segunda-feira, fevereiro 27, 2006

PGR é uma pessoa empenhada e séria


O presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, em entrevista ao JUSTIÇA & CIDADANIA, garante não ter dúvidas que muitas das críticas dirigidas actualmente à actuação do Procurador-Geral da República, Souto Moura, “têm uma motivação puramente política por trás delas”. Depois de definir a morosidade como “um problema real da nossa Justiça”, Alexandre Baptista Coelho não vê com bons olhos a redução das férias judiciais, já que esta medida, em sua opinião, “só trouxe problemas acrescidos ao funcionamento dos tribunais, como aliás era mais que previsível”. No que diz respeito ao segredo de justiça, o magistrado concorda “que algo tem de mudar no sistema em vigor, talvez limitando-o aos casos em que o segredo pode ter alguma utilidade prática, e certamente conferindo ao juiz de instrução poderes quanto ao seu levantamento, ou não”. “A descredibilização da Justiça aos olhos da opinião pública é muito preocupante, porque a Justiça deve existir para servir a sociedade, e, no contexto do Estado de Direito, é o último garante das liberdades e dos direitos do cidadão”, adverte ainda Alexandre Baptista Coelho.

Os juízes, muitas vezes, são apontados como peças fundamentais para a cada vez maior morosidade da justiça. Aliás, é do conhecimento público que já há casos de sentenças que apenas vão ser ditadas nos anos mais próximos. Isto não ajuda a descridibilizar a justiça e os juízes aos olhos dos cidadãos?

A morosidade é um problema real da nossa Justiça, ainda que muitas vezes seja indevidamente empolado. Há muitos Tribunais que estão em dia. Mas onde isso não sucede, e na generalidade dos casos, a culpa não é dos juízes, que fazem o que podem, e muitas vezes o que não podem, para fazer face a um volume processual excessivo e a uma legislação que não facilita a fluidez e o andamento dos processos. E o certo é que, em termos de morosidade, não estamos pior que muitos dos nossos vizinhos europeus.

A alteração das férias judiciais ajuda a resolver o problema da morosidade da justiça? Ou haverá outras soluções? E a alteração das férias judiciais para um regime de turnos pode ser um modo de evitar a paragem dos tribunais?

Quem conhece minimamente o sistema sabe que a redução das férias judiciais só trouxe problemas acrescidos ao funcionamento dos tribunais, como aliás era mais que previsível. O que se passa neste momento, com a confusão que reina quanto à organização de turnos e à marcação de férias de magistrados e funcionários, demonstra à evidência que a solução imposta – é bom relembrá-lo, contra a opinião unânime dos profissionais do foro, e de toda a oposição parlamentar – foi ditada por razões de mero oportunismo político, e não como tentativa séria para atenuar a questão da morosidade. Este ano, com todas as dificuldades que resultam da difícil exequibilidade de um regime que é mau para todos, os Tribunais vão estar parados mais tempo que no passado recente. Da nossa parte, ASJP, continuamos a afirmar que, a mexer-se nas férias judiciais, que se acabem de vez com elas, até porque ninguém ainda demonstrou, e muito menos o Governo, que evita tocar numa problema que lhe é cada vez mais incómodo, porque razão hão-de ter os Tribunais um sistema de funcionamento diferenciado da generalidade dos demais serviços públicos, que trabalham em pleno durante todo o ano.

Os juízes recentemente levaram a cabo uma denominada «greve de zelo», recusando-se a trabalhar fora dos respectivos horários. Como vê esta forma de luta? Sem ser a greve, há outras formas de pressão a que os juízes podem recorrer?

Não há nenhuma ‘greve de zelo’ até porque os juízes não têm horário de trabalho, nem estão isentos dele. Ao exercerem funções de soberania, os juízes não se inserem na lógica dos ‘horários de trabalho’, tal como sucede,ressalvadas as devidas proporções, com o Presidente da República, os membros do Governo, ou os deputados. O que se passa é que os juízes exercem funções integrados numa estrutura, os Tribunais, que têm horário de funcionamento, onde trabalham outras pessoas que estão subordinadas a esse mesmo horário. E os juízes também são pessoas com direito à sua vida pessoal e familiar, que tantas vezes tem sido prejudicada com o volume excessivo de processos que têm a seu cargo. Por isso, é mais que razoável que o ritmo de trabalho tenha em conta todos esses factores, sem quebra da dedicação à função e do empenhamento profissional.

