terça-feira, janeiro 31, 2006

Discurso de Sua Exa. o Bastonário da Ordem dos Advogados Dr. Rogério Alves, por ocasião da Sessão Solene de Abertura do Ano Judicial


Pela segunda vez dirijo-me a Vossas Excelências, minhas senhoras e meus senhores, nesta minha qualidade de bastonário da Ordem dos Advogados, numa sessão solene de abertura do ano judicial. Em regra, como sabeis, só as coisas boas se assinalam com sessões solenes. E se é verdade que toda a regra tem excepção, esta não é, seguramente, uma excepção à boa regra. Com efeito, ao assinalarmos o novo ano judicial em curso, comemoramos, sobretudo, o nosso Estado de direito democrático, baseado, diz a Constituição da República Portuguesa, na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, na efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência dos poderes (artigo 2.º).

E hoje queremos nós, advogados, enfatizar uma das suas tarefas mais nobres, precisamente a que consiste na garantia dos direitos e liberdades fundamentais (artigo 9.º/2), direitos e liberdades que, de mãos dadas com as garantias que nunca são demais, como também não é de mais recordá-lo, vinculam todas as entidades públicas e privadas (artigo 18./2).

Falo-vos de direitos, liberdades e garantias pessoais, cuja indiscutível consagração legal nos honra, e, além do mais, nos guinda à distinta qualidade de Estado de direito, com assento reservado na elite dos países democráticos, grupo do qual jamais quereremos sair, mas que nos guinda a esse plano sempre sob a condição, chame-se-lhe suspensiva, resolutiva ou outra, de observarmos, no dia a dia, o respeito por esse inseparável, sagrado e intocável trio. Direitos, liberdades e garantias. Quero, nesta ocasião, mencionar alguns de entre os mais importantes, e, já agora, alguns também dos mais esquecidos: o direito à vida, o direito à liberdade, à segurança, à identidade pessoal e à cidadania, a par do direito ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra e à reserva da intimidade da vida privada e familiar (artigos 26 e 27/1) da CRP. Disse alguns dos mais importantes e alguns dos mais esquecidos, mas talvez devesse ter dito, com mais propriedade, alguns dos mais importantes, e, alguns dos mais lembrados, embora, neste derradeiro caso lembrados, infelizmente, por força da sua regular violação, muitas vezes amplamente publicitada, o que agrava largamente os seus inevitáveis malefícios.

O amor aos direitos, liberdades e garantias chega e sobra para justificar esta magnífica cerimónia, e, por isso, justifica também a presença de todos nós neste Salão Nobre do Supremo Tribunal de Justiça. Como sabemos incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, e reprimir a violação da legalidade democrática (artigo 202/2 da CRP), ou, para usar a expressão do Sr. Presidente do STJ, que vi hoje mesmo, com muito gosto, contida na mensagem de apresentação do portal desta nossa casa anfitriã, velar pelos direitos, liberdades e garantias. Comemoramos o dealbar de um novo ano judicial no mês por onde entra o ano civil. Estamos assim numa espécie de “revéillon”. No elenco dos festejos típicos da passagem do ano costuma incluir-se o enterro do ano velho, ritual que se cumpre, além dos mais, com assinalável estrondo. Um estrondo à medida da veemência com que se diz não à continuidade e se diz sim à mudança. Diz-se adeus ao ano velho e saúda-se o ano novo. Esconjuram-se os males passados e projecta-se um futuro melhor. Fazem-se votos de saúde, progresso e prosperidade, para que ao ano novo corresponda vida nova. Ora também nós, aqui e agora, temos de fazer um corte com o ano passado, o tal ano velho. Numa coisa, coisa rara, creio que estaremos todos de acordo. O ano judicial de 2005 não nos deixa quaisquer saudades. Muito pelo contrário. Teve muito de mau, e até de muito mau. Dir-se-ia, recordando alguns episódios e recorrendo à conhecida expressão popular, que, em determinados momentos, foi mesmo mau de mais para ser verdade. Mas, infelizmente, não foi isso que ocorreu, pois mesmo quando foi de mais, também foi verdade. O ano velho não deixa saudades. Deixa marcas, sinais de conflito, alguns destroços e muitas nódoas negras, fruto das escaramuças que escreveram a instabilidade em que vivemos. Um ano de acentuar da crise, que já todos considerávamos grave. Um ano que agravou a perplexidade dos cidadãos, e que não prestigiou a justiça, o seu papel e o seu funcionamento. Muito pelo contrário.

