segunda-feira, janeiro 16, 2006

"Escutas telefónicas: what else is new ?", por Dra. Maria de Fátima Mata-Mouros - Juiz de Direito e Doutoranda


"O nosso legislador, ao pensar o sistema, desenhou um edifício muito bem estruturado em termos dogmáticos, mas na prática inexequível. Um edifício alto e vistoso, mas virtual. Só assim se explica que continue a atribuir ao juiz o controlo das escutas enquanto mantém na exclusiva posse da Polícia Judiciária os meios para as executar.

O mais recente escândalo na Justiça deixou políticos e governantes alarmados. Dir-se-ia que foram apanhados de surpresa com as revelações feitas por um jornal a propósito de um processo judicial, cujo nome, apesar de sobejamente conhecido, me dispenso de referir, por ser totalmente irrelevante para o que aqui pretendo dizer. Tal como irrelevante é a verificação, ou não, de erro da parte de uma operadora telefónica. Com ou sem erro, a devassa da vida das pessoas não foi evitada!

Para mim, os dados agora trazidos às primeiras páginas dos jornais, e que logo alcançaram a "dignidade" de caso político, nada têm de surpreendente, a não ser o facto de ainda causarem surpresa a quem manda alguma coisa neste país. E se há três anos a dimensão que o recurso às escutas telefónicas já atingia em Portugal me fez sentir a obrigação cívica de publicar um livro sobre a matéria, hoje preocupa-me especialmente a surpresa geral manifestada entre a classe política em torno de problemas que de há muito, a par de outros juízes e advogados, venho denunciando como constituindo fortíssimas fragilidades do nossos sistema de Justiça. São elas que põem em causa os direitos mais sagrados dos cidadãos.

A verdade é que, de meio de obtenção de prova excepcional, as escutas telefónicas transformaram-se em meio vulgar de investigação, servindo muitas vezes a mera recolha de informação policial. A quem interessam? Quem faz o tratamento da informação assim obtida? Os tribunais não têm programas informáticos de cruzamento de dados. É sabido ser ao juiz que cabe autorizá-las, mas deliberadamente esquece-se que o modelo de processo escolhido pelo nosso legislador não lhe permite imiscuir-se na investigação. Esta é uma das perplexidades que em exercício de funções encontrei no sistema. Hoje não tenho dúvidas em afirmar ser também por isso que há demasiadas escutas em Portugal.

O problema do excesso nas escutas telefónicas não é diferente do problema das facturações detalhadas, das buscas ou de qualquer outro instituto do processo penal: ao presidir a uma busca domiciliária, como a lei lhe sugere, o juiz assegura maior dignidade ao acto, evitando provavelmente algumas gavetas viradas do avesso, mas quanto à selecção do material que a polícia apreende, pouco ou nada pode fazer. Não tem voz no rumo dado à investigação. Como poderá, com justiça, decidir as delicadas questões que o legislador (pelos vistos, para mera tranquilidade da sua consciência) atribui à sua exclusiva competência como, por exemplo, definir o prazo máximo da prisão preventiva? Como lhe será possível negar a possibilidade de prolongamento do inquérito, se não pode rejeitar a idoneidade do meio de prova que os investigadores afirmam ser ainda indispensável ao seu encerramento?

Pretende-se manter o juiz de instrução afastado da investigação para não ferir a sua isenção, mas depois é preciso ir buscá-lo para restringir os direitos dos investigados, necessariamente de forma cega e, de preferência, também surda e muda. Um bibelot, que saiba dizer sim aos investigadores. Ora, manter o juiz como mera figura decorativa no processo, em tempos de tanta escassez nos tribunais, é puro desperdício. A Justiça precisa de muito mais do que isso!

Enfim, a percepção da surpreendente ignorância demonstrada pela nossa classe política em torno destas questões poderia levar-me a ficar aqui horas e horas a repetir exemplos do mau funcionamento da justiça criminal, mas confesso que já não me apetece. E não me apetece porque me soa a falsa a apregoada surpresa sobre as enormidades a que pode conduzir a aplicação do nosso processo penal. Sejamos claros: hoje, em Portugal, só não conhece os verdadeiros problemas da Justiça - que, como se vê, estão muito para além das férias judiciais - quem não quer.

O nosso legislador, ao pensar o sistema, desenhou um edifício muito bem estruturado em termos dogmáticos, mas na prática inexequível. Um edifício alto e vistoso, mas virtual. Só assim se explica que continue a atribuir ao juiz o controlo das escutas enquanto mantém na exclusiva posse da Polícia Judiciária os meios para as executar.

Agora, para além do Governo e do Parlamento, temos ainda uma Missão da Reforma Penal encarregue de ensinar aqueles a definir a política do país para o sector. Mas a grande questão a resolver persiste. Ela continua a passar por se definir e, acima de tudo, assumir, o que se espera em primeiro lugar do nosso processo penal.

Proteger os cidadãos de procedimentos arbitrários ou investigar a verdade sobre a prática criminosa ainda que a elevado preço para a liberdade e direitos daqueles. São interesses que todos procuramos atenuar, mas que, no limite, nunca serão conciliáveis. Na prioridade dada a um, ou a outro, reside a grande diferença detectável nos modelos abraçados pelos países que nos são próximos. Não é possível fugir mais a tomar uma opção, refugiando-nos em construções convenientemente conciliadores de todos os bons princípios, mas apenas no papel, enquanto as práticas se afundam num fervor incriminatório. Afinal, bem ao estilo de um Estado policial, que todas as sensibilidades políticas censuram, mas nenhum poder instituído altera.

What else is new?"

Fonte: Público

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