sexta-feira, fevereiro 24, 2006
Ser português
António Vitorino
Jurista
O Parlamento aprovou recentemente um conjunto de alterações à lei da nacionalidade que prefiguram uma mudança nos critérios legais de acesso e aquisição da cidadania portuguesa.
Estas alterações não foram muito noticiadas, embora sejam da maior importância para o nosso futuro como comunidade nacional.
O primeiro aspecto a sublinhar é que se tratou de uma alteração da lei largamente consensual. Com efeito, abstiveram-se o CDS/PP e o Bloco de Esquerda, tendo as alterações contado com uma amplíssima maioria de apoio.
Definir quem é e quem pode ser português é um tema fundamental para a definição da identidade de uma nação e de um país. Noutros casos esta é uma discussão particularmente difícil e até traumática, por razões históricas, culturais ou mesmo religiosas.
Felizmente entre nós este foi um debate sereno onde se privilegiou a busca de vias de aproximação em vez de se apostar na confrontação estéril ou meramente ideológica. O que revela que os principais agentes políticos estão conscientes quer da força e consistência da nossa própria identidade nacional quer da necessidade de nos mantermos fiéis a uma linha de orientação baseada nos valores do humanismo, da tolerância e da igualdade de oportunidades.
No essencial, a nova lei da nacionalidade procura definir quem é português de origem e quem pode adquirir por naturalização a nacionalidade portuguesa com base num equilíbrio entre o critério do jus sanguinis (é português quem é filho de um progenitor português) e o critério do jus soli (é português quem nasce em Portugal nas condições previstas na lei).
Este equilíbrio visa responder à dupla natureza da comunidade nacional portuguesa enquanto país marcado historicamente pela emigração e enquanto país cada vez mais escolhido como destino de imigrantes oriundos de várias e diversificadas paragens do mundo.
Na perspectiva da emigração, Portugal continua fiel a uma leitura flexível e generosa do reconhecimento da dupla nacionalidade, prevendo-se agora que são portugueses também os netos de emigrantes que nasçam no estrangeiro ou seja, a terceira geração de emigrantes. Do mesmo modo, é português o filho de estrangeiro que nasça em Portugal e que pelo menos um dos pais tenha aqui nascido.
A motivação essencial desta lei diz respeito à denominada segunda geração de imigrantes, passando a ter nacionalidade portuguesa quem nasce em Portugal e tenha um dos progenitores que resida legalmente cá há pelo menos cinco anos. Tendo em vista responder às situações herdadas do passado, dispõe-se que seja concedida a nacionalidade portuguesa aos menores nascidos em território português desde que estes tenham concluído o 1.º ciclo do ensino básico.
Em termos de aquisição da nacionalidade por naturalização, prevê-se que possa requerer a nacionalidade portuguesa quem resida legalmente em Portugal há mais de seis anos e quem viva em união de facto há mais de três anos com um português, desde que tal união seja devidamente reconhecida por um tribunal.
A aquisição originária ou por naturalização da nacionalidade portuguesa é um importante factor de inclusão e de integração na comunidade portuguesa, não só pela manifestação de vontade pressuposta como pelo facto de a lei reconhecer direitos e obrigações específicos da condição de cidadão nacional. Do mesmo modo representa uma afirmação da natureza plural da comunidade nacional, em termos étnicos, religiosos e de território de origem.
A definição do estatuto jurídico de nacionalidade é, pois, um pressuposto, mas não pode ser entendido como "o fim da linha". O processo de integração das comunidades imigrantes nas sociedades de acolhimento pode beneficiar muito do reconhecimento formal do estatuto de cidadania mas não dispensa, antes exige, a prossecução de políticas activas de integração, designadamente no domínio da língua e da cultura, bem como do respeito por um conjunto de valores fundamentais que constituem o traço de identidade comum dos portugueses e do país que colectivamente constituímos.
Do mesmo modo, o acesso à nacionalidade não pode ser concebido como a única via da integração. Por isso, as políticas de acolhimento e de integração têm também que ter por alvo aqueles imigrantes que, por permanecerem apenas transitoriamente ou por não pretenderem adquirir o estatuto de cidadãos nacionais, aqui se encontram contribuindo para o progresso do nosso país. Também a estes devem ser reconhecidos direitos e deveres que, não sendo exactamente os mesmos dos cidadãos nacionais, respeitem o núcleo essencial da dignidade humana e da cidadania cívica inerentes a um Estado de direito democrático.
Fonte: Diário de Notícias
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