quinta-feira, novembro 17, 2005

QUEM “GOZA” AS “FÉRIAS” DENOMINADAS DE “JUDICIAIS”? - por António Raposo Subtil (Presidente CDLOA)

Para abreviar considerações pouco subtis, importa lembrar que, por regra, a faculdade de “gozar” pertence aos seres vivos e que “férias” significa “uma suspensa ou abrandamento de uma actividade realizada pelo homem”.

Ou seja, as instituições, as organizações e os serviços não têm férias, salvo se, e na medida em que, os seus associados, colaboradores, funcionários ou utentes “gozarem” o período de suspensão ou abrandamento da actividade.

O Ministro da Justiça prometeu que: “a redução das férias judiciais entrará em vigor já a partir do próximo ano e destina-se a retirar o máximo rendimento dos recursos humanos e materiais, a fim de aumentar a produtividade e qualidade do serviço prestado pelos tribunais”.

Como já afirmamos no passado recente, o falso problema da redução das férias judiciais mais não é que o reconhecimento pelo Governo da sua incapacidade de controlar e organizar o funcionamento interno dos Tribunais, nomeadamente ao nível das ausências não justificadas, mapas de férias e turnos.

Se não vejamos:
As férias são um direito de natureza laboral, com os limites fixados no estatuto pessoal dos designados “operadores judiciários”.Não é admissível a manipulação demagógica que vise relacionar indiscriminadamente o “gozo efectivo” do direito a férias com o horário de funcionamento dos tribunais e os critérios de contagem (suspensão) dos prazos processuais, relativamente aos quais os exclusivos interessados na sua manutenção são os Mandatários Judiciais.

O Ministro da Justiça afirmou que: “... 97% dos processos judiciais (os outros 3% são processos urgentes!) ficam parados durante dois meses e meio por ano, devido a férias judiciais, e que a redução para 1 mês do período das férias de Verão deverá aumentar de forma relevante (10%) o número de processos resolvidos”.

É mentira e como facto notório não carece de ser provado!

Todos, mas mesmo todos, afirmam que nem sequer conseguem gozar os 22 dias úteis de férias, que os tribunais não estão encerrados e que, por conseguinte, os Senhores Magistrados e Funcionários não vão “a banhos” durante os 2 meses das férias judiciais de Verão.Então, a ser assim (e não existem razões para duvidar, nem o Governo insinuou ou alegou algo em contrário), para que serve a redução do período de suspensão/abrandamento da actividade dos tribunais durante o Verão (actualmente de 15/07 a 15/09)?

Como se poderá “retirar o máximo rendimento dos recursos humanos e materiais” existentes se, com ou sem redução das denominadas férias judiciais, serão sempre os mesmos e estarão disponíveis da mesma forma e intensidade.

Em face da proposta de lei agora divulgada pelo Governo, a intensidade do intervenientes até será mais reduzida, pois os Magistrados ficam com direito a mais 6 dias de dispensa por ano, independentemente do fundamento invocado!

Poder-se-á alegar que os Advogados ficarão, assim, obrigados a entregar as suas peças judiciais mais cedo, dado que o período de suspensão dos prazos, por referência às férias judiciais, será reduzido a um mês.

MAS O QUE ADIANTA SE AS SECRETARIAS ESTÃO “ATULHADAS” E AS PENDÊNCIAS SÃO AOS MILHARES!

Mais se poderá alegar que, no futuro e por força da redução do período de suspensão da actividade judicial, os Senhores Magistrados poderão agendar diligências para a última quinzena de Julho e para a primeira de Setembro.

MAS O QUE ADIANTA SE AS AGENDAS ESTÃO “LOTADAS” E AS PENDÊNCIAS SÃO AOS MILHARES!

Como se explica a confusão entre realidades tão diferentes, como é o caso do direito a férias das pessoas e a suspensão (abrandamento) do funcionamento dos tribunais no período do Verão, sendo certo que, por imposição legal, “ nos tribunais organizam-se turnos para assegurar o serviço urgente durante as férias judiciais” (artº 73º da LOFTJ).

O que são os “turnos de férias judiciais”?

