domingo, janeiro 29, 2006

Discurso de Sua Exa. o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, por ocasião da Sessão Solene de Abertura do Ano Judicial


Supremo Tribunal de Justiça
26 de Janeiro de 2006

Senhor Presidente da República, Excelência,
Senhor Vice-Presidente da Assembleia da República, em representação do Presidente da Assembleia da República,
Senhor Primeiro-Ministro,
Excelências,
Ilustres e distintos Convidados,
Caros Colegas,
Minhas Senhoras e meus Senhores

A abertura do ano judicial é, por si só, um momento de mudança. A mera celebração de um novo ano impõe o balanço do passado, com vista à determinação daquilo que deve alterar-se no futuro.

Mas há hoje mais mudanças a assinalar.

Assim, coincidentemente, alguns de nós exercem períodos finais dos respectivos mandatos, o que anuncia também mudanças na Justiça.

É certo que seria desejável que as instituições tivessem atingido um grau de maturidade tal que fossem quase insensíveis à mudança. Mas, apesar de aqueles que, como eu, poderão retirar-se com a certeza humilde de que a sua ausência não ameaçará o futuro, a verdade é que esse futuro será certamente diferente, por causa da partida.

Entre essas partidas, avulta naturalmente a do Senhor Presidente da República, supremo magistrado da Nação, ilustre jurista e político sempre preocupado com a Justiça, como com todos os problemas que afectam os portugueses.

Atrevi-me a prever que 2005 pudesse ser o último ano em que Vossa Excelência, Senhor Presidente da República, honraria esta Casa de Justiça com a presidência anual a esta sessão solene. Tenho a enorme satisfação de verificar que, por uma vez mais, Vossa Excelência empresta a esta cerimónia não só o elevado patrocínio que todos desejamos, como igualmente nos brinda com a lucidez que sempre dispensa ao sistema judicial. O valor inestimável das intervenções que aqui – como noutros fóruns – dedica à nossa Justiça, apenas confirma a atenção que lhe reconhecemos.

Agradeço, em nome dos magistrados judiciais, a renovada presença de Sua Excelência o Senhor Presidente da República, neste que será, porventura, um dos últimos actos oficiais do brilhante mandato que vai concluir em breve e que o País lhe fica a dever.

Quero agradecer ao Senhor Primeiro-Ministro, por nos dar a honra de corresponder ao pedido que lhe dirigimos. Do mesmo modo, agradeço também a presença do Senhor Vice-Presidente da Assembleia da República, em representação do Presidente da Assembleia da República, a quem aproveito para saudar cordialmente, em nome da magistratura judicial.

Cumprimento igualmente o Senhor Procurador-Geral da República, o Senhor Bastonário da Ordem dos Advogados e Sua Eminência o Cardeal Patriarca de Lisboa, que partilham esta tribuna connosco.

Saúdo também os Senhores Presidentes dos Tribunais superiores, o Senhor Ministro da Justiça e demais destacados membros do Governo e da Assembleia da República, bem como o Senhor Provedor de Justiça e todas as altas individualidades civis e militares que quiseram honrar-nos com a sua presença, assim traduzindo o apreço e a consideração pelo órgão de soberania que os Tribunais Judiciais constituem.

Os meus agradecimentos e uma saudação especial aos eméritos Presidentes e Vice-Presidentes do Supremo Tribunal de Justiça, bem como a todos os Colegas e Excelentíssimos Procuradores-Gerais Adjuntos, que se dispuseram a abrilhantar pessoalmente este acto.

Cumprimento também os Senhores Advogados – com quem sempre mantive as mais cordiais relações ao longo de uma carreira de mais de quatro décadas – assim como os Senhores Solicitadores e Oficiais de Justiça.

Permitam-me, sendo esta a última oportunidade que tenho para o fazer publicamente, que manifeste a minha gratidão aos membros do meu Gabinete, pelo profissionalismo, pelas qualidades pessoais e pela dedicação que sempre puseram no exercício das suas funções. Com muita admiração, o meu bem-haja.

