quarta-feira, março 01, 2006

Mais vigilância ao serviço dos patrões


Uma empresa dos EUA substituiu cartões de segurança pela implantação de ‘chips’ no braço de dois funcionários. O caso lembra o livro ‘Admirável Mundo Novo’, de Aldous Huxley, no entanto, o avançar das tecnologias de controlo pode ser mais perigoso do que se julga. Os portugueses já começam a sentir isso.

Ao colocar ‘chips’ no braço de dois empregados, uma empresa dos EUA abriu a porta para o que pode ser o mais sofisticado e invasivo controlo electrónico de trabalhadores feito até hoje por parte da entidade patronal. Embora a City Watcher, empresa de segurança no estado do Ohio, diga que se trata de um teste, a experiência está a causar polémica e a dividir opiniões. (Ver texto “Funcionários americanos etiquetados”).

Perante o uso deste tipo de tecnologias para controlar pessoas, há uma pergunta que se impõe: estão os cidadãos a viver o início de uma sociedade totalitária, que, em nome da guerra ao terrorismo, se permite vigiar as pessoas em todos os seus passos a todo e qualquer instante? Por enquanto, pelos menos em Portugal, e segundo o presidente da Missão para a Reforma do Código Penal, Rui Pereira (também ex-director do Serviço de Informações e Segurança – SIS), essa realidade permanece longínqua.

Mas, a verdade é que já existe controlo à distância, em tempo real, de veículos automóveis, como é o caso de alguns táxis e de toda a frota de veículos pesados da empresa de transportes Luís Simões. Certo é que dos veículos aos indivíduos, trata-se apenas de dar um pequeno passo, seja este controlo feito via ‘chip’ electrónico implantado no organismo ou com recurso a telemóvel.

O próprio serviço disponibilizado pelas operadoras, que permite ao portador de um telemóvel saber das farmácias, restaurantes, bares ou cinemas mais próximos do local onde se encontra, funciona através de uma “triangulação de antenas” e implica a autorização do titular do telemóvel, sendo até pago.

Portugueses localizáveis

As operadoras garantem que este serviço implica a “autorização do titular”, mas também admitem, designadamente a Optimus, que o chamado geoSMS permite às empresas com colaboradores móveis, como estafetas ou assistência técnica (nas firmas de reboque e reparações), localizarem os respectivos funcionários.

Paralelamente, esta mesma operadora diz ainda disponibilizar um serviço, Localiser, que permite aos pais saber onde se encontram os respectivos filhos.

Constituído por um módulo telemóvel/GPS, este serviço além de possibilitar a localização em tempo real de uma pessoa, criança ou não, ainda permite que, numa emergência, esta possa contactar com dois números de telefone previamente definidos. A cada um destes números corresponde um simples botão do aparelho.

De novo se levanta a questão de a alguém, neste caso um trabalhador, poder ser facultado um aparelho equipado com o dispositivo de localização em tempo real, sem que isso seja do conhecimento do próprio.

ESTRADAS COM CÂMARAS ILEGAIS

Embora façam parte do quotidiano dos cidadãos, também as câmaras de videovigilância constituem uma intromissão na esfera da vida privada e são sujeitas a fiscalização e regulamentação pela Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD).

Recentemente, o CM noticiou a aprovação pelo Conselho de Ministros de uma proposta de lei que regulamenta a utilização dos dados obtidos pelos meios de vídeovigilância das estradas nacionais. Um dia depois, a CNPD alertava para o facto de esses meios serem, na sua maioria, ilegais, precisamente pela falta de disposição legal que permita a respectiva instalação e utilização.

Assim sendo, e enquanto persistirem dúvidas sobre a legalidade dessa vídevigilância, dificilmente as imagens captadas por estas câmaras servirão de meio de prova em Tribunal, para apurar de eventuais culpas num acidente rodoviário ou outro crime. Diferente é o caso das imagens (fotografias) captadas por radar quando um veículo ultrapassa o limite de velocidade permitido, como sucede na Ponte 25 de Abril, em Lisboa.

