quinta-feira, março 30, 2006
'Segredos oficiais' e abusos de poder
Mário Bettencourt Resendes
Jornalista
"A generalidade das democracias modernas ainda não conseguiu combinar, de forma satisfatória, a necessidade da existência de "segredos oficiais" com a prevenção de abusos de poder e eventuais violações, daí decorrentes, dos direitos individuais dos cidadãos.
Os "segredos oficiais" não se limitam às investigações de polícias e remetem tanto para a segurança interna como para a externa, sendo que, nestes tempos de terrorismo global e apátrida, não há, muitas vezes, uma fronteira clara entre uma e outra.
Na sequência dos atentados de 11 de Setembro de 2001, a maioria dos países ocidentais encontrou eco nas respectivas opiniões públicas para tomar medidas que visaram aumentar a eficácia dos serviços de informações, reforçando os limites do segredo de Estado e aumentando a possibilidade de intrusão na vida privada de alegados suspeitos.
Uma parte dessas iniciativas tinha justificações próximas e plausíveis. Foi, por exemplo, o caso da nomeação, pela Administração Bush, de um responsável máximo pela multiplicidade de serviços de informações. De facto, a investigação posterior a 11 de Setembro havia apurado que sobravam indícios apontando para a alta probabilidade da preparação de uma acção terrorista de calibre elevado. Os elementos disponíveis repartiam-se por vários serviços, foram, em alguns casos, subavaliados e, noutros, faltou uma gestão global dos dados existentes.
Não surpreende o que aconteceu se tivermos em conta que, para além da CIA e do FBI, dispõem de serviços de informações cada uma das divisões das forças armadas (Marinha, Exército, Força Aérea e ainda o Corpo de Marines), o Departamento de Defesa, a Agência Nacional de Segurança, com toda a sua panóplia de tecnologias de última geração, o Departamento de Estado, incluindo a polémica divisão de Operações Consulares, e ainda a National Geospatial-Intelligence Agency. Para além disso, mais próximo da Casa Branca, o próprio Conselho Nacional de Segurança mantém um grupo de especialistas em tramento de informação e deve também ter-se em conta a investigação que ocorre a nível das polícias citadinas, que actuam autonomamente em todo o país. Ora, não é difícil concluir que coordenar tudo isto, com um mínimo de eficácia, é uma dor de cabeça gigantesca, acrescida pelas rivalidades que pululam numa actividade sensível como é a administração de "informação reservada" - não esquecendo as ligações hoje indispensáveis a serviços homólogos de outros países.
Se é compreensível este tipo de acções a montante, a verdade é que os responsáveis políticos cedem muitas vezes à tentação de procurar melhorar a "segurança colectiva" através da restrição das liberdades individuais, interferindo abusivamente no quotidiano dos cidadãos e coarctando a margem de manobra dos meios de comunicação social. Não é uma novidade nem sequer é um exclusivo da democracia norte-americana: nos anos anteriores à Grande Guerra, e com o pretexto de facilitar a detecção de espiões alemães, o Governo britânico aprovou uma "Lei dos Segredos Oficiais" que sobreviveu, praticamente sem alterações, até à sr.ª Thatcher e ainda hoje, mesmo suavizada, faz do Reino Unido uma das democracias mais oficialmente "reservadas" do planeta. No seu artigo de domingo, no Público, Mário Mesquita referiu a condenação caricata de um jornal inglês, nos anos 60, por ter divulgado os planos de alteração da rede fer- roviária. Poderia acrescentar-se, a benefício do excesso (e ridículo...) da legislação, que ainda há 15 anos era "segredo de Estado" a própria ementa da cantina do Ministério da Defesa.
Na dialéctica de equilíbrios de um Estado de direito democrático, os meios de comunicação social desempenham um duplo papel essencial de moderação e vigilância. Não foi por acaso que Thomas Jefferson, o principal inspirador da Constituição norte-americana, proferiu a célebre frase que manifestava preferir "jornais sem um governo a um governo sem jornais". Mesmo não esquecendo os excessos e as violações deontológicas estimuladas pela concorrência, é indiscutível que os media têm funcionado como freio protector dos cidadãos perante as tentações de abuso de poder causadas pela deriva securitária.
Por isso, os dirigentes políticos que genuinamente se preocupam com a qualidade das nossas democracias devem pensar duas vezes antes de promoverem alterações legislativas que vão, objectivamente, diminuir a capacidade de investigação jornalística e, por consequência, o direito que o público tem de "saber". E esta é, como se sabe, uma questão que, em Portugal, está em plena ordem do dia."
in Diário de Notícias
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