domingo, dezembro 18, 2005

Falta "apoio judicial" às comissões de protecção de crianças e jovens


Estado não defende os técnicos se as suas decisões forem contestadas no tribunal

Há uma "situação de emergência infantil em Portugal" é assim que as comissões de protecção de crianças e jovens que estão no terreno - e lidam com casos de maus tratos e negligência todos os dias - classificam o seu próprio trabalho. Os técnicos sentem-se inseguros perante uma lei que está em vigor desde 1999 e nunca foi regulamentada, pela ausência de representantes do Ministério Público nas comissões e, principalmente, pelo facto de o Estado não os defender em tribunal caso alguém conteste as decisões tomadas enquanto representantes desse mesmo Estado.

"Isso não está realmente previsto na lei", concorda Armando Leandro, presidente da Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Risco, "e é algo que vai ser considerado nos futuros encontros e discussões que tivermos com os técnicos". As comissões restritas, as primeiras a avaliar cada caso, não têm qualquer poder judicial - são compostas por representantes sociais da comunidade (técnicos da solidariedade social, saúde, educação, autarquias, forças de segurança, etc.). Qualquer medida tomada tem, por isso, de ter a concordância dos pais da criança em questão.

As comissões podem, no entanto, decidir enviar o caso para o Ministério Público com a indicação de "retirada urgente" de tutela, caso suspeitem de agressões ou violência sexual. E "se os pais quiserem processar-nos por isso, respondemos perante a lei enquanto cidadãos e com os nossos próprios meios, não é a comissão que se senta no banco dos réus", explicaram ao DN vários técnicos.

Esta ausência de retaguarda poderá condicionar algumas iniciativas das comissões, mas não só. "As pessoas não imaginam o tempo que se perde a fazer o relatório para o Ministério Público com toda a instrução do processo. Exigem tudo, até impressões digitais. E às vezes não há tempo a perder tentam-se outras vias mais rápidas", referem as mesmas fontes.

Além da falta de "apoio judicial", há outros problemas a que o caso da bebé de Viseu - internada já em coma devido a maus tratos continuados e agressões sexuais, apesar de estar a ser seguida pela comissão local - veio dar relevância. A Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, datada de 1999, ainda não foi regulamentada em aspectos essenciais como as medidas de apoio aos pais e família ou a colocação de crianças em famílias de acolhimento e instituições. "Vamos tratar disso o mais depressa possível. É urgente fazê-lo", garante Armandro Leandro ao DN.

Insegurança. As sucessivas mudanças de Governo terão sido uma das razões do atraso na regulamentação, mas a verdade é que isso "trouxe muita insegurança e dúvida. Concordo com o espírito, mas a letra da lei deixou-me muito inquieto", explicou ao DN o cónego Arménio Lourenço, que durante 12 anos pertenceu à comissão de protecção de menores de Viseu. A tipificação dos crimes que devem ir para o Ministério Público é uma das necessidades mais sentidas, assim como a dotação das comissões "com os meios materiais e técnicos necessários, não podem ser só fruto de um certo voluntariado e boa vontade", salienta o mesmo responsável. Recorde-se que os técnicos que integram as comissões não trabalham em exclusividade acumulam as funções com os cargos de origem. E há concelhos que têm apenas um técnico para seguir de perto 200 famílias. No caso de Viseu, a comissão restrita - que lida directamente com os casos - tem cinco elementos e 200 processos entre mãos. O carro utilizado pertence à autarquia e as instalações também são divididas com outros serviços camarários.

A terceira grande lacuna é sentida com a ausência de representantes do Ministério Público (MP) nas comissões - antes da lei de 1999 estavam presentes. "Podem não ter tanta sensibilidade para gerir este tipo de casos, com crianças muito pequenas e uma grande dose de afectos e traumas, mas conhecem as leis", refere o cónego, também director do Lar de Santo António, em Viseu, vocacionado para o internamento de menores em risco. Apesar do estigma de autoridade que os técnicos reconhecem ao MP e de concordarem que "tem de ser a comunidade a resolver os seus problemas", sentem a falta desse suporte jurídico.

"Estamos a trabalhar com a Ordem dos Advogados para que possa existir um apoio mais constante às comissões", revela ao DN Armando Leandro - relembrando no entanto que, actualmente, o Ministério Público de cada zona já deve fazer um trabalho de acompanha- mento dos técnicos. A última palavra é deles "O Governo não devia nomear uma comissão para investigar o que correu mal no caso de Fátima Letícia, mas sim para avaliar toda a lei e avançar de uma vez com a regulamentação."

Passos até ao Ministério Público

denúncia. O poder das comissões está directamente relacionado com o consentimento das famílias. Se houver perigo imediato para o menor e não existir acordo logo ao início, se este for quebrado ao fim de algum tempo ou se não vier a ser celebrado no prazo de seis meses por divergências várias, os técnicos decidem enviar o caso para tribunal.

instrução. As comissões referem que a elaboração do relatório a enviar para o Ministério Público é um processo moroso e complicado. O MP pode também intervir à revelia dos técnicos, sempre que considere que a decisão da comissão de protecção é ilegal ou inadequada à promoção dos direitos ou à protecção da criança ou do jovem menor.

intervenção. Quando o MP propõe a abertura de um processo, pode sugerir medidas como a retirada da criança do seu meio para uma família de acolhimento ou para uma instituição ou a inibição do poder parental. A decisão cabe ao juiz, podendo ser aplicada de imediato e com carácter provisório. Se a família decidir retaliar judicialmente pode processar as comissões de protecção de menores pela decisão de envio do processo para o MP, situação em que os técnicos alegam não ter direito a qualquer defesa do Estado.

in www.dn.sapo.pt


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