sexta-feira, novembro 18, 2005

Discurso do Presidente da República, Jorge Sampaio - Sessão de Abertura VI Congresso Advogados Portugueses

Continuando a acompanhar o VI Congresso dos Advogados Portugueses, publica-se o discurso de Sua Excelência o Presidente da República na sessão de abertura do mesmo:



"Excelências,
Senhor Bastonário, Dr. Rogério Alves, Senhores Bastonários, em especial o Senhor Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil e os Presidentes das Ordens dos Advogados dos países de língua portuguesa e de Macau,
Senhores Convidados, nacionais e estrangeiros,
Senhores Congressistas,
Minhas Senhoras e meus Senhores,

Reúnem V. Exªs em Congresso, num momento em que as profissões forenses estão atravessadas por assinalável turbulência e expressam grande inquietação. Muitas vezes fundadamente, importa reconhecê-lo; nem sempre, porém, no melhor terreno, nem pelos meios mais adequados.

Tudo razões acrescidas para que esteja na primeira linha das preocupações dos portugueses o tema recorrente da qualidade da administração da Justiça, revisitado neste Congresso sob a égide da responsabilidade social dos advogados.

Palavra forte – responsabilidade social – para uma profissão, a nossa profissão, que é exercida, as mais das vezes, em regime livre, com as exigências do quotidiano a impor muito esforço e muito zelo no modo de vida escolhido. Mas é exactamente por isso que os advogados estão numa posição única para se colocarem na primeira linha de uma administração eficiente e equitativa da Justiça. É que entre os profissionais do foro, eles são os únicos cuja viabilidade e sucesso dependem, em apreciável medida, do bom funcionamento da máquina judiciária.

A administração da Justiça é deficiente? Por exemplo: o andamento dos processos é lento? Os critérios de decisão, e as próprias decisões, nem sempre são solidamente fundadas? As leis de processo procuram, sobretudo, uma justiça formal e mantêm uma inútil burocracia?

São factos, entre os muitos que revelam as deficiências do aparelho judiciário, que podem ser motivo de preocupação para juizes, magistrados do Ministério Público ou oficiais de Justiça, mas em nada influem no respectivo estatuto. Nos advogados, influem. E influem, porque a viabilidade da nossa profissão está essencialmente dependente de uma Justiça célere, equitativa e eficaz.

Os advogados são, por isso, parte duplamente interessada na resolução do funcionamento deficiente das instituições judiciárias - enquanto cidadãos e enquanto profissionais.

É essa dupla vertente que ajuda a fazer a ponte entre o interesse profissional numa Justiça capaz, que é do domínio do sucesso, e a exigência de responsabilidade social no exercício da profissão, que é uma virtude da cidadania.

Faço votos para que as conclusões do Pacto para a Justiça e o espírito muito trabalhado que as tornou possíveis voltem a estar presentes. Que a serenidade impere e que as convergências se renovem. Continuo a pensar que os pactos são possíveis. Os diagnósticos estão feitos, e têm largas zonas de convergência. Os tempos mais recentes são de extrema urgência, porque temos, perante nós, convêm dizê-lo, uma enorme falta de confiança dos cidadãos. E a sua perplexidade é a primeira característica da falta de confiança quanto ao funcionamento da Justiça.

Minhas senhoras e meus senhores,

A responsabilidade social do advogado julgo eu passa, essencialmente, por cinco áreas. São elas: a formação, a ética profissional, as relações com a informação, o acesso ao direito e a disciplina da profissão.

É sabido o que penso quanto à formação dos agentes da Justiça. E nada tem acontecido de novo para que reveja o entendimento que venho sustentando de que parte da formação dos agentes da Justiça, pelo menos de juizes, magistrados do Ministério Público e advogados, tem de ser comum.

Antes de mais, para que entendam os valores e o ângulo de abordagem de cada profissão.

Depois, para que fique garantido um mínimo de disciplinas, de base, comuns e de práticas consensualizadas.