Os artigos 31º e 39º do Regulamento da LOFTJ prevêem que: “para assegurar o serviço urgente durante as férias judiciais organizam-se turnos em cada círculo judicial e os mapas de férias distribuem por turnos de férias de verão o pessoal das secretarias, tendo em conta o estado dos serviços; se não for possível organizar turnos autónomos, a distribuição é feita pelo secretário de justiça por forma a assegurar também o serviço do Ministério Público”.

Parece que os turnos são os períodos em que os Magistrados não podem gozar férias, não estando prevista a existência de mapas de férias, salvo para o pessoal das secretarias (funcionários).

Sendo ainda relevante a previsão do n.º 1 do artigo 28º do Estatuto dos Magistrados Judiciais (que tem paralelo nos Estatutos do Ministério Público e dos Funcionários Judiciais), quando consagra: “ Os magistrados gozam as suas férias durante o período de férias judiciais, sem prejuízo dos turnos a que se encontrem sujeitos, bem como do serviço que haja de ter lugar em férias nos termos da lei.”

Mais clarificadora é a redacção do n.º 5 do citado artigo, a saber:-“ Os magistrados em serviço nas regiões autónomas têm direito ao gozo de férias judiciais de Verão no continente acompanhados do agregado familiar, ficando as despesas de deslocação a cargo do estado.”

È isso mesmo!

As férias pessoais (direito a suspender ou a abrandar a prestação de trabalho) dos denominados operadores judiciários coincidem com as tais férias judiciais, sem prejuízo dos turnos a que estejam obrigados, na medida em que o artigo 9º do mesmo Estatuto estabelece: “os magistrados judiciais podem ausentar-se da circunscrição judicial no gozo de férias, nas férias judiciais e em sábados, domingos e feriados.”

Nem sempre existiram estas confusões, nem os procedimentos foram tão sinuosos e obscuros.

A título de curiosidade, a Novíssima Reforma Judiciária de 1841 estabelecia nos seus artigos 851º e 852º, que se transcrevem integralmente: “São feriados todos os dias santificados pela Igreja e os da grande Gala. São igualmente feriados os dias que decorrem desde a Véspera de Natal até dia de Reis, os trez dias do Carnaval, e os decorrem desde o Domingo de Ramos até Domingo de Pascoela. O mez de Setembro é todo feriado.”

O Decreto n.º 13809, de 22/06/1927 (1º Estatuto Judiciário) determinava que “são férias, nos tribunais, os dias que decorrem desde 23 de Dezembro a 2 de Janeiro inclusive; a segunda e terça-feira de Carnaval; desde domingo de Ramos a segunda-feira de Páscoa inclusive, e desde 1 de Agosto a 30 de Setembro inclusive...”, num total de 83 dias.

O Estatuto Judiciário de 1944, manteve o mesmo período de férias judiciais, mas introduziu inovações, nomeadamente:• Durante as férias judiciais, o Juiz distribuía o pessoal da secretaria por dois turnos, com um mês de duração cada um, podendo, nas secretarias com mais de duas secções, distribuir o pessoal por mais de dois turnos, mas sempre sem prejuízo do regular funcionamento tanto da secção central como da secção de processos.• Os Magistrados Judiciais e do Ministério Publico, durante o período de férias judiciais, podiam ausentar-se dos seus cargos, mediante prévia autorização do seus imediatos superiores hierárquicos, indicando a data da saída e o lugar para onde se deslocariam, com a obrigação de assumir funções logo para que tal fosse ordenado.

No Estatuto Judiciário de 1962, as férias de Verão continuaram a ter lugar nos meses de Agosto e Setembro, e ainda se prescrevia que: “Os juízes não têm direito a licença graciosa, podendo, contudo, ausentar-se do serviço durante as férias judiciais, mediante autorização do seu superior hierárquico.”

A Lei n.º 38/87, de 27 de Dezembro (Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais), veio estipular um novo período de férias judiciais, que passaram a decorrer de 22 de Dezembro a 3 de Janeiro, do domingo de Ramos à segunda-feira de Páscoa e de 16 de Julho a 14 de Setembro.

