quinta-feira, fevereiro 16, 2006

Modelo de Mapa de Férias de Juízes


Estudo do Magistrado Judicial Dr. António José Fialho, que põe a nu as fragilidades de um sistema impraticável.

Ao abrigo do artigo 28.º-A, n.º 4 do Estatuto dos Magistrados Judiciais (com a redacção conferida pela Lei n.º 42/2005, de 29 de Agosto), o Conselho Superior da Magistratura aprovou o modelo de mapa de férias dos magistrados judiciais, definindo um conjunto de premissas para o efeito.

Não cuidando de analisar aqui a forma e a validade constitucional escolhida quanto a este "modelo" e que foi objecto de apreciação por dois vogais daquele órgão de gestão, nem cuidando de analisar a conformidade constitucional e legal do modelo de mapa aprovado, a verdade é que se afigura que as questões práticas que este vai colocar irão colidir com as regras gerais relativas ao gozo das férias dos magistrados judiciais.

Assim, os magistrados judiciais gozam as suas férias, preferencialmente, durante o período das férias judiciais, ou seja, entre 1 a 31 de Agosto e nos períodos de Natal e Páscoa ou, fora destes períodos, por motivo de serviço público, motivo justificado ou outro legalmente justificado (artigos 28.º, n.º 1 do Estatuto dos Magistrados Judiciais e 12.º da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro).

As férias podem ainda ser gozadas no período de 15 a 31 de Julho, no qual, por não se tratar de férias judiciais, não ocorre qualquer suspensão de prazos e actos processuais (artigo 28.º, n.º 2 do Estatuto dos Magistrados Judiciais).

Inexistindo outras regras especiais, o regime legal relativo ao gozo de férias por parte dos magistrados judiciais, resulta do Decreto-Lei n.º 100/99, de 31 de Março (alterado pela Lei n.º 117/99, de 11 de Agosto, Decreto-Lei n.º 70-A/2000, de 5 de Maio, e Decreto-Lei n.º 157/2001, de 11 de Maio) (artigo 32.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais).

Nestes termos, os magistrados judiciais têm direito ao gozo dos seguintes dias de férias (artigo 2.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 100/99):
- vinte e cinco dias úteis até completar 39 anos de idade;
- vinte e seis dias úteis até completar 49 anos de idade;
- vinte e sete dias úteis até completar 59 anos de idade;
- vinte e oito dias úteis a partir dos 59 anos de idade.

Cada juiz tem ainda direito a mais um dia útil de férias por cada dez anos de serviço efectivamente prestado (artigo 2.º, n.º 3 do citado decreto-lei).

As férias podem ser gozadas seguida ou interpoladamente, não podendo ser gozados seguidamente mais de vinte e dois dias úteis nem, no caso de gozo interpolado, uma dos períodos pode ser inferior a metade dos dias de férias a que o titular tenha direito mas, salvo nos casos de conveniência de serviço devidamente fundamentada, não pode ser imposto o gozo interpolado das férias (artigo 5.º, n.os 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 100/99).

Tem sido entendido que esta imposição não pode deixar de constituir excepção, afastando a regra de forma genérica e abstracta nem podendo corresponder ao modo normal de funcionamento do serviço, visando apenas responder a necessidades pontuais e excepcionais e temporalmente delimitadas.

É na aplicação prática do "modelo" aprovado pelo Conselho Superior da Magistratura que se podem verificar dificuldades de conformidade entre as balizas estabelecidas pelo regime especial dos magistrados judiciais e o regime geral da função pública, sobretudo quando se torna necessário introduzir a necessidade de garantir o serviço urgente (turnos judiciais) ou o regime de substituição.

Para facilitar o entendimento destas premissas, torna-se mais compreensível avançar com um exemplo prático da aplicação deste modelo num Círculo Judicial com poucas comarcas e com um número reduzido de magistrados judiciais: - Santiago do Cacém.

Contudo, importa, desde já, referir que o exemplo agora apresentado pode não corresponder à realidade concreta deste círculo judicial , salvo no que respeita ao número de magistrados efectivamente colocados e ao número de dias de turno que têm que assegurar, sendo as demais premissas estabelecidas por defeito e não procurando personalizar a situação.

O Círculo Judicial de Santiago do Cacém é composto pelas comarcas de Alcácer do Sal, Grândola, Santiago do Cacém e Odemira, sendo que apenas a comarca sede do círculo tem dois juízos o que implica que o número total de juízes é de cinco .

Considerando assim o "modelo de mapa", os juízes deste círculo judicial terão que organizar os turnos judiciais antes da feitura do mapa de férias (n.º 7 do modelo).

Assim, tendo o mês de Agosto de 2006 trinta e um dias, os colegas terão que distribuir entre si esses trinta e um dias, o que significa que terão que garantir, cada um, seis dias de turno e um deles com sete dias de turno.

O mapa de turnos poderia ficar assim organizado:

Juiz de Alcácer do Sal - 1 a 6 de Agosto
Juiz de Grândola - 7 a 12 de Agosto
1.º Juiz de Santiago do Cacém - 13 a 19 de Agosto
2.º Juiz de Santiago do Cacém - 20 a 25 de Agosto
Juiz de Odemira - 26 a 31 de Agosto.

