terça-feira, janeiro 24, 2006

Segredo Profissional dos docentes das faculdades de Direito - Parecer E-27/05 aprovado na reunião do Conselho Geral de 16 de Dezembro


"Assuntos: Consulta jurídica prestada por docentes; Segredo profissional

Sumário: I. A Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto, que delimita o âmbito dos actos próprios da advocacia, distingue, no seu artigo 1º, entre os juristas de reconhecido mérito, mestres e outros doutores em Direito (n.º 2) e os docentes de faculdades de Direito (n.º 3), permitindo aos membros de ambas categorias a prática de actos de consulta jurídica, próprios da profissão de advogado, mas exigindo aos primeiros que, para o efeito, se inscrevam na Ordem dos Advogados; II. Os docentes das faculdades de Direito, na elaboração de pareceres jurídicos, não estão directamente sujeitos às normas deontológicas próprias da advocacia - onde se incluem, designadamente, aquelas que prescrevem o dever de sigilo profissional -, uma vez que não exercem tal actividade enquanto advogados; III. No entanto, ao abrigo do artigo 87.º, n.º 7, do Estatuto da Ordem dos Advogados, os docentes das faculdades de Direito estão vinculados ao segredo profissional sempre que elaborem pareceres jurídicos a pedido de advogados, sobre assuntos a estes confiados, pois estão desse modo a colaborar com o advogado no exercício da sua actividade profissional.

CONSULTA

O Exmo. Senhor DR. X, coloca a este Conselho Geral as seguintes questões:

a) Encontrando-se os jurisconsultos (docentes das faculdades de direito que se limitam a dar pareceres jurídicos) referenciados no artigo 53.º, n.º 4, do Estatuto da Ordem dos Advogados, será que os mesmos se encontram sujeitos aos deveres consignados nos referidos Estatutos, designadamente obrigados ao sigilo profissional?

b) Em caso negativo, poderão os referidos jurisconsultos ser abrangidos por qualquer outro regime estatutário que os vincule à observância do sigilo profissional?

c) Se os referidos jurisconsultos (docentes das faculdades de direito, não inscritos a qualquer título na Ordem dos Advogados) não estiverem abrangidos por qualquer regime estatutário que os vincule objectivamente à observância do sigilo profissional, será que os senhores advogados, no exercício do patrocínio da defesa dos seus clientes, em processo de inquérito criminal, subordinado ao regime de segredo de justiça, poderão, sem qualquer autorização da autoridade judiciária competente, sem correrem o risco de serem acusados do crime de violação de segredo de justiça, fornecer-lhes documentos que lhes foram entregues pelo juiz do processo e que estão em segredo de justiça, a fim de elaborarem um parecer jurídico que sirva a boa defesa dos seus clientes?

PARECER

1. A questão colocada na Consulta está delineada com a clareza devida e subsume se no artigo 45.º, n.º 1, alínea d), do Estatuto da Ordem dos Advogados, na medida em que se trata de matéria de relevância para o exercício da profissão e para os interesses da advocacia, que não se encontra especialmente cometida a outro órgão da Ordem.

2. Para a dilucidação de tal questão, será importante começar por efectuar uma abordagem àquilo que tem sido a evolução do quadro legislativo no que concerne ao âmbito próprio de actuação profissional da advocacia.
Assim, no domínio do Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pelo Decreto-Lei n.º 84/84, de 16 de Março, a questão da prática de actos próprios da profissão de advogado era regulado pelo artigo 53.º. O n.º 1 deste preceito estabelecia o seguinte:
“1. Só os advogados e advogados estagiários com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados podem, em todo o território nacional e perante qualquer jurisdição, instância, autoridade ou entidade pública ou privada, praticar actos próprios da profissão e, designadamente, exercer o mandato judicial ou funções de consulta jurídica em regime de profissão liberal remunerada.”Igualmente relevantes, neste âmbito, eram os n.ºs 2 e 4 do mesmo artigo 53.º, que dispunham:
"2. O exercício da consulta jurídica por licenciados em Direito que sejam funcionários públicos ou que a exerçam em regime de trabalho subordinado não obriga a inscrição na Ordem dos Advogados sempre e quando o destinatário da consulta seja a própria entidade patronal.
(...)
4. Os docentes das faculdades de Direito que se limitem a dar pareceres jurídicos escritos não se consideram em exercício da advocacia e não são, por isso, obrigados a inscrever-se na Ordem dos Advogados”.Assim, mantendo uma tradição que já remontava ao Estatuto Judiciário de 1962, o legislador delimitava a actividade própria e exclusiva dos advogados, por referência, fundamentalmente, a duas categorias de actos: o mandato judicial e a consulta jurídica. Simultaneamente, salvaguardava a actividade de consultadoria desenvolvida por funcionários públicos - desde que licenciados em Direito - e por professores universitários, considerando que não se justificava que o desempenho de tais tarefas, embora sendo subsumível na noção de consulta jurídica, estivesse restringido apenas aos advogados(1 ).

