sexta-feira, março 31, 2006

Facilitar o divórcio? Ainda mais?


António Marcelino
Bispo de Aveiro

"Ninguém pode negar aos grupos políticos, com assento parlamentar, o direito de proporem o que quiserem para que seja lei. Mas, também, nenhum grupo político pode negar ao simples cidadão ou a grupos atentos, o direito de se pronunciarem sobre as propostas apresentadas, sejam elas acordadas com troca de favores, ou anunciadas nos jornais com intento de criar ambiente propício à sua aceitação pela opinião pública.

Em muitos casos, pensa-se e propõe-se à revelia da ética, do bem comum, do serviço claro à sociedade no seu conjunto e faz-se tábua rasa do respeito devido às pessoas, aos direitos humanos fundamentais, às instituições estruturantes da comunidade nacional, ao conhecimento da realidade, à destruição provocada por leis que se apoiaram em maiorias interessadas, desprezando o interesse e os direitos dos cidadãos em geral.

O BE anunciou antes e apresentou depois, uma proposta de lei para facilitar ou “agilizar” o divórcio. Segundo o proponente “o único motivo que deve bastar para o divórcio é a vontade expressa de um dos cônjuges”. Acrescenta, ainda, que se trata da “mais importante proposta de modernização do direito da família”. Faz pensar. As leis divorcistas portuguesas são as mais facilitadoras da Europa, feitas, por certo, por muita gente divorciada ou a caminho, ávida por captar simpatias e votos em franjas sociais, sobretudo de jovens, com intuito de agradar e alcançar esse objectivo. Ora, a razão de ser das leis não é satisfazer interesses partidários, mas o bem comum dos cidadãos.

O apoio claro e permanente aos casais, livremente comprometidos num projecto comum e dispostos ao esforço normal para o levar a bom termo, sempre e muito especialmente quando há filhos, é cada vez mais desconsiderado por quem faz as leis e esquece o dever constitucional de defender a família. Hoje “agiliza-se” e propicia-se, de modo inconcebível, o que fragiliza a relação conjugal e os deveres dos cônjuges e dos pais. De comum acordo, já entre nós se faz um casamento no sábado e se pede o divórcio na segunda feira. Por isso mesmo e por razões secundárias, depois de uma lua de mel tumultuosa alguns novos cônjuges já não regressam juntos à casa que sonharam e construíram. Para que preparar a sério o casamento ou superar no mesmo as dificuldades normais, quando se pode, legalmente e de imediato, “passar a outra”, sem incómodo de maior?

As leis actuais, cumpridos prazos, são favoráveis à irresponsabilidade de correr atrás do que agrada mais. Ao mesmo tempo, penalizam, injustamente, os que lutam, perdoam e esperam. Assim se multiplica o número de vítimas inocentes, a favor de quem não está para assumir culpas, fazer esforços e ser fiel a compromissos. Para trás ficam muitas pessoas destruídas, sonhos e projectos desfeitos. O divórcio deixa, em gente séria, feridas dolorosas e, muitas vezes, também, crianças inseguras e envolvidas em ódios inconcebíveis ou em carinhos descontrolados dos pais que os geraram. Vidas a prazo, filhos a prazo. É isto o que quer “agilizar, ainda mais, o BE?

O legislador não pode olhar apenas o metro quadrado da sua ideologia ou do seu interesse. Tem de ver o país concreto, onde a família é o grande valor, e considerar a realidade sem preconceitos. Nunca aqueles que interferem na feitura das leis podem desconhecer o país e os seus valores culturais, nem fechar os olhos ao que se passa ou ter apenas dos problemas uma visão unidimensional. A afirmação que muitos jornalistas acriticamente veiculam e a que o poder político dá guarida, de que são “os sectores mais conservadores e da Igreja Católica” que estão a travar o progresso, é a expressão do atraso cultural, da negação da vida democrática, do desprezo pelo bem comum, da premeditada alteração da hierarquia dos valores em que assenta a dignidade, a segurança e o futuro de um povo. O divórcio é uma epidemia corrosiva que destrói o tecido social, porque a família é a sua força mais consistente. Se em algum caso é a solução possível de problemas graves e direitos espezinhados, chegou-se, entre nós, ao limite de fazer, legalmente, do casamento, uma brincadeira social. O legislador sério não pode deixar de ter consciência de tudo isto. Se for capaz de o compreender e fazer."

in O Primeiro de Janeiro

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