Mais pacíficas, no domínio das práticas de investigação policial, em caso de crime, estão as câmaras de vigilância instaladas em locais privados, mas de frequência pública, como certas empresas, centros comerciais, dependências bancárias ou caixas de multibanco. Apesar das insistentes solicitações do CM à CNPD para um esclarecimento quanto à eventual legalidade destas câmaras, a resposta foi sendo sucessivamente adiada.

FUNCIONÁRIOS NORTE-AMERICANOS ACEITAM SER ETIQUETADOS

A City Watcher, uma empresa norte-americana de segurança privada, resolveu colocar ‘chips’ de silicone em dois dos seus empregados. Nos EUA é o primeiro caso de trabalhadores etiquetados electronicamente para identificação. Os responsáveis explicam a experiência como uma forma de testar o acesso a uma das suas salas que contém informação em vídeo para agências governamentais e Polícia.

Os críticos dizem que ter pessoas numeradas levanta problemas sérios ao nível da privacidade e liberdades civis dos cidadãos. Sean Darks, o director da empresa, afirma que o ‘chip’, implantado na braço, serve apenas para identificar. “Não há nada a pulsar ou enviar sinais, não é um sistema de GPS.”

Já os defensores do uso da tecnologia entendem que o sistema é aceitável desde que não se torne prática recorrente dos patrões.

TECNOLOGIA APLICADA AO CIDADÃO

A FAVOR

- Localização de veículos, acidentados ou roubados
- Localização de filhos ou crianças institucionalizadas
- Câmaras de vigilância como factor dissuasor de potenciais assaltantes
- Imagens gravadas podem ajudar a identificar e localizar autores de um crime
- Informação sobre restaurantes, farmácias ou cinemas mais próximos
- Desburocratização e redução do excesso de papelada

CONTRA

- Uso do telemóvel como localizador
- Devassa da vida privada: entidade externa (Estado ou empresa) pode saber onde uma pessoa se encontra em qualquer hora
- Vídeo - Pessoa pode ser filmada em qualquer lugar quando menos espera
- Bases de dados - Devassa e desconforto de serviços da Administração Central poderem saber da história clínica de um indivíduo, se costuma ou não exercer direito de voto, se tem ou não dívidas ao Fisco e à Segurança Social
- Falta de controlo sobre o destino a dar à informação registada electronicamente
- Dúvidas sobre o perfil dos funcionários que controlam os cidadãos devem ter para assumir o papel de vigilante

MEIOS DE VIGIAR

O controlo e fiscalização do Estado sobre os cidadãos pode assumir uma de duas formas: instrumentos jurídicos ou meios de vigilância tecnológica (neste caso também ao alcance das empresas)

VIDEOVIGILÂNCIA

A quase totalidade das empresas que recorrem aos serviços de firmas de segurança externa solicitam meios auxiliares de videovigilância. Segundo dados cedidos ao CM pela Palanca, “95 por cento das empresas que pedem serviços de segurança requisitam câmaras de vigilância”.

POLÉMICA NA ÚLTIMA CAMPANHA ELEITORAL AUTÁRQUICA PARA LISBOA

A proposta do candidato socialista, Manuel Maria Carrilho – colocar câmaras nas zonas mais problemáticas da cidade, como medida de segurança – levantou a questão do direito à intimidade dos cidadãos e devassa da vida privada.

CARTÃO CIDADÃO

Equipado com um ‘chip’ digital, inclui os dados do bilhete de identidade, cartão de eleitor, contribuinte, utente do Serviço Nacional de Saúde e Segurança Social. Não pode ser lido à distância e não possui um número único para evitar o cruzamento de dados. Historial clínico, dívidas fiscais e dados sobre votação também não constam da informação.

DISCOTECA

A discoteca Baja Beach, em Barcelona, tem um sistema de identificação baseado num ‘chip’ digital, implantado sob a pele. O ‘chip’ é activado por rádiofrequência e permite ao portador aceder ao espaço sem documentos e pagar consumo. O proprietário garante a ausência de efeitos secundários.

