quinta-feira, novembro 10, 2005

"A greve e a independência dos juízes" - por Dr. Alexandre Baptista Coelho


"As greves que no final de Outubro abalaram a justiça registaram números de adesão sem precedentes, que ninguém se atreveu a contrariar. Números que são esmagadores, mas que ainda assim não conseguiram fazer descolar alguns opinion makers do estafado discurso do corporativismo. Parecem estar alinhados no coro situacionista, e resumem a análise das preocupações dos juízes à bitola das "benesses sociais", e à luz do discurso oficial das "classes privilegiadas".

Ninguém com mediana lucidez decerto concluirá que a maciça adesão à greve dos juízes se deveu apenas a questões de cariz puramente sindical. Ainda que essas motivações não sejam obviamente desprezíveis, elas nunca conseguiriam, por si só, mobilizar toda uma classe que, convenhamos, não costuma ser insensata. Para mais, quando a greve ocorreu após intensa campanha em que tudo serviu para a descredibilizar e para dela demover potenciais aderentes.

Por mais que isso custe a algumas mentes redutoras, se a adesão à greve roçou os 100%, isso deveu-se antes de mais ao clima de hostilização e de afrontamento da magistratura, discriminada pela negativa face a outros órgãos de soberania e a outros sectores do Estado e da administração pública e apontada como primeira responsável pelos males de um sistema que a incapacidade do poder político deixou ir degradando, fazendo ouvidos moucos às propostas que têm sido apresentadas.

Esta adesão maciça deveu-se a um clima que, se os não tem, parece ter propósitos que em muito ultrapassam os contornos de uma política conjuntural de contenção orçamental ou de suposta equidade social.

Basta raciocinar um pouco a quem mais aproveita que o debate não passe do nível das férias judiciais e dos serviços sociais? A quem interessa que a discussão não vá além do nível das "corporações", dos "privilégios" e dos "direitos adquiridos"?

Não será certamente aos juízes, que há muito vêm reclamando soluções duradouras. Mas esse tipo de argumentos convém sobremaneira a todos aqueles a quem interessa mais discutir a forma para não discutir o fundo, a todos a quem interessa que as aparências mudem, para que a substância fique na mesma ou se degrade ainda mais.

Não devemos ter ilusões.

Nas sociedades ocidentais do século XXI, e no caso português em particular, o que agora seria realmente importante era discutir a maneira de apetrechar o sistema judiciário para combater com eficácia fenómenos como a corrupção, a alta criminalidade económica, as manobras obscuras de interesses instalados, os tráficos de influências. O que realmente interessava seria discutir qual o caminho certo para agilizar a justiça e dotá-la da autoridade necessária para o cumprimento adequado do seu papel de garantia última dos direitos dos cidadãos.

Nesse contexto, as férias judiciais e os serviços sociais não passam naturalmente de temas menores. Mas temas que ainda assim são importantes para todos aqueles cuja estratégia passa, antes de mais, pelo puro entretenimento da opinião pública.

É por isso que não é despropositado afirmar que pode estar em causa a independência do poder judicial e que essa foi talvez a principal motivação para a grande adesão dos juízes à greve. É que o respeito pela independência dos tribunais ultrapassa em muito uma questão com meras incidências orçamentais. É primeiro que tudo uma questão de atitude e de vontade do poder político.

Por isso, quando na praça pública a justiça é descredibilizada, as instituições judiciárias são desautorizadas e a magistratura é amesquinhada e desprestigiada, quem sai a ganhar é quem não convive bem com um poder judicial forte e independente. Sabe-se lá porquê?

Ou será que alguém ainda acredita que, aqui, as aparências iludem?"

in dn.sapo.pt

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