Dirijo ainda afectuosos cumprimentos aos Cidadãos em geral, saudando os Senhores Jornalistas aqui presentes com a missão de informar sobre este acontecimento.

Excelências,
Caros Colegas,
Minhas Senhoras e meus Senhores

Toda a mudança é penosa. A mera apreciação desta realidade cria instintivamente o desconforto próprio da incerteza. Por alguma razão, aliás, do termo grego crisis esquecemos o sentido original de mudança, para retermos a incerteza e a insegurança que lhe são próprias.

Por muito que se afirme o inverso, todos sabem que não é por se estar mal que as mudanças trarão necessariamente melhorias. Toda a reordenação acarreta custos extras e dá lugar a dificuldades que não se previram, mas que terão de ser suportadas.

O desconforto da incerteza é ainda mais evidente quando a mudança – e a expectativa da mudança – recai sobre a Justiça.

As ineficiências do sistema judicial são quase todas conhecidas há anos. As injustiças que essas ineficiências geram são intoleráveis e acumulam-se.

As diferentes análises têm cedido à tentação estéril da enunciação de culpados, gerando inseguranças, desconfianças e recriminações. Esse processo pouco contribuiu para resolver as ineficácias e, em cima disso, fez surgir um crescente descrédito do sistema.

A Justiça é considerada por alguns como o principal pilar do Estado de Direito; e é ponto assente que não há democracia sem justiça.

A chamada «crise da Justiça» é um fenómeno que já se vem notando há vários anos, fundamentalmente pela sua morosidade, mas que se agudizou nos últimos tempos, inserindo-se na mais vasta crise da nossa sociedade, a nível económico, social, cultural e político.

Tenho por injusto culpar os magistrados (salvo raras excepções) pelas insuficiências de um sistema que o poder político não se tem mostrado capaz de melhorar, mantendo os mecanismos que foram pensados para um tipo muito diferente de organização social e económica, de cariz muito mais rural e menos conflituosa, em contraponto com a actual conflitualidade e litigância, com e crime organizado em diversos sectores – social, económico e fiscal – e com recurso a alta tecnologia.

Com tudo isto, disparou um volume de trabalho nos tribunais que não é possível controlar – nem aguentar – sem um enorme esforço raramente reconhecido, se não mesmo desprezado, tratando tudo pela mesma bitola, sem se contabilizarem prejuízos e benefícios. Pelo contrário: no deve-e-haver da nossa actividade, só se cuidou de inserir aquilo a que alguns decidiram chamar «privilégios».

Conhecemos a penúria das Finanças Públicas, mas é escamotear a realidade negar a necessidade de mais magistrados e funcionários judiciais, de mais meios tecnológicos e de instalações adequadas, a par de formação mais específica e especializada.

Tudo isto com a justificação de que não irão ser precisos mais operadores judiciários, em resultado de pequenas medidas avulsas para descongestionar os tribunais e da reorganização do mapa judiciário, com o argumento de que elas se traduzirão em menor necessidade de juízes.

Ora, há nisso uma incongruência: estão previstas medidas que irão alterar a competência territorial, transferindo para a residência do réu a litigância dita de massa e, deste modo, aliviar o trabalho das grandes comarcas, onde estão as sedes das empresas; daqui resulta que esses processos passarão a correr nas comarcas mais pequenas e que, com o óbvio aumento do seu trabalho, elas (ou boa parte delas) não poderão ser extintas. Ou seja: antes de se conhecer a plenitude dessa transferência, parece arriscado falar de alteração do mapa judiciário.

Importa ter presente, portanto, que não é a coragem de tomar medidas, por louvável que seja, que garante a sua adequação ou bondade. É que a coragem – a par da inteligência e da força – pode ser neutra, surgindo como uma qualidade que tanto pode alimentar as acções reprováveis como as virtuosas.

Excelências,
Minhas Senhoras e meus Senhores

«Ano novo, vida nova.» Com este lugar-comum, gostaria de augurar que as vicissitudes de 2005 irão agora dar vez a outro capítulo da nossa vida institucional. Assim a boa-vontade de todos, jornalistas incluídos, possa contribuir para que isso se verifique, quer valorando tudo o que de bom possa acontecer, quer criticando com isenção e conhecimento de causa o que de menos correcto possa surgir.

Se «errar é humano», é com humanidade que deve tratar-se o erro. Ninguém está livre de errar, mas acredito que todos procuramos acertar e dar o melhor de nós próprios a favor de causas que são grandes e nos são comuns.

Como amplamente se sabe, o ano que fica para trás foi pródigo em episódios de desencontro, designadamente, entre Governo e Tribunais Judiciais. Não é frequente – nem deverá sê-lo – que órgãos de soberania discutam na praça pública o seu espaço. Instituições fundamentais do próprio regime, os órgãos de soberania – todos eles, sem excepção – devem pugnar pela valorização da cidadania.

Convém, pois, desdramatizar esses episódios, colocando-os na mera escala que os traduz. Porque, se não é frequente deixar cair a discussão na praça pública, também não vem daí mal ao mundo. É próprio dos períodos de mudanças profundas e que se querem rápidas. É até saudável que, em tais períodos, a discussão se torne tão alargada quanto possível, a bem da riqueza que podemos retirar do variado leque de contributos.

A justiça – sabemo-lo bem – não existe: faz-se. Tanto a justiça que compete aos magistrados administrarem, como a justiça das reformas, quaisquer que elas sejam. Incluindo, portanto, as reformas da Justiça.

Recordemos, a propósito, aquele que é um dos mais antigos e mais repetidos episódios de aplicação da Justiça: o julgamento de Salomão. Ao ordenar que a criança fosse dividida em duas partes e entregue uma metade a cada uma das pretensas mães, o rei impunha uma solução injusta – parece claro. Mas era justificável, na medida em que, impedido de determinar quem era a verdadeira mãe, optava por uma solução de igualdade.

O que tornou o dito julgamento sábio não foi a justiça da decisão, mas a justiça do resultado: é que a verdadeira mãe revelou-se, ao preferir perder o filho a vê-lo morto; permitiu, assim, ultrapassar o desconhecimento do elemento determinante para uma decisão justa.

Nem as regras nem os critérios são suficientes para garantir a justiça das decisões. É o esforço virtuoso de quem decide que há-de conseguir prudentemente construir a solução mais justa: fazer justiça.

Mas importa também reter que a ideia de justiça contém um insanável dilema: por um lado, a Justiça permite à sociedade ser o que esta é, em cada momento; por outro lado, a sociedade acusa incessantemente a Justiça, por esta não ser o que poderia ser.

Por tudo isto se pode dizer que a construção de uma Justiça justa é insaciável. Daí que o debate seja naturalmente aceso e, por vezes, incontornavelmente penoso. Toda a injustiça o mantém aceso e a distância entre a Justiça que temos e a que poderíamos ter torna-o penoso.

O ano que passou é um exemplo notório do que acabo de dizer.

Excelências

Talvez seja bom recordarmos que o sentimento de justiça é inequívoco. Impõe-se-nos, então, que este novo ano sirva para aplicarmos um esforço de simplificar as análises, os métodos e as soluções. Afinal, os princípios e as ideias antecedem ou sucedem à justiça, mas não se confundem com ela, que se limita a introduzir ordem.

O período da vida nacional que atravessamos não se compadece com meias palavras e meias acções. O País precisa desesperadamente de crescer e esta é uma verdade que a todos une e que a todos deve orientar.

Ora, não há desenvolvimento sem justiça. Este é um dado adquirido e pacificamente reconhecido. Há leis, há regras, há normas, é certo. Mas têm de cumprir-se, sem quaisquer excepções ou desvios. Quando não se cumprem, compete ao sistema judicial fazê-las cumprir. Se não forem cumpridas do modo nelas previsto, não há justiça. E, se a Justiça não desempenhar o seu papel, não há desenvolvimento.

É este o círculo e não há como sair dele. Temos, portanto, de corrigi-lo, se ele não satisfaz.

O ano que passou deu-nos alguns sinais, no sentido dessa correcção. O Governo iniciou alterações ao sistema e há que aguardar os seus resultados, que não são imediatos. Algumas medidas ficaram aquém do esperado, outras ficamos sem saber se foram pontuais ou se irão prevalecer, outras ainda considerámos desviantes do que seria desejável e outras mais parecem esquecidas.

Em lugar de repisar o que já todos sabemos prefiro repetir aqui que os magistrados judiciais estão genericamente de acordo com boa parte das medidas necessárias e, mais ainda, com as alterações profundas que o País não está em condições de adiar.

Vem a propósito dizer que o sistema também cuida da mudança no seu seio. No que respeita à qualidade da Justiça decisória – cuja evidência não sai beliscada por uma ou outra opinião desgarrada e suspeitosa entre algumas aleivosias viradas contra o sistema judicial – eu mesmo fiz uma promessa.

Na qualidade de Presidente do Conselho Superior da Magistratura, por inerência do cargo neste tribunal de topo, garanti que iria providenciar no sentido de tornar mais clara e objectiva a avaliação do mérito relativo dos candidatos ao Supremo Tribunal de Justiça.

Está cumprido. Os parâmetros dessa avaliação foram alterados e decorrem já segundo um novo modelo.

Quero crer que podemos hoje estar todos – Governo e Tribunais Judiciais, designadamente – a abrir um ciclo novo que há-de permitir ao País sair da crise em que caímos.

Como sempre – talvez mais ainda do que antes – os magistrados judiciais estão abertos à participação nas reformas, nos modelos que têm de enformar o futuro próximo da nossa sociedade e na aplicação empenhada dos critérios que permitirão contribuir para o ansiado avanço. Por outras palavras: estamos disponíveis, como sempre estivemos, para participar na mudança.

O sucesso das reformas não decorre da razão que assista àqueles a quem cabe decidir. Ele depende, em larga medida, da capacidade de motivar os destinatários – todos os destinatários. Se os magistrados, os advogados e os funcionários – bem como os próprios utentes da Justiça – forem envolvidos nessa mudança, as reformas poderão ter sucesso.

É que a resistência à mudança – de que falei atrás – depende muito mais desse envolvimento do que de qualquer outra razão. E depende pouco da urgência da mudança ou da bondade das medidas. Tal como no sábio julgamento de Salomão, será pelo sucesso que poderá aferir-se a qualidade das decisões.

Acredito, em suma, que seremos mais valiosos por trabalharmos juntos e creio firmemente que este sentimento abrange os órgãos de soberania envolvidos. Se vier a ser assim, também os cidadãos poderão esperar que avancemos mais depressa do que podia parecer.

Mais: em breve, os primeiros resultados poderão traduzir a actual expectativa e ultrapassar o perigoso desalento que tende a alastrar no País. Esta é a mensagem de confiança que quero deixar aqui.

Excelências,
Caros Colegas,
Minhas Senhoras e meus Senhores

Neste ano que hoje formalmente iniciamos, os nossos votos não podem ser outros: que, ao desconforto da mudança, suceda progressivamente a satisfação do sucesso, que há-de agregar todos os esforços para fazermos uma Justiça melhor.

Vou encerrar esta intervenção com a convicção de que 2006 poderá ser uma plataforma para o novo arranque. Porque o princípio da independência de poderes não deve estar no papel solitário de cada um. Antes deve traduzir-se na interdependência, através do trabalho conjunto pelas causas de todos nós, pelas causas verdadeiramente importantes que respeitam à nossa cidadania.

Ninguém beneficia atacando os outros. Proponho, então, que renunciemos à disputa do espaço de cada um, pois o texto constitucional define bem a esfera de cada órgão de soberania, e que consagremos um espaço de encontro para assegurarmos a mudança que todos desejamos.

José Moura Nunes da Cruz

Presidente do Supremo Tribunal de Justiça

Fonte: ASJP

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