3. O referido preceito do Estatuto da Ordem dos Advogados foi expressamente revogado pela Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto (cfr. artigo 12.º, alínea a)), passando a matéria da delimitação do âmbito próprio de actuação dos advogados a ser regulada neste diploma.
O n.º 1 do seu artigo 1.º enuncia o princípio fundamental nesta matéria: a prática de actos próprios dos advogados está restringida aos “licenciados em Direito com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados”. No entanto, são depois introduzidas quatro excepções a tal regra, alargando-se a membros de outras categorias profissionais a possibilidade de realização daqueles actos.
Com efeito, permite-se o exercício de actos próprios dos advogados – no caso, a consulta jurídica - quer a “juristas de reconhecido mérito e mestres e doutores em Direito cujo grau seja reconhecido em Portugal” (desde que procedam à sua inscrição, para o efeito, na Ordem dos Advogados, através de um processo especial a definir no estatuto desta entidade) (n.º 2), quer aos docentes das faculdades de Direito, neste caso quando consista na elaboração de pareceres escritos (n.º 3)(2) .
Admite-se a prestação de serviços de advocacia por parte de advogados de outros Estados da União Europeia, que actuam com o título profissional do seu país de origem, sem que seja necessária a inscrição na nossa Ordem, exigindo-se, no entanto, que tal prestação seja meramente ocasional (n.º 4, que remete para o artigo 173.º- C do Estatuto).
Finalmente, ressalva-se a possibilidade de, “no âmbito das competências próprias atribuídas às demais profissões ou actividades cujo acesso ou exercício é regulado por lei”, se praticarem actos próprios dos advogados (n.º 7, 2.ª parte), concretizando-se, assim, a intenção do legislador de salvaguardar a actividade própria de certas profissões.

4. Finalmente, o novo Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro (EOA), também contém normas que relevam para a apreciação da questão sub judice.Nas disposições gerais que introduzem o Título II, respeitante ao exercício da advocacia, estabelece-se, no artigo 61.º, sobre a epígrafe “Exercício da advocacia em território nacional”, que:
“1. Sem prejuízo do disposto no artigo 198.º, só os licenciados em direito com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados podem, em todo o território nacional, praticar actos próprios da advocacia, nos termos definidos na Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto”.
No Título VI, que regula inscrição, formação e modos de exercício profissional, assume especial importância o artigo 193.º. Este preceito disciplina o processo de inscrição dos “juristas de reconhecido mérito, mestres e outros doutores em direito”, a que se refere o artigo 1.º, n.º 2, da Lei n.º 49/2004, nos seguintes termos:
“1. Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, a inscrição na Ordem dos Advogados de juristas de reconhecido mérito e os mestres e outros doutores em Direito cujo título seja reconhecido em Portugal depende da prévia realização de um exame de aptidão, sem necessidade de realização de estágio.
(...)
5. Os juristas de reconhecido mérito, mestres e outros doutores em Direito inscritos na Ordem dos Advogados nos termos do presente artigo podem praticar actos de consulta jurídica, sendo-lhes aplicável, com as necessárias adaptações, as disposições do presente Estatuto e demais regulamentos”.