Como se pode verificar pelo conteúdo das várias alterações legislativas, o período das férias judiciais, que corresponde a um abrandamento da actividade dos tribunais e a uma suspensão “parcial” (salvo os processos urgentes) dos prazos processuais, tem diversos fundamentos, sendo de realçar:• o reconhecimento e respeito pelo período de férias da generalidade dos cidadãos, que se ausentam das suas residências;• o modo de organização interna dos tribunais e de actuação dos seus intervenientes;• a natureza da prestação dos serviços forenses, realizada na base de estruturas administrativas reduzidas e na prática da advocacia individual.

Qual o sentido da proposta de Lei divulgada pelo Governo, que pretende reduzir as férias judiciais de Verão a um mês (Agosto), sem que os Magistrados e Funcionários deixem de poder continuar a “agendar férias” para o mês de Julho?

Desde logo, em face da redacção do artigo 9º da mencionada proposta, os magistrados só podem ausentar-se da circunscrição judicial “no período autorizado de férias e, quando em exercício de funções, em virtude de licença, dispensa, e sábados, domingos e feriados”.

A menção às ausências dos Magistrados durante as férias judicias foi, expressamente, suprimida; o que nos parece significar algo de relevante!

O artigo 28º-A, de modo igualmente relevante, estabelece que: “Em cada tribunal é elaborado mapa de férias anual dos magistrados, cabendo a sua organização ao respectivo Juiz Presidente. O mapa é remetido ao CSM, acompanhado de parecer do Juiz Presidente, designadamente sobre a harmonização com os mapas de férias elaborados para o Ministério Público e para os funcionários”Em suma, o Governo para alcançar estes inconfessados objectivos (controlo do gozo efectivo do período de férias por magistrados e funcionários, previsão da existência de mapas de férias para todos e supressão da faculdade de se ausentarem do tribunal durante as férias judiciais), não precisava de ir tão longe.

Na verdade, poderia optar por uma solução mais equilibrada, que não acarrete qualquer alteração ao período de suspensão da contagem dos prazos processuais.Para esse efeito, bastaria consagrar na Lei que “os magistrados e funcionários gozam férias preferencialmente no mês de Agosto”, sem que tal implicasse uma verdadeira alteração do actual período de férias judicias de Verão e, consequentemente, do período da suspensão dos prazos processuais.

Como defendemos na V Convenção das Delegações, os Advogados não podem aceitar qualquer alteração dos critérios de contagem dos prazos processuais, sob pena de grave lesão dos interesses e direitos dos Colegas que exercem a advocacia em prática individual, suportada numa estrutura administrativa reduzida.

Os funcionários dos escritórios de advogados também têm direito a férias e nem sempre é viável fazer “turnos” ou elaborar mapas de férias.

Para a hipótese da medida política da redução das férias judiciais não ser abandonada, o que se exige, deverá ficar expresso na Lei que: “constitui justo impedimento o não cumprimento de um prazo processual durante o período de férias do Advogado ou de encerramento do seu escritório, desde que ocorra entre 15 de Julho e 15 de Setembro”.

Quanto à marcação de diligências judiciais pelo Tribunal, no período de 15 de Julho e 15 de Setembro, nomeadamente para os efeitos do artigo 155º do CPC, impõe-se a necessária aceitação expressa, por parte do Advogado, da data proposta, após ter sido notificado para o efeito.E a assumir-se esta ou semelhante hipótese, nada impedirá que o Advogado opte por proceder à entrega da peça processual antes de terminar a suspensão do prazo ou por aceitar o agendamento de uma diligência durante os meses de Julho e/ou Setembro.

Tais opções não poderão, contudo, constituir uma “exigência legal” imposta aos Advogados, assim como aos seus colaboradores, condicionando o direito de organizar o seu escritório e de gozar férias no período de Verão.

Como um direito que não querem certamente abdicar, os Advogados também devem continuar a “gozar férias próprias” no período das ditas férias judicias!

A. Raposo Subtil
Presidente do Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados

Consulte a deliberação do CDL relativa às Férias Judiciais

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