domingo, fevereiro 05, 2006

"É a cultura que produz a tecnologia"


Num tempo em que, concretamente em Portugal, se fala muito de "choques tecnológicos" e se prestam vénias à Microsoft e seu rico patrão, eis um bom artigo, publicado na edição de hoje do DN, que constitui uma pedrada de lucidez no charco onde, dia após dia, alguns incautos insistem em querer mergulhar a nua e crua realidade portuguesa.

Tal como sugere o título, deixamos o mote: "É a CULTURA..."


A sociedade da informação entrou para a primeira linha da actualidade nacional, através do choque tecnológico. Manuel Castells tem seguido a evolução portuguesa e considera que o país está numa etapa de transição para o que apelida de modelo informacional de desenvolvimento. O modelo da sociedade em rede, baseado na informação, no conhecimento e na organização não hierarquizada. Mas o choque tecnológico faz-se só com... tecnologia?

A resposta do autor de "A Galáxia Internet" é negativa. "É a cultura que produz a tecnologia", afirma. A prova é a própria existência da Internet, cuja raiz é cultural. "A ideia da livre comunicação, que existia nas universidades americanas dos anos 70, é que gerou este tipo de tecnologia. A ideia de que a Internet nasceu como uma tecnologia para resistir a um ataque nuclear é um disparate", afirma o sociólogo. "Para desenvolver a Internet, foi preciso primeiro pensar numa tecnologia de comunicação sem centro. Os franceses fizerem um modelo com a mesma tecnologia, mas vertical, o Minitel francês. Foi varrido."

O conceito de rede, onde não exitem hierarquias mas "nós" horizontais, todos com o mesmo poder, é a essência da Internet. Para Castells, não se trata apenas de um modelo tecnológico. Também as sociedades evoluem para uma organização em rede, a partir do momento em que dispuseram de uma tecnologia de comunicação horizontal, a Internet.

Os Estados Unidos e a Finlândia são exemplos de países que deram o salto para a sociedade em rede. Representam, respectivamente, um modelo liberal e um modelo social-democrata, europeu. Castells considera-os incompatíveis.

Para o sociólogo, o sector público não é um travão, mas um motor, que não dispensa, naturalmente, o sector privado. "A diferença é que, de um lado, há apenas o modelo empresarial e no outro é o Governo que primeiro cria condições para a inovação e garante que os benefícios são redistribuídos por toda a sociedade. Um sistema de segurança social não detém a inovação", explica.

"Toda a Europa tem de integrar o modelo social europeu no modelo empresarial. A forma como a sociedade americana funciona não é transponível para a Europa. Não se pode tocar no Estado social. Podemos mudá-lo e torná-lo menos burocrático, mas só isso. Não se pode trazer Silicon Valley para a Europa. A forma de entrar na sociedade em rede depende de cada país".

Castells dá o exemplo do Chile, que aplica as novas tecnologias em produtos tradicionais. "Não se trata de deixar de produzir têxteis para fazer produtos tecnológicos", explica.

No caso português (ou da Catalunha), a chave passa pela educação.

"Portugal tem um contraste entre um sector pequeno muito moderno, em termos culturais, tecnológicos e de competividade. Mas a maioria não está só na idade industrial, mas mesmo numa sociedade agrária. O mais importante na sociedade informacional é a educação. Temos uma população não educada. É necessário mudar isso para viver numa sociedade em rede", afirma Castells.
No plano económico, "a questão central é como a tecnologia e novas formas de gestão se irão difundir pelas pequenas e médias companhias. Depois, há as universidades, que em Portugal ou Espanha ou na Europa não estão adequadas aos novos tempos e têm programas muito burocráticos. A educação secundária é melhor na Europa do que nos EUA, mas a rigidez institucional da universidade é enorme. Está a melhorar, mas não o suficiente, perante a velocidade da mudança."

Manuel Castells sublinha a importância do empreendedorismo no desenvolvimento da Internet. Mas é um crítico da Microsft, por esta ter "uma política monopolista do software". Para Castells, a empresa de Seattle "é um monopólio que tem uma tecnologia medíocre, que bloqueou a inovação. Foi condenada nos EUA, foi multada pela Comissão Europeia... Gates é um génio comercial, mas só isso".

O sociólogo defende o software de fonte aberta, isto é, programas cujo código-fonte é público e pode ser alterado online. Esta prática, que permite manter a "biodiversidade na Internet", é rejeitada pela Microsoft, que fecha os códigos. Por isso, afirma Castells, "a Microsoft é indirectamente responsável pelos vírus na Internet. Como são fechados, um mesmo vírus replica-se em todos os outros programas iguais."



Fonte: Diário de Notícias


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