5. A análise conjunta deste complexo normativo conduz-nos a uma conclusão inequívoca: quer os “docentes de faculdades de direito”, quer os “juristas de reconhecido mérito, mestres e doutores em direito”, podem praticar, legitimamente, certos actos próprios da profissão de advogado, mas não o fazem enquanto advogados. Não estão, pois, directamente sujeitos às normas disciplinares próprias deste corpo profissional, onde se incluem, designadamente, aquelas que prescrevem o dever de sigilo profissional (cfr. artigo 87.º do EOA).
Porém, relativamente aos juristas de reconhecido mérito, mestres e doutores em direito verifica-se a existência de uma norma legal que estende a aplicabilidade de tais normas estatutárias, com as necessárias adaptações, a estes profissionais, quando pratiquem actos próprios da advocacia. É o citado artigo 193.º, n.º 5, nos termos do qual se pode afirmar que tais juristas, depois de realizado o exame de aptidão que lhes permite praticar actos de consulta jurídica, estão vinculados a respeitar, no exercício de tal actividade, todos os deveres deontológicos dos advogados, incluindo, o de guardar sigilo sobre questões profissionais.
Porém, e como destacamos, os docentes de faculdades de direito que elaboram pareceres escritos correspondem, claramente, em face do artigo 1.º da Lei n.º 49/2004, a uma categoria distinta da destes juristas de reconhecido mérito, mestres e doutores em direito, pelo que não lhes é aplicável, de forma directa, este artigo 193.º, n.º 5.
Poderia eventualmente suscitar-se a questão da aplicação analógica do preceito em causa aos referidos docentes. Sucede que, ainda que existissem razões materiais a justificar tal aplicação, ela seria, no caso em apreço, proibida por uma disposição do Código Penal - o artigo 1.º, n.º 3, que não permite o recurso à analogia na aplicação da lei sempre que tal possa implicar a qualificação de um facto como crime.
Na verdade, o artigo 195.º deste diploma sanciona criminalmente “quem, sem consentimento, revelar segredo alheio de que tenha tomado conhecimento em razão do seu estado, ofício, emprego, profissão, ou arte”. Trata-se de um crime específico próprio, o que significa que só podem figurar como seus autores as pessoas pertencentes a um círculo definido por determinada qualificação ou atributo. No caso, entende-se que tal círculo é constituído pelos agentes de profissões ou actividades para as quais a lei - entendida num sentido lato, abrangendo leis em sentido formal, mas também outras formas de previsão normativa como regulamentos ou códigos deontológicos - prescreva o dever de sigilo(3) .
Ora, neste contexto, o entendimento segundo o qual o facto de não existir norma explícita relativa à aplicabilidade adaptativa do EOA aos docentes de faculdades de direito não corresponde a um plano restritivo da lei, antes constitui uma lacuna de regulamentação que o intérprete está autorizado a superar, com recurso à analogia com o artigo 193.º, n.º 5, seria ilegítimo. Com efeito, desta solução resultaria a vinculação legal destes docentes ao dever de sigilo, o que, por sua vez, teria como consequência a sua sujeição à incriminação do artigo 195.º do Código Penal. Deste modo, tais profissionais passariam a integrar o universo dos agentes compreendidos pela factualidade típica do crime de violação de segredo, com base na utilização de um método interpretativo - a analogia - que as exigências do princípio da legalidade proíbem em Direito Penal.