Estando assegurado o serviço de turnos, cada um dos magistrados em causa terá agora que marcar o seu período de férias .

Imaginemos agora que nenhum deles pretende, por agora, marcar férias no Natal ou na Páscoa e não pretende gozar as férias interpoladamente, devendo ser assegurado o direito de gozar de seguida vinte e dois dias úteis de férias.

Conjecturando, suponha-se que os juízes de Alcácer do Sal, Grândola e Odemira têm direito a vinte e cinco dias úteis de férias (comarcas de 1.º acesso) enquanto que os juízes de Santiago do Cacém têm direito a vinte e seis dias úteis de férias (comarca de acesso final).

Facilmente se compreende que apenas os juízes que irão assegurar os dois últimos turnos de 20 a 25 e 26 a 31 de Agosto poderão gozar os vinte e dois dias úteis de férias a que tem direito de forma seguida, ou seja, respectivamente, no primeiro caso entre 19 de Julho a 18 de Agosto e, no segundo caso, entre 28 de Julho a 25 de Agosto.

Restam então duas soluções: - ou os restantes juízes aceitam gozar interpoladamente as suas férias ou é-lhes permitido que gozem as mesmas fora do período das férias judiciais ou de 15 a 31 de Julho, "considerando-se haver motivo justificado ou outro legalmente previsto."

Imaginemos que apenas um colega se mantém irredutível na sua intenção de gozar as férias de forma seguida e os outros dois aceitam gozar as suas férias interpoladamente, devendo assim assegurar no mínimo um período seguido de onze dias úteis que até pode ser distribuído, para maior facilidade de raciocínio, antes e depois do turno que cada um deles vai assegurar.

Caso algum juiz decida gozar as suas férias de forma interpolada, nada impede que distribua o número total de dias úteis a que tem direito (25 ou 26 dias) por cada um desses períodos, salvaguardando apenas a regra dos onze dias úteis.

Assim, o juiz de Grândola (que tem que assegurar o turno entre 7 a 12 de Agosto) pode gozar o seu primeiro período de férias entre 20 de Julho a 4 de Agosto e o segundo período de férias entre 14 a 31 de Agosto (13 dias úteis), mesmo correndo o risco deste gozar férias num período em que é o suplente do turno de um outro colega, situação que nem deveria ocorrer.

Importa ainda determinar as férias dos juízes de Alcácer e do 1.º Juízo de Santiago do Cacém mas, nesta altura, deparamos com um problema.

No período entre 26 a 31 de Julho (período que não é de férias judiciais), já temos três dos cinco juízes deste círculo judicial de férias.

Com efeito, acresce a todas estas premissas que, neste período compreendido entre 15 a 31 de Julho, é assim necessário recorrer ao regime legal da substituição de magistrados (artigo 68.º-A da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro).

Assim, os juízes de direito são substituídos, nas suas faltas e impedimentos, sucessivamente:
a) - por outro juiz de direito;
b) - por pessoa idónea, licenciada em Direito, designada pelo Conselho Superior da Magistratura;
c) - nos tribunais com mais de um juízo, o juiz do 1.º juízo é substituído pelo do 2.º, este pelo do 3.º, e assim sucessivamente, por forma que o juiz do último juízo seja substituído pelo do 1.º.

Não sendo razoável que, para assegurar as férias dos magistrados judiciais, o Conselho Superior da Magistratura venha a designar pessoas idóneas, licenciadas em Direito, para substituir os juízes desta circunscrição judicial , parece que as outras regras de substituição é que deverão ser operativas.

Nestes termos, como apenas a situação da comarca de Santiago do Cacém se encontra legalmente assegurada por dispor de dois juízos, deverá ser o Presidente do Tribunal da Relação onde se situa o círculo judicial a definir o modo de substituição dos juízes das demais comarcas que apenas dispõem de um juiz cada uma.
É justamente nesta parte que o regime legal aprovado e o modelo definido podem manifestar dificuldades de aplicação na medida em que não se afigura razoável que um círculo judicial como o de Santiago do Cacém, durante um período que não é de férias judiciais, ou seja, quando não se encontram suspensos quaisquer prazos, fique apenas provido com um número inferior a dois juízes para assegurar o regime de substituição dos demais colegas que se encontram de férias .


No caso que escolhemos para exemplificar o funcionamento do sistema, o juiz do 1.º Juízo de Santiago do Cacém ainda poderia gozar férias entre 17 de Julho (1.º dia útil) a 11 de Agosto (vinte dias) e os restantes após realizar o turno.

Mas, ainda assim, ficaria por resolver o problema do período de 26 a 31 de Julho que ficaria assim com apenas um juiz em todo o círculo judicial e a questão do juiz que não pretendia gozar as suas férias interpoladamente, não obstante se apurar agora que, mesmo que o quisesse fazer, já teria que o fazer fora do período legalmente compreendido para o gozo das férias.