O Governo quer deslocar os juízes entre tribunais, como forma de responder à sobrecarga de processos nalgumas zonas do País. Acredita que esta é uma forma de resolver os problemas do sector?

Se a ‘deslocalização’ de juízes, de que se tem falado mas que ainda não se sabe bem o que será, significar violação da regra consticional da inamovibilidade, do princípio do juiz natural, e das competências do Conselho Superior da Magistratura quanto a transferências, que estão claramente definidas na lei, é óbvio que estamos contra. Já existem bolsas de juízes, que poderiam ser incrementadas, para casos de acumulações de serviço, ou impedimentos prolongados. Tudo o mais que possa fazer-se pode pôr em causa a independência dos juízes, e certamente não resolverá qualquer problema de fundo.

Um advogado de Matosinhos exortou os 500 mil portugueses lesados com atrasos na Justiça a recorrerem ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e aos tribunais administrativos para pedirem uma indemnização ao Estado por tal situação. Qual o seu comentário?

Portugal está longe de ser, no contexto europeu, o país mais penalizado por atrasos na Justiça. E o certo é que o próprio Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, com todo o respeito que naturalmente me merece, tem atrasos nos seus processos que excedem em muito a média dos atrasos que ocorrem nos tribunais portugueses.

Ainda quanto à morosidade da justiça, muitos apontam o dedo ao Código Penal, que não põe grandes entraves à figura do recurso. Como vê esta questão? Considera urgente a revisão do Código Penal e do Código de Processo Penal, nomeadamente no que diz respeito, entre outros problemas, à prisão preventiva?

A revisão do Código de Processo Penal está na ordem do dia desde há alguns anos. A questão dos recursos é uma entre muitas outras, mas se houver alterações nesse âmbito específico parece-me óbvio que elas não podem redundar directamente em limitação dos direitos da defesa. O que me parece necessário é que se expurguem todas as leis processuais da possibilidade de utilização de quaisquer incidentes com intuitos meramente dilatórios. E quanto à prisão preventiva creio que o sistema em vigor é equilibrado, não necessitando de alterações de monta.

O Governo anunciou recentemente um anteprojecto para melhorar acesso ao apoio judicial por parte dos cidadãos. Considera oportuna tal tipo de legislação?

Penso que é oportuna e urgente. O acesso ao Direito e à Justiça, em condições de igualdade para todos, é uma componente essencial de um pleno estatuto de cidadania. O regime jurídico em vigor é extremamente limitativo, e não garante esse acesso aos economicamente mais carenciados, mais parecendo um sistema dissuasor do recurso aos Tribunais.

O conceito de penas alternativas à prisão ganha cada vez mais adeptos, como o melhor meio de ajudar à resinserção do arguido. Acha que esta mudança de mentalidades por parte dos juízes contribui para evitar a sobrelotação das prisões? E quanto à utilização de pulseiras electrónicas?

Não creio que se possa falar em mudança de mentalidades dos juízes, que sempre estiveram abertos a soluções alternativas à prisão, no quadro legal que tenham ao seu dispor. O que se tem passado é que algumas dessas soluções, que há muito existem na lei, embora com um campo muito limitado de aplicação prática, muitas vezes confrontam-se ainda com extremas dificuldades de concretização, por carência de meios adequados ao nível da reinserção. Por exemplo, a prestação de trabalho a favor da comunidade exige instituições disponíveis onde esse trabalho possa ser executado. Se elas não existem num determinado local, o juiz não pode ignorá-lo e enveredar por uma solução que depois não tem continuidade. Quanto às pulseiras electrónicas, que de momento apenas são um instrumento para controlar a medida de coacção de obrigatoriedade de permanência na habitação, ou a imposição de restrições à movimentação de um arguido, antes do julgamento,podem vir a ter outras virtualidades, no que toca à fase processual posterior a uma condenação. Mas ainda não se sabe bem quais serão as intenções do Governo nesse domínio.