Finalmente, para que, sendo a falta de eficácia justificado motivo de inquietação, não seja ela corrigida à custa de direitos, liberdades e garantias, constitucionalmente reconhecidos; e para isso, é indispensável que o seu conteúdo essencial constitua um património partilhado por aqueles que vão iniciar-se numa profissão forense.

Nada melhor para a necessária aquisição desse património do que o estudo em comum da matéria de direitos, liberdades e garantias, de modo que elas sejam um momento, também comum, de toda a prática e de toda a aplicação do Direito.

A formação conjunta, é sabido, exige uma engenharia organizativa complexa e acrescido investimento. E pela sua natureza, e pela limitação de meios materiais que a conjuntura determina, será mais exigente, quer no acesso, quer no reconhecimento de habilitações.

Tenha-se, todavia, por certo, que dificilmente se modificará o quadro humano da administração da Justiça se não se tiver a coragem de enveredar por este paradigma de formação, que encontra, aliás, instrutivas aplicações em muitos dos nossos parceiros europeus.

É ele que ajudará a realizar, de um modo excelente, essa forma de responsabilidade social que é condicionar o exercício de uma profissão, com sérias implicações na vida de todos, a quem detenha, comprovadamente, uma formação adequada às exigências de aconselhar, promover e declarar, direitos e deveres.

É também ele – esse tal paradigma de que falei - que poderá contribuir para uma melhor e tão inadiável qualificação das profissões forenses, muitas vezes perturbada por uma incapacidade de resposta, sobretudo pela via da excelência, à abertura dos tribunais a cada vez mais alargados grupos e estratos da sociedade.

Mas pela formação – e é a segunda área - começa, também, a ética, seja a das práticas entre advogados, seja a das relações com quem se confia ao nosso patrocínio.

E depois, a aprendizagem do sentido da medida e do limite, valores axiais da nossa civilização, que impedem quer o uso desregrado do processo, quer a caução à injustiça, quando ela deixa de ser mera questão de ângulo de abordagem e passa a fronteira da iniquidade.

Mas é aqui – e entro na terceira área - que a ética se encontra com a informação e com a subida da Justiça e seus agentes ao palco da comunicação social - porque a medida e o limite estão, inequivocamente, excedidos.

E estão excedidos nos excessos da palavra e nos excessos da imagem. Ou pior do que isso, na pretensão, a que a ética profissional dos advogados não pode dar nem pretexto, nem acolhimento, pretensão, dizia, de se suprirem as insuficiências do desempenho, seja no patrocínio forense, seja no exercício da acção penal, seja no momento de julgar e de decidir, pelos efeitos da desleal persuasão que sempre há-de representar a substituição da Justiça pelo seu espectáculo.

É que quando parecem faltar, umas vezes os meios, outras a razão, logo se mobiliza a mediatização de arguidos e de vítimas, quase sempre com cirúrgicas violações do segredo de Justiça, numa operação efémera, que se esgota no tempo do espectáculo.

E nesse palco, acaba, apenas, por se representar uma paródia da Justiça, umas vezes feita de decisões cujos fundamentos chegam a desafiar a realidade de factos públicos e notórios, e que por isso nos enchem de espanto; outras, de solene divulgação de suspeitos, sem que, meses a fio, se pergunte pelas suas razões de defesa.

E chega-se mesmo à irresponsável divulgação de respeitáveis e úteis iniciativas de investigação e combate a tipos de criminalidade habituada, anos a fio, a tolerante impunidade, quando importava, nessas iniciativas - e assim a lei o impõe - usar de todo o saber e de toda a discrição, para com elas se não correr o risco de, na melhor das hipóteses, se fazer desde logo tanto dano certo, na esperança de uma desejável, mas incerta, Justiça.

Nesse espectáculo em que se cruzam insuficiências, desleixos e, não raro, uma indisfarçável vontade de afirmação, quem perde é a Justiça, de que os cidadãos tendem, cada vez mais, a desconfiar. E perde a democracia, cuja qualidade está indissoluvelmente ligada à qualidade do Estado de Direito que consegue instituir.