Por outro lado, caso algum desses juízes resolvesse gozar as suas férias no Natal ou na Páscoa, não seria possível ser-lhe aplicado o disposto no artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 100/99, de 31 de Março (o gozo de mais cinco dias úteis de férias por ter optado por gozar as férias entre 1 de Janeiro a 31 de Maio ou de 1 de Outubro a 31 de Dezembro) na medida em o período correspondente não corresponde à totalidade do período normal de férias vencidas exigido por aquela disposição normativa.

Pretendemos aqui demonstrar as dificuldades de aplicação deste modelo numa situação que envolve um número restrito de magistrados judiciais mas agora imaginem estes problemas num outro círculo judicial com um maior número de juízes ou um maior número de comarcas.

Em conclusão, torna-se manifesto que, não obstante o esforço feito pelo grupo de trabalho criado no âmbito do Conselho Superior da Magistratura e as soluções adoptadas, que merecem o nosso respeito e consideração, a elaboração destas normas para a definição de critérios de escolha de férias dos magistrados judiciais, ainda assim, não consegue garantir a observância dos princípios gerais estabelecidos para a função pública, criando assim, de repente e por "artes mágicas", a passagem de uma situação de "privilegiados" para uma situação de "capitis diminutio" relativamente aos juízes que ficam privados em condições de igual tratamento do exercício de um direito constitucional (o direito ao descanso prolongado).

Porventura, dirão alguns que não será esta a questão que mais preocupa o cidadão utente da justiça que aguarda há anos pela resolução do caso que tem pendente num qualquer tribunal do país mas, mesmo para esses que afirmam isso e para o próprio cidadão, não deixam de impor-se as seguintes questões:

1.ª - Quais os ganhos de eficiência e rapidez do sistema judicial que se conseguiram com um regime que impede os juízes de gozarem conveniente as férias a que têm direito ?


2.ª - Quais os ganhos de eficiência e rapidez do sistema judicial que se conseguiram com um regime legal que coloca juízes a substituírem juízes durante as férias de uns e outros, sabendo-se que o serviço daquele que está de férias não será convenientemente assegurado e o daquele que está a trabalhar ficará prejudicado com a acumulação de serviço ?

3.ª - Quais os ganhos de eficiência e rapidez do sistema judicial que se conseguiram com um regime legal que esgotou os recursos dos conselhos superiores na definição de um modelo legal de constitucionalidade duvidosa quando poderiam ter usado melhor o seu tempo para promover melhorias para a justiça ?

4.ª - Quais os ganhos de eficiência e rapidez do sistema judicial que se conseguiram com um regime legal que vai esgotar os recursos e o tempo dos juízes presidentes dos tribunais da relação e dos juízes presidentes dos círculos judiciais ou das comarcas (caso ocorra a delegação de competências) na definição de mapas de férias inconciliáveis e injustos ?

5.ª - A quem interessa que os agentes da justiça tenham que se preocupar com o exercício de um seu direito constitucional que é gravemente afectado quando deveriam estar a resolver os problemas de dezenas de pessoas no âmbito das centenas de processos que eram anteriormente resolvidos - com a prolacção de despachos de maior vulto - durante as férias judiciais ?

6.ª - Quem consegue compreender que se façam alterações a um regime legal que funcionava bem há tantos anos e que acautelava as situações em que os próprios utentes da justiça estão de férias, não os obrigando a comparecer nesses períodos ?

7.ª - Quem assumiu o compromisso de aprovar medidas até à entrada em vigor da Lei n.º 42/2005 (artigo 8.º da mesma lei) e, até à presente data, ainda nada fez, o que pode colocar em dúvida a própria vigência desta ?

8.ª - Como vão os escritórios dos senhores advogados e solicitadores garantir as férias a que têm direito os próprios e os respectivos funcionários e, ao mesmo tempo, permitir a organização daqueles espaços para o novo ano que se inicia (prática seguida há décadas) ?

9.ª - A quem interessa que o sistema legal agora aprovado não traga nada de benéfico para a eficiência e a celeridade na medida em que, das duas uma, ou não irão realizar-se quaisquer diligências ou irão ser constantemente adiadas, por falta dos intervenientes (que poderão estar a gozar as suas férias) ou por impossibilidade na sua realização por parte do magistrado que estará a acumular dois ou mais tribunais ou juízos ?


10.ª - A QUEM INTERESSA QUE A JUSTIÇA NÃO FUNCIONE ?

*
Reservo o ónus das respostas para as pessoas que disseram aos cidadãos portugueses que tinham um estudo de ganho de eficácia e celeridade de dez por cento (a mesma percentagem que as perguntas) caso estas medidas fossem aprovadas mas que nunca tiveram a coragem e a honestidade de o mostrar a esses mesmos portugueses que as elegeram.


Como a evidência mostra que não é possível meter o Rossio na Rua da Betesga, por mim, há muito que encontrei estas respostas na frase de um famoso poeta: - "Há homens que nem sequer se enganam porque não propõem nada de razoável".

Barreiro, 13 de Fevereiro de 2006
(António José Fialho)
Juiz de Direito

Fonte: ASJP

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