O que me faz uma vez sublinhar esta ideia mestra: temos de virar a página. Temos mesmo de virar a página e preparar o futuro. O país está a olhar para nós. Os cidadãos, as famílias, as empresas, as associações, todos estão a olhar para nós e a esperar de nós muito mais e muito melhor. Aqui tem de se fundear a irreversibilidade do nosso compromisso. Porque se é verdade que o ano velho parte sem deixar saudades, não é menos verdade que deixa também uma grande sede de mudança, uma grande vontade de corrigir, de mudar, de fazer mais e de fazer melhor. A advocacia portuguesa está mobilizada para este bom combate, o combate por uma justiça que enobreça o Estado de direito, e satisfaça os cidadãos, naqueles que são os seus anseios legítimos e as suas justas aspirações. Por isso vamos concentrar toda a nossa energia, enquanto advogados e enquanto Ordem, na consagração de um objectivo capital, que já tivemos ocasião de erigir como guião de todos os nossos esforços. O de que o ano de 2006 seja o ano das soluções. Acabar com as convulsões e avançar com as soluções. Que outra coisa se poderia esperar, afinal, dos advogados e da sua Ordem?

À Ordem compete defender o Estado de direito e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e, ao mesmo tempo, colaborar na administração da justiça, promover o acesso ao conhecimento e aplicação do direito e contribuir para o desenvolvimento da cultura jurídica e da elaboração do direito. Nunca nos esquecemos deste acervo de funções. Por isso estamos presentes em todas as discussões essenciais que se projectam para dentro do novo ano. Estamos na discussão da reforma da lei penal e processual penal. Estamos na discussão da reforma da lei processual civil e do regime de recursos. Aqui impõe-se uma especial vigilância, pela necessidade de preservar esta indispensável ferramenta do sistema. Estamos na discussão da reforma do mapa judiciário. Estamos na discussão da reforma do acesso ao direito. Estamos na discussão destinada ao restauro da acção executiva. Estamos na discussão relativa ao código das custas. Estamos na discussão relativa aos sistemas de formação de magistrados e advogados. Estamos atentos ao que se passa nos tribunais e na investigação criminal.

Avançamos propostas, batemo-nos, publicamente, por elas, falando com todos, debatendo com todos, em espírito de grande abertura, de diálogo, de respeito pelas posições alheias, mas sem nunca perder de vista as soluções que, na nossa óptica, são impostas pela defesa do Estado de direito democrático e sem transigir um milímetro com aquilo que o possa beliscar. A Ordem tem sido e vai continuar a ser assim: Activa, proactiva, pedagógica, incisiva, denunciante mas construtiva, de olhos postos no futuro, esse futuro que quer, como repetidamente o tem afirmado, que seja o de uma justiça sempre mais justa, mais rápida, mais compreensível e generalizada a todos os que dela careçam. Neste ilustre mesa e nesta insigne plateia temos muitas e credíveis testemunhas deste nosso trabalho, que se desdobra em diversos grupos e comissões, em cooperação com os orgãos de soberania, as magistraturas, as associações patronais e sindicais e outras entidades representativas dos cidadãos.

E os advogados? Bom, os advogados são a voz do povo, em cujo nome os tribunais administram a justiça. Nós somos os porta vozes dos sujeitos do processo, que são as pessoas que, por nosso intermédio, pedem justiça. Ciente disso mesmo a Constituição, em boa hora, consagrou o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça. Custou, mas foi, ainda que só após decorridos mais de vinte anos sobre o início da sua vigência. Com efeito a revisão constitucional de 1997 colocou na letra da lei fundamental, aquilo que não poderia deixar de lá estar. Admito, sem conceder, que em alguns de vós, excelências, minhas senhoras e meus senhores, se comece a temer por uma deriva corporativa deste discurso. Creio que não há motivo para tal, mas submeto-me ao vosso criterioso julgamento, alegando, em síntese, o seguinte: Somos nós, os advogados, que damos a conhecer às pessoas, os seus direitos e os seus deveres. Somos nós, os advogados, que esclarecemos as pessoas sobre as formas adequadas de agir, de modo a que possam exercer os tais direitos, sem violar os tais deveres.

Somos nós que apresentamos, em nome das pessoas, as pretensões junto dos tribunais e das demais entidades com poder decisório, conduzindo, por entre labirínticos caminhos processuais e procedimentais, a defesa daquilo que é justo. Somos nós que advertimos as pessoas para os riscos de actos e contratos que podem lesar gravemente a sua vida pessoal e patrimonial. Somos nós quem protege os cidadãos de quem os trata sem respeito pela lei, e quem procura, muitas vezes, reconciliá-los com o Estado de direito, os seus órgãos e agentes, quando o desespero e a descrença assomam. Por isso exercemos uma função essencialíssima, que, para além do mais, exige coragem, determinação, combatividade, a par de elevado sentido ético e de respeito pela lei. Creio que farei o pleno do vosso acordo, se disser que só com advogados livres, corajosos e determinados pode haver boa cidadania. Ora para haver advogados livres, corajosos e determinados, têm de ser asseguradas as imunidades necessárias ao exercício do mandato, cfr, o disposto na CRP.

E quais imunidades, perguntarão V. Exas?

Aí está uma excelente pergunta. Com efeito, à boa vontade da nossa constituição, sempre posicionada na vanguarda do sistema, não correspondeu a lei ordinária, com o estabelecimento das tais imunidades que a lei fundamental manda diz deverem ser asseguradas. Não é aqui o momento asado para discorrer sobre a questão. Mas o ano de 2006 terá de ser, também, o do suprimento deste “déficit” de imunidades, de modo a que se atalhe, desde esta, uma prática daninha e crescente, de amedrontar os advogados, recorrendo, nomeadamente, a participações criminais, por causa daquilo que dizem e escrevem, ao serviço do cabal desempenho da sua função. Vamos denunciar quem quiser, através dos ataques aos advogados, inibir os cidadãos, pois é disso, ao fim e ao cabo, que se trata. E 2006 será também, a par disso, o ano da defesa intransigente do nosso segredo profissional. O nosso segredo profissional representa, na verdade, não um qualquer privilégio profissional, estabelecido a pensar em nós, mas antes a preservação daquilo que nos é dito por aqueles que em nós confiam. O nosso segredo profissional constitui, por isso, uma condição indispensável à existência de uma advocacia apropriada à defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, e só essa pode ter lugar no Portugal democrático.

Excelências, minhas senhoras e meus senhores.
Ano Novo Vida Nova.
Nenhum de nós ignora as dificuldades presentes.
Mas creio que ninguém regateará esforços para que as ultrapassemos com realismo, gradualmente, serenamente, no ritmo imposto pelas muito que há a corrigir, seja nas estruturas, seja nas pessoas.

Este é o ensejo de formular os votos finais, como quem ergue a sua taça na noite de fim do ano, que é, mais do que isso, a noite do novo ano. E estes são os nossos votos para 2006.
Pelo prestígio do poder judicial;
Pelo defesa da independência do poder judicial;
Pela defesa e reforço das garantias do processo criminal, rompendo, decididamente, com os entorses impostos pelo segredo de justiça, e impondo uma regulamentação diferente dos meios atentatórios da liberdade e privacidade das pessoas, mormente as escutas telefónicas e a prisão preventiva;
Pela simplificação das leis processuais, e pela vitória do mérito e da substância sobre a forma;
Mas por uma simplificação que não descaracterize o sistema, amputando-o de elementos essenciais, como são os recursos.

Os recursos sempre foram e continuarão a ser, um meio insubstituível para garantir a justiça das decisões e a qualidade do direito. A experiência aí está, para o demonstrar exuberantemente.

Todos os recursos legalmente previstos, fazem, em regra, sentido. Haverá abuso: que se penalize. Mas não se mate o uso, por causa do abuso. Ninguém proporá que se suprimam as estradas, só porque nelas ocorrem acidentes.

Acredito que 2006 será um ano muito melhor.

É esse o nosso empenhamento, é para aí que convocaremos o nosso entusiasmo. Sendo esta a última vez que V. Exa., Sr. Presidente da República, preside a esta cerimónia, pelo menos nos anos mais próximos, não quero deixar, em nome da Ordem dos Advogados, lhe prestar a homenagem devida, por tudo quanto, ao longo dos seus mandatos, fez pela justiça portuguesa, consagrando-lhe uma atenção crescente, consagrada em variadas e oportunas tomadas de posição, que foram deixando um rasto indelével. Agora que se aproxima o final do mandato, desejo-lhe as maiores felicidades.

Fonte: Ordem dos Advogados

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