imprensa comentou, quando a teoria dos rogue states é reposta nas cogitações mundiais pelas afirmações peremptórias do Governo do Irão, e a dependência não só europeia, mas também americana, das energias não renováveis reforça a leitura que abandona a relação da ameaça recíproca da primeira era do nuclear.

Está presente a moderada eficácia dissuasora dessas armas em relação ao fanatismo que informa o terrorismo global, que tem o Ocidente por inimigo.

Esta crua leitura exige uma reflexão. Não faltaram críticas no sentido de considerar inoportuna e perigosa a referida inflexão doutrinal, logo seguida esta das habituais intervenções paliativas do alarme causado, mais prontas agora do que quando os ensaios nucleares franceses mereceram reparo.

O que parece sobretudo inquietante é que um dos países que se consideram confiáveis para deterem o poder nuclear tenha entendido ser tempo de reafirmar uma antiga atitude soberana em face do globalismo da insegurança mundial.

Mais uma vez tornando assim evidente que o maior dos perigos existentes é a anarquia da governança internacional, e a urgência de assumir que não é da melhor prudência a teimosa recusa de reformular a ONU e definir uma capacidade supra-estadual de prevenção, intervenção e reposição da confiança.

Da superpotência sobrante às mais débeis potências, apenas está distribuída com largueza a capacidade específica do perturbador, mas nenhum Estado demonstrou a real capacidade do unilateralismo.

O exercício de equacionar a sementeira de novas ameaças que eventualmente determinem o uso unilateral da arma nuclear torna claro que a insegurança mundial, o risco global da paz, sobe de grau pelos prováveis erros das respostas à teoria das ameaças que a nova polemologia mal enumera.

Não se trata apenas das severas lições do Médio Oriente, da política seguida em relação aos talibãs e suas pesadas sequelas, dos acidentes anunciados na antiga rota da seda, das memórias das agressões sofridas pelas repúblicas da Ásia Central que todas as análises enumeram: também há que ter em conta a situação interna de alguns dos apoios estaduais até aqui utilizados, a fluidez das sedes do terrorismo, a estabilidade abalada das colónias imigrantes estabelecidas.

A qualidade de superpotência dos EUA é visível não estar ao alcance dos demais Estados, mas está ao alcance de qualquer Estado, agravando o debate internacional, repetir o erro de supor, mesmo com juízos plausíveis, que tem capacidade de agir isolado, para depois todos terem de reconhecer-se excedidos pelos efeitos colaterais.

A fragilidade da paz internacional não está apenas afectada pela desregulação do controlo dos armamentos: as palavras também são uma arma, e os efeitos colaterais dos discursos podem igualmente ser incontroláveis."

in Diário de Notícias

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