terça-feira, janeiro 31, 2006

Entrevista ao Conselheiro Artur Maurício: "Tribunal Constitucional não precisa de reformas"


Artur Maurício entende que o conceito do “magistrado politicamente puro” está “de todo” afastado da realidade e refere que “a composição do Tribunal Constitucional adequa-se à natureza, simultaneamente, jurisdicional e política deste órgão”. Em entrevista ao JUSTIÇA & CIDADANIA, o presidente do Tribunal Constitucional disse acreditar que “o controlo das campanhas eleitorais só poderá ser inteiramente eficaz quando os partidos políticos assumirem uma posição de total transparência quanto aos seus gastos e à proveniência das suas receitas e cumprirem lealmente os deveres de colaboração com a entidade fiscalizadora que a lei lhes impõe”.

Num tempo em que se intensificam as políticas securitárias de combate ao crime organizado e ao terrorismo, o Tribunal Constitucional é o garante dos direitos, liberdades e garantias, o «guardião» da Constituição?

O tempo que atravessamos é de facto um tempo de riscos. Riscos desde logo quanto à segurança dos cidadãos, mas, por via dos meios com que se pretende preveni-los ou reprimi-los, riscos também para os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Liberdade e segurança são uma vez mais os valores que se confrontam num aparente conflito que, potenciando o surgimento e difusão de correntes radicais, acaba por pôr em causa um ou outro desses valores essenciais da vida democrática.
Só há um meio de resolver a suposta antinomia - procurar, através da ponderação dos interesses e valores constitucionalmente tutelados em confronto, um ponto de equilíbrio em que nem a afectação da Liberdade atinja níveis lesivos da dignidade da pessoa humana ou redutos nucleares dos direitos fundamentais dos cidadãos nem o Estado se desarme dos poderes que são essenciais para garantir a segurança da sociedade.É na descoberta desse ponto de equilíbrio que se situa, nas palavras do meu saudoso antecessor, conselheiro Nunes de Almeida, “a tarefa mais nobre e específica de uma jurisdição constitucional”.
Creio poder afirmar, sem reticências, que o nosso Tribunal Constitucional tem sabido cumprir essa tarefa, com zelo e proficiência, através de um debate profundo de cada caso enriquecido pela diversidade de mundividências dos seus juízes. Revela-o, claramente, a numerosa jurisprudência que tem produzido, p. ex., sobre os direitos dos arguidos e os meios de prova em processo penal, ou seja, numa área em que mais directamente se equacionam interesses conflituantes do Estado e do cidadão. E não vejo que, no actual quadro constitucional, o Tribunal possa deixar de ser o «guardião» da Constituição e sê-lo-á até, se possível, com maior atenção a procedimentos que atentem contra os direitos dos cidadãos, sem, no entanto, nunca esquecer que na mesma Constituição se tutelam valores que por vezes impõem uma limitação, mas sempre proporcionada, daqueles direitos.

Alguns sectores da magistratura defendem a integração do Tribunal Constitucional no Supremo Tribunal de Justiça. Que pensa desta posição? Seria vantajoso para os cidadãos? E para a realização da Justiça?

Se essas vozes de alguns sectores da magistratura se determinam pelas vantagens para os cidadãos e para a realização da Justiça elas laboram - e digo-o convictamente - em erros de avaliação e de prognose.
É evidente que não há modelos de justiça constitucional perfeitos. Cada País escolhe o que considera mais adequado e, a nível europeu, encontramos modelos idênticos ao nosso (são os casos, mais próximos, de Espanha e Itália) e outros em que a justiça constitucional é atribuída a uma secção dos Supremos Tribunais.
Devo aqui salientar que nos primeiros anos subsequentes à criação do Tribunal Constitucional se assistiu a um certo mal estar da magistratura judicial relativamente ao surgimento de um órgão jurisdicional autónomo com competência para fiscalizar a constitucionalidade das normas (ou de uma sua interpretação) aplicadas pelos tribunais, incluindo os supremos tribunais das jurisdições comum e administrativa. Temia-se, sem razão, a subalternização das mais altas instâncias dessas jurisdições, sujeitas a terem que reformar as suas decisões em conformidade com o julgado pelo Tribunal Constitucional em matéria de constitucionalidade normativa. A verdade, porém, é que essas altas instâncias mantêm, por inteiro, as suas competências decisórias relativas aos casos que julgam, reservando-se para o Tribunal Constitucional o julgamento final relativo à constitucionalidade das normas aplicadas. E a este propósito o Tribunal tem mantido um procedimento de respeito escrupuloso das competências próprias dos tribunais judiciais, administrativos e fiscais, exigindo deles idêntico respeito (afinal um respeito pela Constituição) pelas competências do Tribunal Constitucional.
Esse período, que teve, por vezes, aspectos menos dignificantes, está hoje ultrapassado; ressuscitar a polémica sem argumentação válida só servirá para criar artificialmente um novo problema na administração da justiça, quando tantos são - e reais - aqueles que hoje a Justiça tem que enfrentar e resolver.
A opção foi feita pelos nossos constituintes com base numa ponderação séria das vantagens e desvantagens dos vários modelos possíveis e a prática de cerca de vinte e cinco anos não a tem posto em causa, nem quanto à qualidade dos julgamentos do Tribunal Constitucional, nem quanto à celeridade dos processos, hoje muitas vezes decididos em um ou dois meses.

O Tribunal Constitucional tem sido acusado de, na sua composição, possuir uma forte vertente político-partidária, derivada do facto de dez dos seus juízes serem designados pela Assembleia da República. Estas críticas têm razão ou não qualquer sentido?

A composição do Tribunal Constitucional adequa-se, a meu ver, à natureza, simultaneamente, jurisdicional e política, deste órgão.
A «acusação» que refere radica num conceito – de todo afastado da realidade - de magistrado politicamente «puro». Cada magistrado, como qualquer cidadão, tem o seu modo próprio de ver o Mundo e a Justiça que não desaparece, por uma qualquer mágica, quando se interpreta e aplica a lei. E isto é tanto mais assim quando as normas a aplicar se reportam a conceitos abertos susceptíveis de integração diversificada.A eleição de dez juízes pela Assembleia da República significa que eles têm o voto de pelo menos dois terços dos deputados presentes, desde que superior à maioria dos deputados em efectividade de funções, o que confere aos magistrados eleitos uma legitimidade democrática incontestável. Naturalmente que a confiança assim demonstrada assenta também nas afinidades diversificadas daquelas mundividências com as que são próprias dos deputados proponentes e votantes. Mas isso tem a virtualidade de permitir ao Tribunal uma visão plural das questões de constitucionalidade a decidir, o que é, na minha opinião, absolutamente necessário e factor de enriquecimento do debate.
Dito e assumido isto, é, no mínimo, abusivo confundir esta realidade com qualquer “fidelização partidária” que, pura e simplesmente, não existe. Os juízes não representam os partidos, nem são deles correias de transmissão, gozando de uma independência que sai reforçada pelo facto de só poderem cumprir um mandato, sem hipóteses, pois, de renovação.
Muitas das decisões do Tribunal comprovam essa independência, em particular as relativas ao contencioso eleitoral, onde mais directamente se poderia sentir tal suposta partidarização e que são, na grande maioria de casos, votadas por unanimidade.E não devo deixar de salientar que nunca houve notícia de qualquer pressão, directa ou indirecta, dos partidos sobre os juízes.
Enfim, também da minha experiência ao longo de oito anos de exercício de funções resulta a convicção de que o equilibrado pluralismo do Tribunal, expresso nos debates, sempre serenos e civilizados, das questões, reforça a credibilidade dos seus julgamentos.

O Tribunal Constitucional é depositário das declarações de rendimentos dos titulares dos cargos públicos, bem como dos orçamentos e constas das campanhas eleitorais. Face à especificidade própria destas questões, não seria vantajoso atribuir estas funções a outro órgão? Eventualmente ao Tribunal de Constas?

Foi a Assembleia da República que assim o decidiu e temos que respeitar a decisão, goste-se ou não desse tipo de competências. O Tribunal exercê-las-á com o mesmo empenho e rigor com que exerce todas as outras, sendo certo que, no caso, a decisão política revela bem a confiança que os nossos parlamentares têm na isenção do Tribunal Constitucional. Admito, no entanto, que as competências em causa pudessem ser atribuídas a outro órgão jurisdicional, nomeadamente ao Tribunal de Contas.

O Tribunal Constitucional possui os meios necessários para proceder à análise e controlo das contas das campanhas eleitorais?

O controlo das campanhas eleitorais só poderá ser inteiramente eficaz quando os partidos políticos assumirem uma posição de total transparência quanto aos seus gastos e à proveniência das suas receitas e cumprirem lealmente os deveres de colaboração com a entidade fiscalizadora que a lei lhes impõe. Não há, também aqui, poderes de fiscalização indefraudáveis.
O que a este respeito se deve, porém, evidenciar são os avanços significativos que a legislação vigente veio permitir no sentido de um melhor controlo das contas dos partidos e das campanhas eleitorais, com a criação da Entidade das Contas e dos Financiamentos Políticos, órgão independente de apoio ao Tribunal Constitucional e a instituição de mecanismos de fiscalização mais eficazes, que, no entanto, não prescindem da colaboração das entidades fiscalizadas.
Penso que o resultado das primeiras auditorias efectuadas de acordo com essa legislação irá corresponder às nossas expectativas, sendo de justiça salientar o enorme empenhamento com que a Entidade das Contas tem exercido as suas funções e o carácter, também pedagógico, da sua intervenção. E posso também afirmar que há já sinais de uma maior consciencialização dos partidos políticos, em geral, para a necessidade cívica do rigor das suas contas, alimentadas, em grande parte, pelo dinheiro dos contribuintes.
A experiência que se começa a adquirir ajuda, ainda, a revelar algumas insuficiências legislativas, mas o que sobretudo importa assinalar é que estamos no bom caminho, um caminho longo e difícil, mas absolutamente imprescindível para a transparência e credibilidade da nossa vida política.

Uma das funções do Tribunal Constitucional é a de verificar a legalidade da constituição dos partidos e ordenar a sua extinção. Neste momento, quantos partidos políticos têm existência legal, em Portugal?

Em Portugal têm actualmente existência legal 17 partidos políticos. 18 partidos políticos viram cancelados os seus registos por dissolução, requerida pelos interessados, ou foram extintos pelo Tribunal Constitucional.

Não seria vantajoso, para a democracia, que os partidos políticos fizessem «prova de vida» de cinco em cinco anos?

A Lei n.º 2/2003 estabelece as situações em que pode ser decretada a extinção de um partido político em termos que me parecem equilibrados. O legislador ordinário, ao regular matéria tão sensível, deve, em obediência aos ditames constitucionais, ter em conta o princípio fundamental da liberdade de actuação dos partidos políticos, a quem compete definir a sua própria estratégia de intervenção na vida política. E foi até por isso que o Tribunal Constitucional se pronunciou já, em fiscalização preventiva de constitucionalidade, pela inconstitucionalidade de uma norma que previa a extinção de partidos políticos que não concorressem consecutivamente a duas eleições para a Assembleia da República, considerando, em síntese, que se tratava de uma limitação desproporcionada daquele princípio. Mas é óbvio que, sendo os partidos políticos instituições que concorrem para a formação da vontade popular e a organização do poder político, pode o legislador estabelecer - como estabelece - causas de extinção dos partidos derivadas da falta de participação em eleições, que são os actos mais relevantes de expressão da vontade popular. A nossa Constituição não quer, seguramente, «partidos-fantasma» cuja criação ou manutenção se justifique apenas para a obtenção de direitos que o estatuto jurídico dos partidos lhes confere. De todo o modo, a lei prevê também a extinção de partidos que tenham menos de 5.000 filiados, controlo esse - aliás de difícil execução - que deverá ser feito regularmente (com um prazo máximo de 5 anos) pelo Tribunal Constitucional.
Em suma, não vejo necessidade de medidas restritivas da liberdade de actuação dos partidos mais rigorosas do que as actualmente vigentes.

O nosso sistema processual é demasiado garantístico, ou entende que se deveria reduzir a possibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional?

Se se quer referir ao sistema processual através do qual se pode aceder ao Tribunal Constitucional, entendo que ele não é demasiado «garantístico». Os pressupostos processuais do recurso para o Tribunal Constitucional em fiscalização concreta de constitucionalidade e de legalidade são rigorosos e, tendo em conta que se trata da única via por que os cidadãos podem aceder ao Tribunal, não creio que eles devessem ou pudessem ser mais restritivos.
O que acontece, como aliás em outros tribunais, é o uso desviado, temerário ou dilatório de meios de impugnação, no caso, do recurso de constitucionalidade. A percentagem de recursos em que o Tribunal não conhece do mérito da questão é muito elevada e não mostra tendência para decrescer. Penso que a lei deveria facultar ao Tribunal mais meios (tem alguns) para sancionar a litigância temerária ou de má-fé, abrangendo os próprios mandatários forenses. Mas são sempre medidas politicamente difíceis que suscitariam de imediato a crítica de atribuírem mais poderes aos juízes. E o momento actual da Justiça não será como se sabe, o mais favorável para esse tipo de medidas...

No quadro de reformas do sistema de Justiça, haverá necessidade de reformar o Tribunal Constitucional, ou o quadro de competências e de funcionamento corresponde às necessidades do nosso sistema jurídico?

As profundas reformas de que a Justiça carece não passam, nem de perto nem de longe, pela reforma do Tribunal Constitucional. Ele é, como disse, um tribunal prestigiado e as graves críticas que o nosso sistema de Justiça vem sofrendo nos últimos tempos têm, em geral, poupado o Tribunal Constitucional. E convirá lembrar, uma vez mais, que algumas das suas decisões foram determinantes para eliminar, em casos concretos, lesões graves dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos provocadas por interpretações normativas contrárias à Constituição.

O respeito pela Constituição é uma demonstração de civismo e de clareza nas relações entre os poderes. Entende como útil que a vertente cívica e constitucional seja aprofundada nos diversos graus de ensino do Direito?

Que o ensino – e porventura não só o universitário – deve promover e aprofundar a aprendizagem da Constituição, como repositório dos valores e bens fundamentais da nossa sociedade, não tenho quaisquer dúvidas. Penso, nomeadamente, no Centro de Estudos Judiciários, onde, pelo menos até há bem pouco, se não dava a importância devida ao Direito Público em geral e ao Direito Constitucional em particular. Todos os magistrados – e não só os do Tribunal Constitucional – devem ter um profundo conhecimento do Direito Constitucional, pois são eles que, num sistema de controlo difuso de constitucionalidade, aplicam, em primeira linha, a Constituição.Já quanto ao que qualifica de «vertente cívica», tenho dúvidas que ela se aprenda, dominantemente, numa disciplina escolar...

A nossa Constituição pode e dever ser melhorada, simplificada, adaptada aos novos tempos, ou tem espaço de manobra para corresponder ao desenvolvimento dos direitos de terceira geração e às limitações a outros direitos que se admitiam intocáveis?

Não sendo a Constituição uma «bíblia», entendo, no entanto, que, atingido um certo grau de estabilização democrática, o poder de rever o texto constitucional deve ser usado com parcimónia. Não é a Constituição que tem impedido ou dificultado o desenvolvimento e o progresso económico e social do nosso País. Ela é generosa nos direitos individuais, sociais, económicos, culturais e políticos que consagra e ponderada nos limites que lhes impõe. E não deve ceder-se à perigosa tentação de razões conjunturais, securitárias, económicas ou outras, para a modificar ao sabor dos interesses de momento.
No que respeita aos chamados direitos de terceira geração, penso que eles já têm acolhimento e protecção bastante no texto constitucional. O défice situa-se, porventura, em sede de direito ordinário e talvez mais ainda na efectiva aplicação do direito vigente.

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QUEM É...

Artur Joaquim de Faria Maurício nasceu a 30 de Junho de 1944, em Lisboa. Licenciou-se em Direito pela Faculdade de Lisboa, em 1966, e foi subdelegado do Procurador da República, em 1967, passando a delegado, um ano depois, em Alcácer do Sal, desempenhando ainda idênticas funções em Loulé e Vila Franca de Xira. Em 1976, foi Procurador da República junto do Tribunal da Relação de Lisboa, desempenhando depois as funções dos ministérios do Trabalho (1978), da Saúde (1979) e da Educação (1981). Depois de procurador-geral adjunto no Supremo Tribunal Administrativo (1983) e no Tribunal Constitucional foi ainda juiz-conselheiro do Supremo Tribunal Administrativo (1989) e do Tribunal Constitucional. Em 2004, foi então nomeado presidente do Tribunal Constitucional.


Fonte: JUSTIÇA & CIDADANIA (Caderno do jornal "O Primeiro de Janeiro")

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