quarta-feira, novembro 23, 2005

Discurso de Tomada de Posse do Presidente da Relação de Évora - Dr.Manuel Cipriano Nabais

Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
Senhor Procurador-Geral da República
Reverendíssimo Representante de Sua Excelência Reverendíssima o Senhor Arcebispo de Évora
Senhor Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura
Senhora Governadora Civil do Distrito de Évora
Senhor Presidente da Câmara Municipal de Évora
Senhores ex-Presidentes do Tribunal da Relação de Évora e Senhores Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça
Senhor Presidente do Conselho Distrital de Évora da Ordem dos Advogados
Senhores Presidentes dos Tribunais da Relação de Lisboa, Porto, Coimbra e Guimarães
Senhor Procurador-Geral Distrital
Magnífico Reitor da Universidade de Évora
Senhora Directora-Geral da Administração da Justiça
Senhor Presidente da Associação Sindical dos Juízes PortuguesesSenhores Juízes DesembargadoresSenhor ex-Procurador-Geral Distrital, Dr. Daniel Viegas Sanches.
Excelentíssimas Autoridades Civis e Militares
Senhores Procuradores-Gerais Adjuntos
Senhores Juízes de Direito
Senhores Funcionários Judiciais
Minhas Senhoras e meus Senhores

As minhas primeiras palavras de circunstância, pelo acto reclamadas, não poderiam deixar de ser de saudação e gratidão a todos os que quiseram dar-me o grato prazer da sua presença neste acto.
Seja-se permitida uma especial saudação e agradecimento:
Ao Ex.º Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que, suportando os inerentes incómodos e com prejuízo da sua já muito sobrecarregada agenda quis manter a tradição relativamente recente de se deslocar ao Tribunal da Relação de Évora para conferir posse;
Ao Ex.º Procurador-Geral da República, na pessoa de quem saúdo a Magistratura do Ministério Público, a qual, embora institucional e funcionalmente independente da Magistratura Judicial desenvolve actividades processuais que confluem na consecução de um fim substancialmente idêntico, qual seja, em última análise, o de administrar e realizar a Justiça, mormente a Justiça Penal, inalienável dever que ao Estado incumbe cumprir, estando, pois, neste aspecto, ambas as magistraturas do mesmo lado da barricada, o que convida a ponderar se as divergências que nos separam não deverão ceder perante as razões que nos aproximam; a Vª. Ex.ª, Senhor Procurador-Geral da República, afirmo a minha incondicional disponibilidade e manifesto o meu desejo sincero de aprofundamento do excelente e são relacionamento entre Magistrados Judiciais e do MP, que tem sido apanágio deste tribunal.
Uma palavra de especial saudação também para o Senhor Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura que, com a sua honrosa presença, quis, decerto, sublinhar a importância de que se reveste a figura do Presidente do Tribunal da Relação, na nossa organização judiciária;
Uma especial saudação ainda aos Ex.mos Convidados que quiseram conceder-me o privilégio da sua presença que, igualmente por honrosa, empresta solenidade a este acto, sem esquecer o Magnífico Reitor da Universidade de Évora, Insigne Prof. Doutor Manuel Ferreira Patrício, de extraordinário saber, na pessoa de quem saúdo essa notável corporação científica, a segunda mais antiga universidade de Portugal, que, sob a divisa Ille vos docebit omnia, produziu mestres e discípulos que se celebrizaram na Cultura Humanística Universal, como Luís de Molina, Francisco Suarez, Manuel Alvarez, D. Afonso Mendes - Patriarca da Etiópia - e o arcebispo de Braga, D. José, filho de D. Pedro II, e em cujas instalações, então Liceu Nacional de Évora, fiz parte do antigo 7º ano, em 1964.
Aos meus Ex.mos Colegas asseguro fazer tudo o que está ao meu alcance para não desmerecer a confiança em mim depositada.
Uma palavra de apreço e consideração aos Senhores Juízes da 1ª Instância pelo trabalho que, dia a dia, desenvolvem, em prol da justiça, dando o melhor de si ao serviço, reafirmando-lhes que muito me honra terem-se associado a este acto.
Aos Senhores Funcionários, uma vez mais, apelo à sua preciosa colaboração e esforço, quotidianamente demonstrados e ofereço a minha incondicional disponibilidade.

Aos Ilustres Convidados, em especial, devo ainda um pedido de desculpa que é, simultaneamente, um apelo à sua generosa compreensão, pela manifesta falta de condições das instalações do Tribunal para os receber condignamente, como seria meu desejo e de todos os que, Magistrados e Funcionários, trabalham neste tribunal e o exige a dignidade dos cargos que exercem.

No acto de posse do meu primeiro mandato como vice-presidente do Tribunal da Relação de Évora, que teve lugar em 17NOV98, referindo-me às condições de trabalho do edifício em que decorre este acto, dizia eu que não escandalizava que o Vice-Presidente da Relação não dispusesse de um gabinete; que não dignificavam a Justiça nem, também por isso, prestigiavam o Ministério da Justiça o funcionamento de um tribunal (superior, in casu), num edifício que, há muito, "rebentara pelas costuras", bem como as circunstâncias de o Senhor Procurador-Geral Distrital não dispor de um gabinete condigno e quatro Magistrados do M.P. compartilharem o mesmo gabinete, com os consabidos inconvenientes daí advenientes (que só por ociosidade se salientariam) e que, finalmente, era atentatório da dignidade dos juízes, ofendia a Justiça e denegria a imagem de um Povo que, na sua Lei Fundamental, acolhe os Tribunais como Órgãos de Soberania, a circunstância de juízes Desembargadores - concretamente os que integram a Secção Social - serem obrigados, pela falta de espaço mais adequado, a discutir projectos de acórdãos num corredor, inevitável e continuamente interrompidos por outros magistrados e funcionários.

Tal como então, embora por razões distintas, interroguei-me sobre a oportunidade de uma referência, hic et nunc, à manifesta exiguidade do espaço e precariedade das condições de trabalho do edifício em que decorre este acto, problema que estará na primeira linha das minhas preocupações, e que, diga-se em abono da verdade, preocupou igualmente os meus ilustres antecessores.

Tudo ponderado, hoje, como então, após alguma hesitação, concluí que a circunstância não desaprova e a premência da necessidade de um edifício mais espaçoso e com melhores condições de trabalho aconselha mesmo que, numa síntese apertada, retrate a situação actual do edifício onde funciona o Tribunal da Relação de Évora.

Decorridos, faz precisamente amanhã, sete anos sobre a data do início do meu primeiro mandato como Vice-Presidente desta Relação, as condições não só não melhoraram como até, em certos aspectos, sofreram algum agravamento.

Com efeito, o número de Juízes subiu de 34 para 43; o gabinete do Ex.º Procurador-Geral Distrital mantém-se inalterado; o Vice-Presidente continua a não dispor de gabinete; no gabinete que era compartilhado por quatro Magistrados do MP trabalham actualmente oito; os Senhores Juízes Desembagadores que então discutiam os projectos de acórdãos num corredor, sempre que as três secções que integram este Tribunal reuniam em sessão conjunta, passaram a trabalhar no gabinete do Senhor Secretário de Tribunal Superior, primeiro, e, actualmente, trabalham na biblioteca onde também trabalha um funcionário ou, sempre que há sessão conjunta das três secções, numa pequena sala que é também sala dos motoristas do Tribunal, sala de Advogados e acesso a uma casa de banho; finalmente, o número de processos, nesse ano, ou seja, em 1998, entrados no Tribunal foi de 2197; em 2004, esse número aumentou para 3218.

Também as condições de segurança do edifício eram e continuam a ser muito preocupantes, sobretudo ao nível do arquivo principal que, instalado no sótão do edifício, forrado a corticite, sujeito às altas temperaturas do verão, reúne óptimas condições para ser pasto de chamas.

À data em que foi instalado o Tribunal da Relação de Évora, 1 de Outubro de 1973, o respectivo quadro de pessoal era de 1 Presidente (então juiz Conselheiro), 1 Procurador-Geral Distrital, seis Juízes Desembargadores e 8 funcionários. O número de processos entrados em 1974 foi de 331.

Presentemente, no mesmo edifício, trabalham 1 Presidente, 1 Procurador-Geral Distrital, 42 Juízes, 8 Procuradores-Gerais-Adjuntos e 39 funcionários; em 2004 entraram, como referi, 3218 processos. Ou seja, no mesmo edifício onde há trinta e dois anos trabalhavam 16 pessoas, trabalham hoje 91 pessoas e o número de processos passou de 331 para cerca de 3218 (número respeitante, como se referiu, ao último ano). Vale isto por dizer que, de então para cá, o número de Juízes Desembargadores, sextuplicou; o número de Procuradores-Gerais-Adjuntos octuplicou; o número de funcionários quase quintuplicou e, finalmente, o número de processos praticamente decuplicou.

O espaço físico de que cada Juiz, Procurador-Geral-Adjunto e funcionário dispõem para trabalhar é de 4,82 m2, em média. A esta área há que deduzir o espaço ocupado pelo mobiliário, nomeadamente secretárias, armários e estantes.

Os soldados dispõem de um armário individual na caserna para guardarem o seu equipamento individual e os seus objectos de uso pessoal; os Juízes Desembargadores desta Relação não dispõem de um armário individual para guardarem a beca, traje profissional dos magistrados, mas apenas de dois armários colectivos, um deles sob o vão de umas escadas, e somente alguns deles dispõem de uma prateleira para guardar processos.

A sala de audiências, onde nos encontramos, está instalada no espaço que foi cavalariça de uma casa de habitação.

Para terminar, por elucidativo, não resisto à tentação de ler a parte do relatório elaborado em Maio de 2005, reportado a Maio de 2004, pelo Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça, respeitante às instalações do Tribunal da Relação de Évora:

"A Relação de Évora não tem qualquer sala de trabalho para juízes desembargadores, existindo apenas um posto de trabalho individual pertencente ao Presidente do tribunal. Na área afecta ao MP existem 2 salas (uma das quais é o do Procurador-Geral Distrital) com um total de 9 postos de trabalho. Existem ainda 2 salas de reuniões/sessões; 1 sala de audiências; 1 biblioteca e 2 salas de arquivo. Neste tribunal também não há sala para advogados.O TRE está instalado numa antiga casa senhorial com flagrantes carências de espaço e funcionalidade. As actuais instalações são insuficientes e altamente dispendiosas pois necessitam de frequentes intervenções. A título de exemplo, apenas o Presidente, o PGD e a secretária têm gabinetes; não há gabinetes de trabalho nem para o vice-presidente nem para os juízes desembargadores; os 8 procuradores do MP estão instalados numa mesma sala de dimensões reduzidas; em dias de sessões é necessário ocupar o gabinete da STS e a biblioteca; por último; parte da secção criminal encontra-se numa antiga casa de banho."

Senhores Presidente da Câmara Municipal de Évora
Senhora Governadora Civil do Distrito de Évora
Senhor Presidente do Conselho Distrital de Évora da Ordem dos Advogados

O quadro que, a traços largos, acabo de desenhar das condições de trabalho do edifício onde funciona o Tribunal da Relação de Évora não prestigia a Justiça nem é abonatório dos pergaminhos da Mui Nobre e Sempre Leal Cidade de Évora, a primeira em Portugal a ser, merecidamente, considerada Património Mundial pela UNESCO.
É minha convicção, publicamente afirmada, que o problema das instalações do Tribunal tem de ser resolvido "a partir de Évora" (e não a partir de Lisboa), isto é, a iniciativa e a condução do processo têm de partir do Presidente da Relação de Évora e - sublinhe-se - contar com o imprescindível apoio das autoridades administrativas locais, dos Deputados eleitos pelo Círculo de Évora e do Conselhos Distritais de Évora e de Faro da Ordem dos Advogados.
Ao longo de quase vinte e quatro anos de ininterrupto exercício da judicatura em Évora encontrei sempre a mais franca receptividade e o melhor acolhimento das autoridades administrativas de Évora aos pedidos de apoio e colaboração em eventos relacionados com a vida judicial realizados nesta cidade.
No que concerne ao problema das instalações judiciárias apraz-me sobremaneira registar a disponibilidade e o apoio, por escrito e pessoalmente, manifestados pelo Conselho Distrital de Évora da Ordem dos Advogados e o interesse da Câmara Municipal de Évora documentado, v.g., no Protocolo para a Construção do Palácio de Justiça de Évora, celebrado em 6MAR02, com o Ministério da Justiça, em cujo acto de assinatura tive a honra de estar presente, bem como me apraz registar a interpelação informal que, sobre o assunto, me fez a Senhora Governadora Civil do Distrito de Évora, apesar de recentemente investida no cargo, o que demonstra a atenção e o interesse que o problema lhe merece.
Estou seguro que posso contar com o imprescindível apoio de V.ªs Ex.ªs.

Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
Senhor Procurador-Geral da República
Autoridades Religiosas, Civis e Militares,
Minhas Senhoras e meus Senhores

Hoje, quando um juiz fala ou quando alguém fala dos juízes, a conversa, a alocução ou o discurso vão, inevitavelmente, desembocar na tão propalada crise da justiça e no estatuto jurídico-constitucional e sócio-profissional dos Juízes.
Não poderia, pois, esquivar-me a tecer algumas considerações sobre tal temática.
Vai longe, não muito longe, o tempo em que o juiz era visto como o direito tornado homem, na expressão de Piero Calamandrei.
Paulatinamente, nas últimas décadas foram sendo desferidos ataques, velados uns, explícitos outros, contra os magistrados, particularmente contra os juízes, culminando recentemente na ideia generalizada de que constituem uma casta privilegiada.
Foi este o reconhecimento que mereceram milhares de horas de trabalho extraordinárias não remuneradas, o sacrifício dos tempos de lazer, do convívio com a família, da maior parte do período de férias, de fins-de-semana, e até da própria saúde em prol do serviço. Daí o desapontamento e a mágoa, dos juízes.

Nada acontece por acaso.Apelando à força sugestiva da linguagem figurada, dir-se-á que os ataques que têm sido dirigidos aos pretensos "privilégios" dos juízes mais não são que uma onda cuja massa de água é agitada à profundidade dum modo bem diferente. O objectivo último, não confessado, é a deslegitimação e funcionalização dos juízes, principais actores no palco da tragédia.

Os políticos, em geral, não gostam de ser julgados pelos juízes. Por isso se tenta reescrever o pensamento de Montesquieu.

A legitimidade dos juízes dizerem o direito, brevitas causa, colhe o seu étimo fundante na normatividade constitucional da Lei Fundamental e na composição do órgão de gestão e disciplina dos juízes no qual têm assento representantes dos órgãos de soberania eleitos por sufrágio directo, secreto e periódico.

Os juízes têm privilégios que não os privilegiam e direitos de que não são titulares.Como exemplo de privilégios dos juízes que os não privilegiam, podem apontar-se as tão faladas férias judiciais, perversamente apresentadas ao povo como férias dos juízes. E não há volta a dar: está fortemente enraizada a ideia de que os juízes têm (tinham) dois meses de férias de verão. A primeira mentira é que fica. O período que decorre entre duas sessões legislativas da Assembleia da República, ou seja, o período que decorre entre 15 de Junho e 15 de Setembro não são férias dos deputados, mas as férias judiciais não são férias judiciais: são um "privilégio" dos Juízes.

Sobre as férias judiciais já muito se escreveu e disse.Não sendo este o momento próprio para fazer um excurso pela panóplia de argumentos a propósito expendidos, importa, contudo, sublinhar que vozes autorizadas, dos mais diversos quadrantes, demonstraram que a redução das férias judiciais não faz parte da solução, mas do problema que, alegadamente, pretende resolver ou ajudar a resolver.

Não se questiona a legitimidade do Governo para reduzir ou mesmo extinguir, pura e simplesmente, as férias judiciais, como seria desejo dos juízes publicamente manifestado. Os juízes insurgem-se é contra a ideia que, militante e demagogicamente, se fez passar para a opinião pública de que se trata da extinção de um privilégio dos juízes; o que os juízes reprovam e lhes causa indignação é, por outras palavras, a utilização, designadamente na praça pública, da redução das férias judiciais como um sinal demonstrativo de coragem política de lhes cortar um privilégio que, na realidade, não têm, deixando, por outro lado, nos cidadãos a ideia de uma relação directa entre a morosidade da justiça e as férias ditas dos juízes. Continuamos à espera do estudo que permitiu concluir que a redução de férias representará um acréscimo de 10% da produtividade.Num país assoberbado com graves problemas éticos, sociais e económicos, terão as férias judiciais dignidade bastante para serem erigidas em tema nobre da governação?

A forma como a medida foi publicamente apresentada não contribuiu, certamente, para elevar os níveis de confiança dos cidadãos nas suas instituições judiciárias, mas, seguramente, desacreditou, desprestigiou os juízes perante os cidadãos.

Os juízes nem o direito de ser ouvidos sobre a matéria viram reconhecido.Previsivelmente, aqueles que agora aplaudem a medida acabarão por ser os principais prejudicados - os cidadãos.

Parafraseando SCHILLER bem poderá dizer-se: Desconfiai, nobre senhor, não julgueis justa qualquer medida, só porque, como tal, a proclama o poder político.

Aos juízes exige-se prudência, ponderação, espírito de sacrifício, moderação, bom senso; dos juízes não pode, porém, esperar-se passividade, indiferença, silêncio, perante afrontas à sua dignidade ou atitudes injustificadamente hostis.
Esta "guerra" (passe a expressão), como todas as outras, sabe-se como começou; não se sabe, porém, como acabará.
O ambiente de crispação que presentemente se vive na área da justiça não beneficia ninguém e a todos prejudica, sobretudo os cidadãos.
Quando a farinha anda pelo ar não é apenas o moleiro nem aquele a quem é arremessada que fica enfarinhado.
É tempo de diálogo, no verdadeiro sentido da palavra.
Dialogar não significa impor, colocar o interlocutor perante um facto consumado ou perante uma decisão tomada, mas escutar, ponderar as razões, os argumentos do outro, no sentido de se chegar a um consenso.
Na busca de soluções de consenso não pode exigir-se aos juízes que procedam como titulares de um órgão de soberania e tratá-los como funcionários.
Igualmente não poderá perder-se de vista que - profissionalmente - o Presidente da República não é Presidente da República, está como Presidente da República; o Deputado não é Deputado, está como Deputado; o Ministro não é Ministro, está como Ministro; o Juiz não está como Juiz, é juiz, na mais exigente fenomenologia do ser.
Bem como não pode olvidar-se que os juízes não autodefinem o seu estatuto remuneratório, nem os seus direitos, nem as condições de trabalho.
A este propósito, não será despiciendo chamar à colação o que o Prof. Figueiredo Dias escrevia sobre a independência dos tribunais, no seu significado de "independência perante quaisquer grupos da vida pública (partidos políticos, lobbies, grupos de interesses e de pressão, imprensa, rádio-televisão, etc.): "[&ldots;] para que de tal influência possa por forma conveniente defender-se a magistratura judicial, não basta que lhe seja juridicamente assegurada a independência, antes importa criar todo um conjunto de condições de independência subjectiva aos próprios juízes, através do qual lhes seja concedida autonomia no campo social e económico" (fim de citação).
Os juízes não têm que amar ou odiar os políticos, mas têm, obviamente, o dever de os respeitar, cumprir a lei e contribuir para a reposição e reforço do sentimento de confiança dos cidadãos nas instituições judiciárias - tão fortemente abalada pelo discurso político e pelos que investiram na formação da opinião pública - através da competência na sua actuação, disponibilidade e, enfim, elevado espírito de serviço.

Os juízes não têm apenas "privilégios" que os não privilegiam. Têm também, dizia eu, direitos de que não são titulares: é o caso da independência.Efectivamente, os tribunais - órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo - são independentes e apenas estão sujeitos à lei. É o que proclama o artº 203º da Constituição da República Portuguesa, norma aquela reproduzida pelo artº 3º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais.
A independência dos tribunais postula, porém, a independência dos juízes, pois que, como escreve o Prof. Germano Marques da Silva, "a administração da justiça não se faz pela jurisdição, enquanto órgão abstracto, mas pelos juízes, magistrados e juízes populares, que integram os tribunais" (citei).E, na clássica resposta do primeiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, "a independência dos juízes não é regalia destes, é direito de todos os cidadãos."
Assim, quando se pugna pela independência judicial - cuja raiz teorética mergulha na doutrina da separação dos poderes, de Montesquieu - não é um direito dos juízes que está em causa, mas um direito dos cidadãos, um direito do povo, em cujo nome os juízes administram a justiça.E, quando se pensava que a independência judicial perante os restantes poderes do Estado era uma aquisição irreversível, pertencendo ao passado distante as tentações de influenciarem e pressionarem as decisões judiciais, fala-se hoje em controle externo dos juízes, sem que se definam os contornos de tal conceito.

A crise da justiça, tema igualmente recorrente - e que hoje retomo, seguindo de perto a exposição sobre o tema, feita recentemente neste mesmo local, não apenas por comodidade e falta de tempo, mas também porque os dados do problema não se alteraram - a crise da justiça, tema igualmente recorrente, dizia, está definitivamente identificada, sobretudo, com a morosidade processual.
Todavia o problema da lentidão da justiça - que existe, é certo, e é preocupante - não é novo nem, ainda assim, tão grave quanto pretendem fazer crer os opinion makers, como o demonstram os dados estatísticos e o seu cotejo com os de outros sistemas além-fronteiras, que apresentam afinidades com o nosso.
Trata-se, efectivamente, de uma crise há muito anunciada e adormecida, trazida à superfície sobretudo pela crescente consciência por parte dos cidadãos dos seus direitos, é certo, mas, quiçá, também amplificada por interesses inconfessados.
Compreensivelmente, o que se passa nos tribunais, dizia eu na referida exposição, suscitou sempre a curiosidade dos cidadãos e o interesse da comunicação social. Apontava como exemplo acabado desse interesse o primeiro número do "Diário de Notícias", publicado em 29 de Dezembro de 1864. Lado a lado com o "programma" do jornal, poderia ler-se o seguinte: "Começam no dia 24 do corrente as férias do Natal nos tribunaes judiciaes, e acabam no dia 7 de Janeiro. D'esse dia em diante daremos aos nossos leitores conta de todos os julgamentos correccionaes, e criminais interessantes, tendo para isso collaborador especial" (fim de citação).
Só que hoje os meios de comunicação social não se limitam a informar. Manipulam as provas, tentam influenciar decisões judiciais, publicam o que está em segredo de justiça, dão relevo à versão apresentada por um dos sujeitos processuais (por via de regra, a do arguido) e expurgam de consideração as demais versões, montam espectáculos à porta dos tribunais, fazem julgamentos na praça pública, a ponto de ser legítima a interrogação dos menos familiarizados com o Direito Processual Penal Português sobre qual dos princípios vigora entre nós: se o da presunção de inocência se o da presunção de culpa do arguido.
Como dizia Antoine Garapon, na sua obra "O Guardador de Promessas", em que aborda o tema da crise da justiça em França, cujos contornos apresentam nítidos pontos de contacto com o caso português, "os media, com o pretexto de assegurarem a máxima transparência, arriscam-se a privar os cidadãos de garantias mínimas - como a presunção de inocência - mantendo a ilusão de uma democracia directa [&ldots;] Nunca as sociedades invocaram tanto a transparência e nunca elas foram tão opacas em si mesmas! A nossa sociedade de hipervisão perdeu toda a visibilidade sobre si mesma" (citei).
Não são nítidos os contornos da chamada crise da justiça, mas num ponto convergem os diagnósticos: ela está indissoluvelmente ligada à morosidade processual, à lentidão na prolação das decisões judiciais. Daí, naturalmente, que o juiz surja como o principal actor no palco da tragédia. Daí que, por outro lado, a esmagadora maioria das medidas destinadas a combater a crise da justiça sejam direccionadas aos tribunais e norteadas pelo reforço das ideias de celeridade e eficácia.
A maioria dos factores da crise da justiça situam-se, porém, a meu ver, a montante dos tribunais, e alguns a jusante.
Entre os primeiros podem apontar-se, a título de exemplo, a crescente conflituosidade, a crise, aliás profunda, de valores da cidadania, também ela geradora de litigância, as mutações económicas e sociais, o abuso de litigância judicial por parte de grandes empresas, o incremento quantitativo e qualitativo da criminalidade, mormente da criminalidade económica e organizada, seja a nível nacional seja de carácter internacional, esta potenciada pela crescente mobilidade de pessoas entre os territórios dos diversos Estados, facilitada, sobretudo, pelos modernos meios de transporte e pela intensificação das relações de troca comerciais, a falta de rigor técnico das leis que nos regem, etc., etc.
As reformas legislativas - que, aliás, têm primado pela prodigalidade, sempre orientadas no sentido da celeridade processual, aspecto que importa realçar - nem sempre têm feito parte da solução mas do próprio problema. Basta atentar na avalanche de recursos que muitas delas próprias, por falta de rigor técnico, desencadeiam, no relativamente elevado número de recursos para fixação de jurisprudência ou na efémera vida de muitas das medidas legislativas. Com alguma pertinência poderá, pois, dizer-se que, não raro, a celeridade processual que se pretende imprimir redunda em morosidade acrescida.
Entre os factores da crise da justiça, a jusante dos tribunais judiciais, recorde-se, também exemplificativamente, a extrema facilidade de recurso para o Tribunal Constitucional, muitas vezes com intuitos meramente dilatórios - há muito identificada como uma das mais importantes causas da lentidão da justiça - e, a nível da justiça penal, a falência da execução das medidas privativas de liberdade, no concernente à consecução das suas finalidades, maxime da sua precípua finalidade de socialização, facto este, também e sobretudo, preocupante pelos enormes custos sociais que, a outro nível, representa.
Em entrevista ao jornal "Público", do dia 5 do corrente mês, o Ex.º Presidente do Tribunal Constitucional dizia que, embora não dispondo de "estatísticas muito fiáveis", não erraria muito se dissesse que "dois terços dos recursos interpostos não tinham os pressupostos necessários e não se tomou conhecimento deles". (citei).

Todavia, aos olhos do comum cidadão - moldado no seu pensamento, em matéria de justiça, pelos meios de comunicação social - a lentidão da justiça, não radica na falta de clareza da lei, no excesso de garantismo, na utilização de meios processuais com vista a obter, por via oblíqua, a modificação de decisões, no uso anómalo dos meios garantísticos com intuitos meramente dilatórios, nos estrangulamentos, desfasamentos, insuficiências, contradições do sistema, etc. (que comprometem a eficácia da justiça), na incapacidade de resposta dos tribunais, por falta de meios humanos e materiais (que não acompanharam, o ritmo do crescimento dos níveis de litigiosidade), mas na fraca produtividade dos tribunais e, naturalmente, dos juízes, rosto mais visível da justiça, repete-se, e nos erros por estes cometidos na aplicação do direito. Erros que sempre existiram, existem e continuarão existir, pois que inerentes à condição humana. Tanto quanto julgo saber, a cor da beca que usamos, estará mesmo associada, na sua origem, a um erro judiciário.
Compreensivelmente, não é o volume ou a complexidade dos processos a cargo do juiz nem as verdadeiras causas da lentidão da justiça que preocupam o cidadão, mas a decisão do seu processo - decisão que pretende em tempo útil, é certo, mas também e sobretudo, bem fundada e convincente, isto é, uma decisão justa.O Poder Político preocupa-se, fundamentalmente, com as projecções estatísticas.
E eis-nos chegados ao cerne da questão.
A confiança dos cidadãos nos tribunais não passa apenas pela célere resolução dos litígios; passa também e, principalmente, pelo acerto das suas decisões.
É inquestionável que a justiça não será eficiente se não for célere.Como recordava na referida exposição que venho seguindo de perto, já o Infante D. Pedro, em 1424, escrevendo de Bruges ao Rei D. Duarte, alertando-o para o grave estado da Justiça, dizia lapidarmente: "&ldots;aquelles que tarde vencem ficam vencidos&ldots;"Mas, se tem de ser célere para ser eficiente, não é menos certo que, para seu prestígio e acerto, a justiça tem de ser bem fundada e convincente. Convencer os interessados do bom fundamento da decisão é uma das primaciais funções da sentença.
Sob pena de - grave e sério risco - se tornar injusta, a justiça recusa-se a ceder à linguagem fria dos números.
Todavia, não se pergunta como decidiu o juiz, mas quantos processos decidiu e, sobretudo, quantos tem por decidir, o que vale por dizer que é a quantidade, que não a qualidade, o critério de aferição do trabalho do juiz, paulatinamente transformado em mero operador judiciário. Daí à sua completa funcionalização vai um pequeno passo.
Se o que importa é decidir muito, porquê não substituir o juiz pelo computador?
Mais do que decidir muito, compete ao juiz decidir bem. Não é esta a primeira vez nem será a última, que o digo.
E para decidir bem não pode o juiz ser pressionado por recomendações de urgência, nem assediado por pedidos de informação estatística nem, finalmente, assoberbado por montanhas de processos.Muito ou depressa e bem, não há quem.
A sabedoria popular, de experiência feita, condensa neste adágio a ideia de que a qualidade e a quantidade/rapidez são duas realidades animadas de sinal contrário.
Daí a tão celebrada quão justamente reivindicada contingentação processual.
Um "juiz sobrecarregado de trabalho não é um juiz independente." Quem o diz é a voz autorizada e insuspeita do Prof. Castro Mendes, nome que o Direito consagrou.
Cabe ao Poder Político resolver o problema da quantidade/celeridade, através da reforma dos códigos, da criação de novos tribunais, do alargamento dos quadros, da adopção de medidas atinentes ao desincentivo do recurso aos tribunais com fins meramente dilatórios, da redução da conflituosidade, etc., etc.
Aos juízes cabe, fundamentalmente, repito, decidir bem.
Com as considerações feitas não se pretende, obviamente, colocar em crise a adopção de medidas destinadas a combater a morosidade processual nem ilibar os juízes da quota-parte de responsabilidade que lhes caiba - e cabe - mas tão-somente sublinhar duas ideias: o combate à lentidão da justiça não passa apenas por medidas dirigidas aos tribunais e, por outro lado, a vitória sobre a crise da justiça, à custa do acerto e prestígio da justiça, seria uma vitória de Pirro e, ainda, alertar, uma vez mais, para a subtil tentativa de funcionalização da Judicatura, através do uso, aparentemente inocente, de conceitos como, v. g., "operadores judiciários", forma hábil de nivelar todas as entidades que intervêm na área da Justiça.
Na sociedade não há compartimentos estanques.
A justiça não poderia ficar imune à crise que minou o Estado.
Na sua citada obra, Antoine Garapon defende que a crise da justiça decorre, paradoxalmente, do excesso de justiça. Segundo aquele Autor, a desagregação dos valores comuns que suportam o moderno contrato social determina a intervenção crescente do poder judicial para garantir a sobrevivência do Estado. O espaço do direito constitui, assim, "o último refúgio para um ideal democrático desencantado."
A crise da justiça tornou-se mais visível quando nos bancos dos arguidos passaram a sentar-se também poderosos.
A partir daí, o Código de Processo Penal - que não temia o confronto com os códigos congéneres mais avançados do mundo - passou a ser alvo dos mais ferozes ataques.
A crise da justiça é uma realidade inegável. Motivo de preocupação, porém, não é tanto a crise em si, já que existem sinergias para a superar; assim haja vontade séria. O que preocupa seriamente é o possível aproveitamento da crise da justiça para a realização de fins inconfessados.
A todos, uma vez mais, obrigado por se terem dignado conceder-me o privilégio da vossa honrosa presença, neste acto, firme garantia da solenidade do mesmo.

Évora, 16 de Novembro de 2005
Manuel Cipriano Nabais

(Discurso proferido no acto de posse do cargo de Presidente do Tribunal da Relação de Évora
).

in asjp.pt

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