6. A conclusão a que chegamos, segundo a qual os docentes de faculdades de direito não estão sujeitos ao bloco de normas deontológicas da profissão de advogado, não impede, porém, que estes, em certas circunstâncias, possam ficar abrangidos pelo segredo profissional. Em nossa opinião, esta sujeição ocorrerá em todas as situações em que estes profissionais tenham conhecimento de factos sigilosos quando colaborem com um advogado no exercício das suas funções.
Com efeito, o artigo 87.º do EOA, norma que regula o dever de segredo profissional, dispõe, nos seus n.º 7 e 8, que:
“7. O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua actividade profissional (…).
8. O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração”.
À luz destas disposições, é necessário concluir que a obrigação imposta ao advogado de guardar segredo profissional relativamente a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções se comunica a todos aqueles que, em virtude de prestarem colaboração a esse advogado, compartilhem tais conhecimentos.
Parece-nos que não é necessário recorrer a uma interpretação extensiva do conceito de colaboração - bastando, quanto muito, uma interpretação declarativa lata - para se poder dizer que esta comunicação opera independentemente do título pelo qual a participação de terceiro se concretiza, abrangendo, portanto, a realização de consultas jurídicas a docentes. Com efeito, quando um advogado solicita a um docente universitário a emissão de um parecer jurídico sobre um assunto que lhe foi confiado, ele está inegavelmente a suscitar a sua colaboração, enquanto técnico do Direito, para a resolução da questão que concretamente estiver em causa. Consulta jurídica é a ”actividade de aconselhamento jurídico que consiste na interpretação e aplicação de normas jurídicas mediante solicitação de terceiro”(4) , e aconselhar sempre implicará dar a conhecer a alguém aquilo que, em face do circunstancialismo de uma determinada situação, se considera melhor ou mais vantajoso, a que se liga uma exortação - expressa ou implícita, mas em qualquer caso não vinculativa - no sentido de aquele que recebe o conselho agir (ou se abster de agir) de forma correspondente.
Deste modo, é possível afirmar que o docente que elabora um parecer jurídico está a colaborar com o advogado que o solicita, tal como estará qualquer outro perito a que o advogado recorra para esclarecer algum aspecto do assunto profissional em causa que exija especiais conhecimentos de outra ciência ou técnica (engenharia, arquitectura, perícia criminal, etc.).
Conclui-se, portanto, que os docentes de faculdades de Direito que elaborem pareceres jurídicos a pedido de advogados e sobre assuntos a este confiados estão vinculados ao segredo profissional relativamente a todos os factos que, no desempenho dessa tarefa, venham a conhecer, uma vez que, nos termos do artigo 87.º, n.º 7, do EOA, estão por este modo a colaborar com um advogado no exercício da sua actividade profissional(5) .

7. A conclusão obtida prejudica a apreciação da terceira questão suscitada na Consulta, que tinha como pressuposto a eventualidade de um docente de Direito se não encontrar sujeito a qualquer regime estatutário de observância do sigilo profissional.
No entanto, poderá justificar-se um esclarecimento complementar, face aos termos em que a questão vem colocada.
Assim, o advogado que, no âmbito de um processo-crime, cometa a um docente de Direito a tarefa de elaborar um parecer jurídico sobre a questão sub judice, e que, para o desempenho dessa tarefa, forneça a este os documentos do processo judicial em causa, não estará a violar nem o segredo profissional, deontologicamente imposto, nem o segredo de justiça, resultante do artigo 86.º do Código de Processo Penal, desde que, naturalmente, tais documentos se encontrassem validamente na posse do advogado, isto é, desde que não tivessem sido obtidos ilicitamente, designadamente em violação de segredo de justiça. Na verdade, os factos sujeitos a segredo de justiça estão, naturalmente, também sujeitos a segredo profissional e, portanto, o docente está obrigado a manter quanto a eles sigilo absoluto, de acordo com o disposto 87.º, n.º 7, do EOA. Em caso de violação deste dever, será o docente, e não o advogado, que responderá pelo crime de violação de segredo.

CONCLUSÕES

1. A Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto, que delimita o âmbito dos actos próprios da advocacia, distingue, no seu artigo 1.º, entre os juristas de reconhecido mérito, mestres e outros doutores em Direito (n.º 2) e os docentes de faculdades de direito (n.º 3), permitindo aos membros de ambas categorias a prática de actos de consulta jurídica, próprios da profissão de advogado, mas exigindo aos primeiros que, para o efeito, se inscrevem na Ordem dos Advogados;

2. Os docentes das faculdades de Direito, na elaboração de pareceres jurídicos, não estão directamente sujeitos às normas deontológicas próprias da advocacia - onde se incluem, designadamente, aquelas que prescrevem o dever de sigilo profissional -, uma vez que não exercem tal actividade enquanto advogados;

3. No entanto, ao abrigo do artigo 87.º, n.º 7, do Estatuto da Ordem dos Advogados, os docentes das faculdades de Direito estão vinculados ao segredo profissional sempre que elaborem pareceres jurídicos a pedido de advogados, sobre assuntos a estes confiados, pois estão desse modo a colaborar com o advogado no exercício da sua actividade profissional.

Lisboa, 16 de Dezembro de 2005

BERNARDO DINIZ DE AYALA"


Fonte: Ordem dos Advogados

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