Minhas senhoras e meus senhores,

É, também, a qualidade da democracia que exige a tutela efectiva do acesso ao direito de todos os cidadãos. É a quarta área da minha breve reflexão.

Nesse processo, temos de ser nós, advogados, que conhecemos, de uma vida toda, as grandezas e as misérias do patrocínio oficioso, quem terá de reconhecer as deficiências dos seus sucessivos modelos; e que, sem desvalorizar os esforços que têm sido feitos nos últimos tempos, de que recentes inquéritos parecem dar nota, ainda não foi possível erradicar, de um modo significativo, esse momento doloroso em que nos damos conta de que a defesa dos direitos dos que não têm meios para pagar a um advogado, sobretudo quando está em causa a preservação da liberdade, a pouco mais se resumiu do que a essa alegação de rotina, que fica a ecoar em cada tribunal como uma vergonha, de apenas se pedir ... Justiça.

A questão do acesso ao direito é, obviamente, uma questão de custos, porque os recursos são limitados. Mas se há sector onde só razões incontornáveis de disciplina financeira justificam cortes, o do acesso ao direito é um deles.

Importa, todavia, ter presente que, antes de se fazer uma quantificação dos recursos disponíveis, ter-se-á de proceder, e proceder rapidamente, à revisão do seu regime, para que fique efectivamente garantido que cada cidadão sem recursos pode não ter uma advocacia de luxos, com timbres, aparato, e muitas vezes, elevado gabarito, mas terá ao seu dispor uma actuação séria, competente e empenhada.

É o exercício de mandato forense com estas características que o modelo a delinear tem de garantir. Os advogados e a sua Ordem têm de estar na primeira linha, e serem os principais agentes, deste combate, para que o acesso ao direito tenha, generalizadamente, um mínimo de dignidade.

Sem corporativismos, nem preconceitos ideológicos. Mas também sem busca de públicos, ou a preocupação de fazer do patrocínio oficioso uma espécie de fundo social para camadas cada vez mais largas de colegas em dificuldades, fruto da irracionalidade com que foi tendo lugar a organização do ensino do direito e a selecção profissional dos advogados.

Trata-se de uma responsabilidade social inadiável, duma responsabilidade nossa, da nossa profissão, que não podemos enjeitar, sabendo que as escolhas não são fáceis, e que a sua execução tem de enfrentar décadas de laxismo e de contemporização.
Certo é que a nossa democracia não terá a qualidade que todos desejamos, enquanto a tutela dos direitos daqueles que não têm recursos não estiver, generalizadamente, garantida com dignidade.

Minhas senhoras e meus senhores,

Responsabilidade social dos advogados é, também, reordenamento da sua disciplina profissional, sobretudo na vertente de abertura dos seus órgãos disciplinares à representação das outras profissões forenses e de organizações com reconhecida representatividade na área da utilização dos serviços de Justiça ou com ela relacionados. É um ponto meu há muito tempo, sei que não é popular, mas tenho que insistir.

A cidadania tem exigido que a disciplina dos magistrados judiciais e do Ministério Público, e dos oficiais de justiça, não seja assegurada apenas por cada uma daquelas profissões. Nenhuma razão, por isso, como tenho repetidamente referido, para que também na Ordem dos Advogados se não cumpra idêntica exigência. Com o que se ganhará em transparência e prestígio profissional e, por essa via, se melhorará a confiança dos cidadãos na capacidade de funcionamento das instituições judiciárias.

É essa confiança que acontecimentos vários dos últimos anos, que temos todos na cabeça, tem abalado significativamente. Para que se não perca em definitivo, não pode tardar o tempo das reformas.

Tenho muito optimismo quanto ao vosso futuro e à vossa actividade.

Muito obrigado.

Jorge Sampaio"

in www.oa.pt

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