EUA

Na sequência dos atentados de 11 de Setembro de 2001, a administração de George W. Bush aprovou legislação especial, o ‘Patriot Act’ que permite o acesso a dados dos cidadãos, antes tidos como privados. A legislação, temporária, tem sido sucessivamente prorrogada. Notícias recentes apontam para mais de 200 mil as pessoas cujas informações estão reunidas pela Agência Nacional de Segurança.

BILHETE DE IDENTIDADE

O governo britânico fez aprovar pelo Parlamento a introdução do novo bilhete de identidade obrigatório, a partir de 2008. A Câmara dos Lordes questionou o uso a dar ao documento, mas as objecções foram ultrapassadas.

"CONSENTIMENTO É QUESTIONÁVEL" (RUI PEREIRA, EX-DIRECTOR DE INFORMAÇÕES DE SEGURANÇA (SIS)

Correio da Manhã – Parece-lhe possível em Portugal uma situação como a da empresa americana, à luz das leis em vigor?

Rui Pereira – Em abstracto seria possível. Já há ‘chips’ nos animais domésticos. Mas não há tecnologia que permita a leitura à distância em tempo real.

– Nem por telemóvel, como em alguns veículos?

– Os telemóveis permitem a localização à distância, tal como os veículos. São sempre fonte emissora, mesmo quando desligados. Basta lembrar algumas acções mais espectaculares da Mossad [serviços secretos de Israel].

– Sobre o ‘chip’ e possível controlo dos cidadãos, a empresa alega consentimento dos funcionários...

– Mas o próprio consentimento é questionável. Se a maioria dos funcionários está de acordo, o que acontece aos outros? Podem sentir-se constrangidos a aceitar. Estão em causa direitos pessoais sobre os quais é duvidosa a eficácia do consentimento.

– Pode explicar melhor?

– O mesmo sucede com o polígrafo. Mesmo que um arguido aceite ser sujeito à máquina da verdade, parece questionável esse meio de prova, que transforma o arguido em objecto incapaz de dominar as reacções físicas. Depois, produz um efeito nos outros arguidos, Quem não se sujeita ao teste cria suspeitas quanto à sua culpa. O ‘chip’ levanta ainda questões do direito à integridade física e incolumidade do corpo.

– Isso não põe em causa uma série de avanços científicos em benefício dos cidadãos?

– Uma coisa é uma válvula artificial, um ‘by-pass’ ou um órgão transplantado. Está em causa um outro direito fundamental que é o do direito à Saúde. Outra coisa é a implantação de ‘chips’ que põem em causa a intimidade ou reserva da vida privada.

– Confia, então, nos mecanismos de salvaguarda dos direitos individuais e que não há ameaça a curto prazo?

– É verdade que os direitos e as leis têm um enquadramento histórico e que sofrem transformações. Com a evolução tecnológica a que assistimos é difícil prever o que vai acontecer num prazo de 20, 30 ou 40 anos. Se me é permitido um voto, gostaria que se não concretizasse um universo concentracionário tipo George Orwell.

– Fala de cedências das liberdades individuais em nome da segurança colectiva?

– É verdade que as novas realidades obrigam os Estados a criar regimes jurídicos mais eficazes. Porém, há limites que não podemos transpor sem os quais o Estado de Direito democrático se descaracteriza: o direito ao contraditório, o direito ao silêncio, o direito de escolher advogado e o direito de recurso.

NOTAS

- O Reino Unido é o campeão da videovigilância. Em 2007 poderá chegar aos 25 milhões de equipamentos.

- O Parlamento Europeu aprovou o armazenamento de dados de chamadas e acesso à internet por seis meses a um ano.

- Hospitais e lares estão a adoptar pulseiras electrónicas para controlar crianças e idosos e evitar fugas ou raptos.

- Cães e gatos portugueses já são controlados por ‘chip’. O objectivo é responsabilizar os donos pelo animal.


Fonte: Correio da Manhã

1 comentário:

Anónimo disse...

com a tecnologia perde-se privacidade e qualidade de vida, aumentando o risco de obter stress e cancro. Por isso pupa-se sempre num lado para aumentar a despesa noutro lado, nada sai gratis