domingo, março 19, 2006
A árdua caminhada de um candidato a juiz
"Posso dizer que a partir da minha entrada no Centro de Estudos Judiciários só confraternizei na altura do Natal e da passagem de ano. A nossa família é postergada e as saídas à noite acabaram". Joana não se chama Joana. Pede que ocultemos o seu nome verdadeiro e o seu rosto. Está a fazer a caminhada até à magistratura e prefere, nesta fase, o anonimato.
Tem 28 anos, um filho de três, e o tempo contado ao milímetro. Conseguiu passar nas concorridas provas de aptidão para ingresso no Centro de Estudos Judiciários (CEJ), a escola que forma magistrados judiciais e do Ministério Público, foi nomeada auditora de justiça e está agora num tribunal do Ribatejo a receber formação prática. Para trás ficaram seis meses de formação teórica no CEJ e pela frente tem mais 75 dias de aulas. Só depois, se for aprovada, é que passará à fase de estágio, já como juíza de direito. Para Joana, a caminhada vai ainda a meio. Para outros, a corrida está quase a começar.
Mais de dois mil licenciados em direito concorreram para o curso que se inicia em Setembro. A lista (ainda provisória) foi recentemente divulgada em Diário da República e feita uma observação minuciosa fica-se a saber que, dos 2082 candidatos, 1527 são mulheres, uma tendência que se verifica há já alguns anos.
Só 100 terão entrada no CEJ, porque foi este o número de vagas libertado pelo Governo este ano. Passam os que melhores notas tiverem nas provas de aptidão. Não é fácil. Os exames são duros, as matérias a saber na ponta da língua são muito vastas, os calhamaços a "decorar" são mais que muitos. A competição é renhida. E começa já no dia 1 de Abril, com a prova de direito civil, processo civil e comercial. Segue-se o exame de direito e processo penal, e, depois, os candidatos à magistratura são chamados a dissertar sobre um tema social, político ou cultural, que pode ir desde o ambiente, à religião e civilização ou educação e cidadania.
O sonho de ser magistrada
"Sempre tive o sonho de ir para o Centro de Estudos Judiciários". Claúdia Duarte é uma das 1527 candidatas. Tem 25 anos e não sabe ainda qual a magistratura que vai escolher, caso ultrapasse com sucesso todas as etapas - o auditor de justiça só opta pela magistratura judicial ou do Ministério Público após a fase teórico-prática, a que precede a fase de estágio.
Concluído o curso na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Cláudia decidiu fazer o estágio para a advocacia para ocupar os dois anos de interregno que a lei impõe entre a obtenção da licenciatura e a candidatura ao CEJ. Cláudia não foi a única a enveredar por esse caminho naquele compasso de espera. Alguns acabam mesmo por ficar pela advocacia, desistindo da candidatura ao CEJ. Frederico Munoz Saragoça está inscrito para as provas de ingresso, mas provavelmente, segundo disse ao DN, não vai realizá-las. "A ideia era testar os meus conhecimentos, mas em princípio não vou fazer os testes, vou ficar pela advocacia". O caso de Frederico não é único e por isso alguns agentes da justiça têm exigido a extinção daquele prazo de dois anos, para evitar que "os melhores" acabem por optar por outra profisão jurídica.
Outros há, no entanto, que, embora exercendo advocacia há alguns anos, não desistem de tentar o almejado sonho de ser juiz ou procurador... ou simplesmente de tentar uma profissão que dizem ser mais estável.
Rui Tomás candidata-se pela segunda vez. É advogado há dois anos. "Não digo que ser juiz é um sonho. Mas a advocacia está difícil, temos mais dificuldade em impôr-nos e a magistratura é mais segura."
Há também, entre os candidatos, quem não saiba muito bem para o que está a concorrer. "Eu penso que concorri para auditor, não tem nada a ver com juiz." Rui Filipe estava convencico que se candidatava para "aqueles inspectores que fazem auditorias aos juizes". Desconhecia que um auditor é um "juiz" em início de carreira.
De auditor a juiz
Os candidatos que melhores notas obtiverem nas várias etapas do concurso ingressam no CEJ, com o tal estatuto de auditor de justiça. E uma nova "viagem" pelos calhamaços se inicia. A avaliação a que vão estar sujeitos é exigente e contínua.
Durante 10 meses (seis na primeira fase, quatro depois de passarem pelo tribunal) recebem formação teória em deontologia, medicina legal ou criminologia, bem como em várias áreas do direito - civil, penal, comunitário, constitucional, administrativo. Mas, porque a formação tem sido criticada por ser excessivamente técnica, afastando os futuros magistrados da realidade social, a direcção do CEJ decidiu abrir as aulas a outros saberes. Por isso, em 2005, os auditores começaram a receber preparação em contabilidade e gestão, sociologia e psicologia judiciária, técnicas de informação e comunicação, direitos fundamentais, línguas e, também, imagine-se, em expressão e voz. Uma abertura que, para muitos, continua a ser insuficiente (...).
Pelo meio, passam um ano num tribunal, para, sob a orientação de um magistrado-formador, tomarem contacto com a prática forense - simulam peças processuais e assistem a actos de inquérito e outras diligências. Joana, a tal auditora que está num tribunal do Ribatejo, encontra-se agora na parte final desta fase.
Chega-se, então, à hora da verdade. Concluída a fase teórico-prática, o conselho pedagógico do CEJ procede à avaliação dos alunos. Os que tiverem mais de 10 são "graduados segundo a respectiva classificação", sendo então nomeados juízes de direito ou procuradores-adjuntos, consoante a escolha que tiverem feito. Mas durante 10 meses, ficam com o estatuto de estagiários. Ou seja, já dirigem julgamentos ou actos de inquérito, bem como todas as diligências próprias da respectiva magistratura, mas ainda sob o olhar atento de um formador. Depois de colocados como efectivos num tribunal, ficam obrigados a ter formação complementar durante dois anos. Joana sabe que tem ainda pela frente muitas horas de estudo: "É uma profissão de esforço e de estudo e sei que vai ser assim o resto da vida."
Pelo menos era assim que devia ser. Porque a lei e a realidade social estão em constante mutação, o CEJ organiza todos os anos acções de formação sobre os mais variados temas. Mas a sua frequênca é facultativa. E esta tem sido uma das principais críticas feitas ao modelo de formação dos magistrados.
Fonte: Diário de Notícias
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário