sábado, novembro 12, 2005

Carta de Defesa dos Cidadãos

Preâmbulo

Nos termos da Constituição da República Portuguesa a Justiça é administrada pelos Tribunais em nome do Povo Português, sendo reconhecido aos cidadãos o direito a tomar parte em todos os assuntos da vida pública como manifestação de um verdadeiro dever cívico.
A administração da Justiça é, no quadro do Estado de Direito Democrático, um serviço público vocacionado para a defesa dos direitos e garantias individuais, que deve ser prestado com a adequada qualidade aos cidadãos que a ele recorrem por instituições que, inseridas num sistema integrado de resolução de conflitos, garantam uma solidariedade social efectiva.
As associações jurídicas e de profissionais forenses estão cientes de que o direito dos cidadãos a uma boa administração da Justiça se sobrepõe a equívocos interesses pessoais ou corporativos dos seus associados.
Conscientes de prosseguir o urgente interesse nacional numa melhor Justiça, mais participada, responsável e solidária, deliberam aprovar a presente Carta para a Defesa do Cidadão na Administração da Justiça, contendo um ideal comum cujos princípios devem ser prosseguidos, aplicados e desenvolvidos por todos os indivíduos e entidades envolvidos na tarefa de administrar a Justiça.

1. Direito à Informação

a) Todos os cidadãos têm direito a receber, em tempo oportuno, informações adequadas, compreensíveis e completas por parte dos diversos agentes de administração da Justiça acerca de tudo quanto respeite ao exercício dos seus direitos, nomeadamente sobre a tramitação e prazos processuais, bem como sobre as consequências da sua inobservância e respectivos custos.

b) O direito à informação significa, além do mais:- o direito a usufruir, no interior dos edifícios dos Tribunais, de gabinetes de atendimento ao público, com a função de informar, orientar e apoiar os cidadãos nas suas relações com a Justiça;- o direito a obter cópia dos termos do processo desde que tal não represente violação de segredo de justiça;- o direito à comunicação dos actos e decisões em linguagem clara e perceptível para o cidadão, designadamente sobre as condições e prazos de recurso ou da sua impugnação, devendo tais actos e decisões ser legíveis sempre que manuscritos;

c) Constituem práticas e comportamentos a evitar:- a falta de informação sobre o acesso aos diversos meios de tutela jurisdicional, sobre a possibilidade de escolha entre eles e sobre os custos do procedimento;- a inexistência de um local, serviço ou instrumento destinados a prestar as informações que se revelem necessárias;- a inexistência em locais acessíveis ao público de modelos de requerimento a utilizar directamente pelos próprios interessados, quando o possam fazer.- a recusa por qualquer agente ou serviço a prestar as informações que lhes sejam solicitadas;- a falta de informação por parte das autoridades judiciárias e dos órgãos e autoridades de polícia criminal às vítimas de crimes ou a quem seja submetido a um processo penal em relação ao desenrolar do procedimento, em matérias que não estejam abrangidas pelo segredo de justiça e ao modo do exercício dos seus direitos;- a falta de informação detalhada por parte dos mandatários forenses aos seus constituintes sobre o desenrolar dos procedimentos;- a falta de identificação visível dos funcionários dos serviços de administração da Justiça, excepto quando a identificação coloque em causa a segurança das pessoas envolvidas;- a omissão ou ilegibilidade da identificação do agente ou entidade que profere a decisão ou é responsável pelo acto comunicado ao cidadão;- a falta de adequada sinalização exterior relativa à localização dos edifícios dos Tribunais e, no seu interior, a falta de sinalização dos diversos departamentos.

2. Direito ao respeito

a) Todos os cidadãos têm direito, no relacionamento com os serviços de administração da Justiça, a ver respeitada a sua dignidade e a não serem sujeitos a práticas e comportamentos lesivos da sua integridade física, psíquica, moral ou social.

b) O direito ao respeito significa ainda:- o direito à reserva, em especial em relação à identidade das pessoas envolvidas, em qualquer fase da tramitação processual;- o direito à privacidade na audição das partes, nomeadamente na área de família e menores.- o direito a ser tratado por todos os agentes da administração da Justiça de modo cortês e respeitador da sua dignidade pessoal;

c) Constituem práticas e comportamentos a evitar:- o adiamento de actos para os quais os cidadãos foram convocados sem que lhes seja claramente explicada a razão para esse facto;- a falta de cumprimento dos horários previamente estabelecidos para as diligências;- os comportamentos injustificadamente autoritários por parte dos magistrados e funcionários judiciais;- a falta de resposta atempada às legítimas pretensões apresentadas pelos cidadãos, incluindo a falta de resposta por parte do advogado às solicitações do seu constituinte;- a insensibilidade para com a vítima nas várias fases do procedimento obrigando-a a reviver desnecessariamente episódios traumatizantes;- a submissão a qualquer tipo de vexame sobre quem é sujeito a um procedimento penal, incluindo a difusão da sua identificação através da comunicação social durante a fase de inquérito criminal.

3. Direito ao Acesso

a) Todos os cidadãos têm direito a não ser discriminados no acesso à Justiça em razão da sua condição económica, social ou cultural.

b) O direito de acesso à Justiça significa, além do mais:- o direito à possibilidade de efectiva utilização dos meios alternativos de resolução de conflitos;- o direito de as associações de consumidores ou de defesa de interesses colectivos poderem intervir em juízo em acções colectivas não limitadas à tutela anulatória.

c) Constituem práticas e comportamentos a evitar:- a existência de procedimentos burocráticos que limitem o recurso ao apoio judiciário e a falta de controlo dos procedimentos de concessão de apoio judiciário por parte da entidade competente;- a não redução das custas nos processos com reduzida actividade jurisdicional;- a existência de obstáculos económicos e organizativos levantados à interposição de recursos, nomeadamente através do valor das custas a suportar, da desproporcionada elevação do valor das alçadas ou de complexos procedimentos;- a sujeição a injustificáveis esperas e a repetidas deslocações ao mesmo ou a outros serviços, por idêntico motivo.

4. Direito a infra-estruturas adequadas

a) Todos os cidadãos têm direito a que as infra-estruturas afectas aos Tribunais e aos serviços de administração da Justiça sejam dignas e funcionais no que respeita à higiene, à localização e à logística, ao mobiliário, ao número de salas e às acessibilidades, inclusive para pessoas portadoras de deficiência.

b) O direito a infra-estruturas adequadas significa ainda:- o direito à segurança dos edifícios por meio de criação de saídas de emergência facilmente identificáveis, de portas anti - incêndio e da colocação de extintores em locais bem visíveis em todos os pisos;- o direito à instalação nos edifícios de sistemas que garantam a segurança física de magistrados, funcionários e advogados e público em geral contra acções criminosas dirigidas às suas pessoas;

c) Constituem práticas e comportamentos a evitar:- a realização de audiências de julgamento em espaços exíguos, sem o mínimo de dignidade para o exercício da actividade de um órgão de soberania ou em espaços desconfortáveis face ao número de intervenientes ou de pessoas interessadas em acompanhar as audiências públicas;- a inexistência de salas de espera especialmente destinadas a testemunhas;- a inexistência de salas adequadas à audição de cidadãos no âmbito de inquérito de natureza penal com a privacidade e confidencialidade exigidas pela lei;- a inexistência de sistemas de comunicação de voz nas chamadas para actos processuais a decorrer em simultâneo, sempre que tal se revele necessário;- a inexistência de serviços sanitários públicos adequados e em número suficiente;- a ausência de instrumentos para regularização de filas de espera ou ordenamento dos utentes antes do atendimento.

5. Direito a um processo célere

a) Todos os cidadãos têm direito à decisão em tempo útil das questões que submetam à apreciação dos Tribunais, de acordo com os princípios e direitos consagrados na Constituição da República Portuguesa e nas cartas internacionais.

b) O direito a um processo célere significa, além do mais:- o direito a obter decisão definitiva de um processo em prazo que não exceda, sem justificação, dois anos para decisão em primeira instância e quatro anos para todas as fases possíveis do processo;

c) Constituem práticas e comportamentos a evitar:- a falta de um número suficiente de magistrados, de funcionários de justiça e de assessores em relação ao número de processos;- a falta de definição legal de um número limite de processos a cargo de cada magistrado, pressuposto da sua responsabilização pela não decisão em tempo útil;- o adiamento de diligências devido a deficiência ou falta de notificação dos intervenientes ou por outras razões, apenas imputáveis aos serviços;- a não observância, injustificada, dos prazos processuais de duração do inquérito ou da instrução e a demora injustificada em proferir decisão em procedimento cautelar, despacho de que dependa o prosseguimento do processo ou decisão final.

6. Direito à qualidade

a) Todos os cidadãos têm direito a usufruir de uma Justiça de qualidade no que concerne às decisões proferidas, à preparação dos diversos agentes que a possibilite e à correcção dos respectivos procedimentos.

b) O direito à qualidade significa ainda:- o direito a exigir uma adequada programação, planificação e controlo de gestão de recursos humanos, de aquisição de bens e serviços e de manutenção de meios e infra-estruturas;- o direito a obter uma efectiva tutela judicial de acordo com os critérios definidos nas cartas internacionais de direitos.

c) Constituem práticas e comportamentos a evitar:- a existência de um processo de execução que não satisfaz os reconhecidos interesses dos credores;- a existência de um processo penal inadequado a satisfazer as exigências de segurança dos cidadãos e a garantir os direitos das vítimas dos crimes;- a prevalência de razões formais em detrimento do conhecimento da pretensão deduzida em juízo;- a falta de adequada formação profissional inicial e de permanente actualização e formação por parte dos diversos agentes dos serviços de administração da Justiça;- a falta de instrumentos de adequado controlo e monitorização da qualidade dos serviços prestados no âmbito da administração da Justiça, em especial por parte de magistrados, advogados, funcionários de justiça e órgãos de polícia;- a inadequação dos processos de informatização dos tribunais bem como a falta de formação específica e de apoio em tempo real aos respectivos utentes.

7. Direito à participação

Todos os cidadãos têm direito a participar activamente na vida pública e a ser efectivamente ouvidos, através das associações cívicas que os representem e actuem nas áreas abrangidas, antes da adopção de reformas legislativas que se possam repercutir sobre a actividade dos Tribunais.
Por uma política integrada de administração da Justiça que privilegie meios alternativos de resolução de conflitos;
Por uma Justiça participada e solidária ao serviço dos cidadãos, em nome de quem é feita.

Texto aprovado no II Encontro Nacional de Associações Jurídicas, Braga, 15.10.2005, por unanimidade pelos representantes das associações presentes (designadamente, a Associação Jurídica de Braga, a Associação Forense de Santarem, a Associação Forense do Oeste, a Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, a Doc Juris e a República do Direito, Ordem dos Advogados, a ASJP, o SMMP e o SFJ).

in www.asjp.pt

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