Nos últimos tempos, vários processos mediáticos, nomeadamente o da Casa Pia, puseram o segredo de justiça na berlinda. Qual a sua opinião sobre este assunto? Mas, a polémica não envolve apenas o segredo de justiça, mas as decisões que são tomadas por alguns juízes. Por exemplo, os casos Fátima Felgueiras, ou aqueles outros relacionados com o processo «Apito Dourado» ou Avelino Ferreira Torres. Porquê a diferença de critérios?

Não é legítimo considerar casos concretos, por mais mediáticos que sejam, para generalizar conclusões indevidas. Mal andaria o Estado de Direito se todos pensássemos da mesma maneira, e um recurso de uma decisão judicial estivesse à partida condenado ao insucesso. Quanto ao segredo de justiça, concordo que algo tem de mudar no sistema em vigor, talvez limitando-o aos casos em que o segredo pode ter alguma utilidade prática, e certamente conferindo ao juiz de instrução poderes quanto ao seu levantamento, ou não.

Por outro lado, outros casos mediáticos relacionados com menores também têm posto os juízes no alvo das críticas, por causa de não decidirem em tempo útil o afastamento das crianças dos meios perigosos em que se encontram. Alguns casos tiveram mesmo desfechos mortais? O que pensa sobre este assunto?

Antes de ser uma questão judicial, os casos de crianças em perigo são um problema social. É aí que os riscos têm de ser atalhados. O que a Justiça possa vir a fazer não invalida que, antes, toda a sociedade deva mobilizar-se para minimizar situações dramáticas, que existem e que a todos deviam preocupar.

Em muitos casos, não têm faltado críticas à excessiva juventude de alguns juízes. Será que estes juízes têm a preparação e maturidade suficientes para julgarem casos melindrosos da mais variada índole, em particular aqueles que envolvem menores vítimas de maus tratos? Ou seria necessária uma formação mais específica e maior experiência de vida?

A maturidade de alguém não se mede apenas em termos de idade cronológica. A preparação de um jovem licenciado para exercer funções como juiz não é directamente proporcional à sua maior ou menor idade. Uma pessoa com 40 ou 50 anos não tem necessariamente mais maturidade que uma de 25 ou 30. A nível da formação de magistrados há formas de avaliar essa capacidade, que é naturalmente importante, a par de uma sólida formação técnico-jurídica. E um juiz, em qualquer comarca ou em qualquer jurisdição, terá sempre que decidir situações melindrosas, porque são sempre pessoas que estão envolvidas.

Nos últimos tempos, o sector da justiça tem vivido momentos conturbados de greves e outras formas de luta e cada vez mais se ouve falar na urgência de medidas mais reformistas que pacifiquem o sector. Concorda com esta visão?

Há valores que para nós são inegociáveis, já que neles assenta a essência do nosso Estado de Direito e da nossa Democria. A regra da separação de poderes, a independência do poder judicial, a própria autonomia do Ministério Público, não podem ser postos em causa. As soluções de que a Justiça necessita passam sim pelo maior investimento do poder político num sector que só há poucos anos passou a merecer atenção, porque passou a ser tema de primeira página da comunicação social. Mas essas soluções devem passar pela colaboração dos profissionais do foro, que são quem conhece por dentro os problemas, e pode dar uma ajuda decisiva. Nós juízes continuamos disponíveis para dar esse contributo.

O ónus da prova recentemente veio à baila através do Presidente da República? Concorda com este conceito?

Trata-se de um conceito de cariz processual, e que se traduz na incumbência que impende sobre a uma das partes em conflito de provar em juízo, pelos meios legalmente admissíveis, um determinado facto, para daí obter um certo resultado. No processo penal, o ónus cabe a quem acusa; no civil, como regra, a quem alega um facto que lhe é favorável. Penso que não há particular polémica quanto ao conceito, talvez sim quanto aos meios de prova utilizáveis, e que devem estar claramente balizados na lei.

