quinta-feira, dezembro 22, 2005

Poder a mais no fisco

A ideia parece boa: antes de os devedores de impostos saberem que o são, arrestam-se os seus bens para impedir que transfiram a propriedade destes para terceiros - e assim se declararem falidos para não terem de pagar o que devem.

Parece boa ideia, mas não é. O assunto é delicado, e exige análise cuidadosa.

Olhado à primeira vista, a decisão parece louvável. Melhor: para todos os que pagam impostos a tempo e horas, uma medida como esta é produto de uma justiça elementar. Só os mais ricos manipulam a propriedade dos seus bens com a ilusão de um Coperfield: um dia andam de Ferrari, no outro apresentam uma declaração de rendimentos que não vai além do salário mínimo. Por isso, é bom que lhes bloqueiem o acesso aos bens antes de perceberem que foram caçados.

Olhada à segunda vista, esta evidência complica-se. Os mais ricos – aqueles que têm bens em número suficiente para se preocuparem seriamente com a melhor forma de os protegerem – fazem-no à partida. Isto é, se abrem uma empresa, se compram um Ferrari, colocam tudo de imediato num qualquer paraíso fiscal (legal). O que reduz a capacidade de apanhar os verdadeiros profissionais da fuga ao fisco.

E assim sendo, sobram os outros. É verdade: há ainda quem ganhe muito dinheiro sem se preocupar com planos de fuga. Ganham-no, evitam o fisco e esperam que a máquina das finanças trabalhe como até aqui: parada. Esses, portanto, são os alvos desta estratégia - e não os mais ricos.

E se são esses os alvos, a máquina fiscal é imediatamente obrigada a fazer um ‘down-grade’ do seu ângulo de focagem. Em vez de apontar aos que, sendo muito ricos, fogem ao fisco, quer apontar aos profissionais liberais. Aqueles que, não tendo vínculo directo a um patrão, podem manejar com mestria a passagem dos célebres recibos verdes. E aqui começam os problemas.

Invertendo o ónus da prova assim tão por baixo, a burocracia da máquina fiscal vai obrigá-la a apontar a tudo o que mexe nesse nível salarial. E aí, como sabem todos quantos pagam impostos, há uma margem de discussão considerável entre o que é taxável e o que pode ser dedutível.

Com esta nova regra, essa possibilidade de discutir termina no poder absoluto do Estado. Antes de ouvirem os argumentos do contribuinte, congelam a propriedade dos seus bens - e então, só aí, lhes permitem avançar para o contraditório.

O que empurra o raciocínio para o maior dos perigos: a justiça portuguesa não funciona. Uma decisão errada do Estado pode demorar anos a ser invertida em Tribunal - e esses anos, com estas novas regras, serão passados sem acessos aos bens. É um verdadeiro corredor da morte fiscal, com os contribuintes impedidos de aceder ao que é seu antes de serem julgados.

O assunto é delicado, repita-se. Mas de todos os direitos que a democracia consagrou, há dois que são fundamentais: a presunção de inocência e a protecção da propriedade privada. Cruzar essa linha - ainda que aparentemente para apanhar os maus da fita - deixa desarmados os cidadãos. Sobretudo os inocentes.

Por Martim Avillez Figueiredo, in www.diarioeconomico.com

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