O pacto para a Justiça, proposto pelo PSD e que, depois de recusado pelo Governo, está de novo em discussão por iniciativa do ministro Alberto Costa, com a aparente concordância de todos os partidos, pode constituir-se como um espaço de debate das questões que importam para a melhoria substancial da Justiça ou não passa da resposta do Governo, com o apoio dos restantes partidos, às posições dos juízes e de outros intervenientes na aplicação da Justiça, com o objectivo de controlar o poder judicial?

Qualquer pacto será sempre útil se for instrumento capaz de dar solução aos problemas concretos com que a Justiça se confronta. Da nossa parte nada temos a objectar, e para ele contribuiremos, desde que estejam salvaguardados os princípios essenciais que referi. Mas se um pacto significar a subversão das regras constiucionais existentes, a politização da Justiça, a alteração das regras de acesso aos Tribunais superiores, e a quebra do equilíbrio actualmente existente quanto ao auto-governo da magistartura, ao nível do CSM, terá naturalmente a nossa firme oposição.

A crispação que existe, e que é real, entre o Poder Político e o Poder Judicial, tem por base uma divergência de fundo quanto às linhas mestras do que deve ser a política de Justiça, ou não passa de uma divergência por motivos corporativos, ou melhor dizendo, que tem a ver com o regime de férias, os vencimentos, e outros direitos, nomeadamente o direito à assistência médica (Serviços Sociais do Ministério da Justiça)?

Se há questões que podem parecer meramente corporativas, o certo é que o que parece é a elas estar subjacente uma motivação muito mais profunda, que se reconduz a uma aparente hostilização do poder judicial, e a uma discriminação, pela negativa, da magistratura. Porque hão-de os juízes ter um regime de férias muito mais gravoso que os restantes sectores da Administração Pública? Porque lhes são retirados os SSMJ, sem explicação económica convincente, sendo mantidos para outros profissionais integrados no Ministério da Justiça, e mantida também a subvenção pública ao regime de segurança social de advogados e solicitadores? Porque não se cumprem compromissos escritos assumidos entre o Governo e a ASJP? Perante este panorama, é óbvio que os juízes não podem ficar indiferentes, e não podem deixar de pensar se serão apenas motivações da conjuntura orçamental que determinaram a actual política. Da nossa parte não vemos medidas de fundo que resolvam os estrangulemantos dos sistema, e o caso da acção executiva é paradigmático. E é isso que mais nos preocupa. A descredibilização da Justiça aos olhos da opinião pública é muito preocupante, porque a Justiça deve existir para servir a sociedade, e, no contexto do Estado de Direito, é o último garante das liberdades e dos direitos do cidadão.

Perante as críticas, dos mais diversos sectores, à actuação do procurador-geral da República, considera que Souto Moura possui condições para cumprir o mandato até ao fim? E possui condições para que o Governo o proponha para um novo mandato? Caso não seja renovada a confiança em Souto Moura, o próximo procurador-geral da República deverá ser um magistrado do Ministério Público ou dever-se-á encontrar uma solução alternativa?

É sempre mais fácil criticar que fazer, principalmente numa conjuntura tão difícil como aquela que o Dr. Souto Moura tem enfrentado. Todos sabemos que algumas das críticas que se têm ouvido têm uma motivação puramente política por trás delas. Não tenho dúvidas que o PGR é uma pessoa empenhada e séria. Quanto à sua substituição, quando vier a ocorrer, e qualquer que venha a ser a pessoa a assumir o cargo, o fundamental será garantir que o Ministério Público se paute sempre por critérios de legalidade e de objectividade, sem qualquer interferência de conjunturas políticas de ocasião.

Finalmente, quais as duas ou três questões que gostaria de colocar ao actual ministro da Justiça?

Aceito o desafio, e escolho três áreas diferentes da nossa Justiça:
1.Quais as medidas, ao nível do Código de Processo Civil, que o Governo pensa aprovar para resolver a paralisação da acção executiva?
2.Quando serão dadas condições mínimas de trabalho aos juízes de instrução criminal?
3.Que balanço actual faz da vigência da lei sobre férias judiciais, face à grande confusão que a mesma causou na organização de turnos e na marcação de férias de magistrados e de oficiais de justiça ?

Fonte: O Primeiro de Janeiro

Sem comentários: