quarta-feira, dezembro 28, 2005

"Há falhas na sinalização de crianças em risco"


Armando Leandro, responsável pela protecção de menores, defende criação de base de dados.

A morte de duas crianças em Vila d'Este, em Gaia, no passado dia 23, e o internamento em estado muito grave de uma bebé, vítima de maus-tratos severos infligidos pelos progenitores, no passado dia 10, relançam a polémica em torno do acompanhamento de menores em Portugal. Nesta entrevista, Armando Leandro, presidente da Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Risco, defende a criação de uma base de dados para a detecção das crianças de risco, admite que a falta de comunicação entre valências prejudica esta mesma sinalização, promete investimento na formação de técnicos para as comissões de protecção ; e acredita que dar oportunidade de recuperação à família biológica, em tempo útil, é um dever.

[Jornal de Notícias] As meninas que morreram no incêndio de Vila d'Este, em Vila Nova de Gaia, estavam referenciadas como crianças de risco na comissão de protecção local?

[Armando Leandro] Não. As meninas de Gaia não estavam sinalizadas como crianças de perigo e, portanto, não havia legitimidade para a intervenção da comissão restrita. Só se pode intervir em situação de perigo. E tem que haver uma sinalização concreta de perigo actual.

Fátima Letícia, a bebé que entrou no Hospital Pediátrico de Coimbra, no passado dia 10, vítima de maus-tratos severos, incluindo abusos sexuais, estava a ser acompanhada pela comissão. O que é que falhou?

Não lhe posso dar nenhum pormenor, na medida em que está em curso uma investigação para o aprofundamento da situação. Não é legítimo neste momento. Aguardo o resultado das averiguações e, depois, poderei então fazer as devidas declarações.

Talvez todos queiramos perceber a razão pela qual a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) de Viseu não se inteirou da história daquela família, já que o pai da bebé, presumível autor dos abusos, estava referenciado na Polícia por crimes da mesma natureza.

Disse já que nada indiciava uma má intervenção por parte da comissão e mantenho, de acordo com os dados de que disponho, essa posição. Neste momento, não é legítimo fazer declarações, na medida em que se aguardam ainda os resultados.

Os técnicos das CPCJ sabem fazer um diagnóstico familiar?

Creio que sim. É necessária, naturalmente, uma maior formação. Está em elaboração um plano geral de formação. Compreenderá que são os elementos das comissões de protecção, técnicos de vários serviços, da Saúde, da Segurança Social, da Educação, que podem elaborar esse plano, o que não quer dizer que não haja necessidade de um aprofundamento da sua formação.

Tem ideia de quanto dinheiro é que o Estado investe na formação destes técnicos?

Não tenho ideia precisa, neste momento. Mas posso dizer-lhe que tem investido, designadamente em cursos de formação. Já houve dois na Universidade Autónoma de Lisboa, sendo que um ainda está a decorrer; e houve um outro na Universidade do Minho, que acabou recentemente. Mas, insisto, está a ser elaborado um plano mais alargado de formação.

Tem conhecimento de que alguns destes técnicos põem dinheiro do próprio bolso nas despesas correntes das comissões?

Há uma pequena quantia de fundo de maneio, conforme a lei estabelece, para que sejam superadas dificuldades e cobertas despesas.

O que é que se passa, então, para que, em dois anos, quatro crianças tenham morrido, vítimas de maus-tratos, infligidos pelos próprios pais (a Catarina, a Vanessa, a Joana e o Daniel)? O que é que está a escapar?

Em primeiro lugar, é indispensável uma maior prevenção primária das situações, pela cultura e pela responsabilização. É necessário que haja sinalização precoce, a cargo de todas as pessoas, falo também do cidadão comum, e de todos os serviços por onde passam as crianças. Depois, tem que haver coordenação das diversas valências, mesmo antes dos casos chegarem às comissões. Ainda assim, há imponderáveis, que nenhum sistema consegue.

.....Admite, portanto, falhas na sinalização...

Sim, admito falhas na sinalização, devidas à falta de cooperação e coordenação das diversas valências competentes.

Acredita que uma base de dados poderia facilitar as coisas?

Sim, acredito que deve haver uma monitorização das informações relativamente às crianças em risco que passam pelos diversos serviços, para que seja mais fácil e mais eficiente a sinalização e prevenção, desde que se respeite a intimidade da criança e da sua família. Aliás, é um objectivo que está a ser estudado, no domínio da Segurança Social.

O artigo 8 da Declaração dos Direitos da Criança diz que "a criança figurará, em quaisquer circunstâncias, entre os primeiros a receber protecção e socorro". Parece-lhe que as crianças têm sido uma prioridade?

Antes havia menos casos detectados. É prioritário, mas, naturalmente, não é, nunca será o bastante; e é indispensável promovermos a criança como prioridade ao nível da cultura geral e ao nível da intervenção de todos os responsáveis. Não devemos, nunca, considerar-nos satisfeitos com o nível da prioridade que damos à criança. Mas há caminhos importantes, desde logo o reconhecimento destes direitos e um sistema suficientemente coordenado e articulado, em termos democráticos.

Ainda sobre prioridades, a verba para as comissões vai aumentar para este próximo ano?

Sim, o orçamento é razoável, tendo em conta a situação económica e financeira do país; e haverá verbas para a formação.

Quanto? Falou-se em mais 30%, é verdade?

Não tenho presente. Mas há verbas para formação e para a colocação de novos técnicos que vão reforçar a componente técnica das CPCJ.

A promessa foi de 107 técnicos, correcto?

São mais alguns, poderá chegar aos 130, ou mesmo aos 140.

O Executivo promete mais técnicos, mas parece que os pareceres destes não são muito tidos em conta pelos juízes, que optam, quase sempre, por devolver as crianças às suas famílias. Haverá um "endeusamento" da família biológica?

Os magistrados portugueses têm uma formação inicial no Centro de Estudos Judiciários e eu tenho confiança na sua intervenção. Mas, sobre esse aspecto, naturalmente, que deve ser dada a prioridade à família biológica. É um princípio fundamental, devendo dar-se a possibilidade de recuperação, em tempo útil, da função parental, quando ela não comprometa a segurança, a educação e o desenvolvimento social da criança. Não pode haver posições inamovíveis, tem de haver equilíbrio na apreciação dos casos. Tem de haver um diagnóstico interdisciplinar, o encaminhamento feito de acordo com esse diagnóstico e, sempre que é possível, em tempo útil, sem perigo para a criança, deve apostar-se na recuperação da função parental. O ideal é que ao sangue corresponda o afecto. Naturalmente, essa é a prioridade. Quando não é possível, tem que se encontrar outras soluções, designadamente a adopção, quando, obviamente, viável.

Qual o principal objectivo da regulamentação da lei de protecção de menores?

O principal objectivo é dar intrumentos mais seguros para a aplicação mais homogénea das medidas, em todas as comissões. Isto para uma maior clareza sobre os direitos e responsabilidades dos intervenientes. Facilitará, por exemplo, que num acordo de promoção, em que se aplique a medida de apoio junto aos pais, fiquem esclarecidas as obrigações destes e as das entidades a quem compete esse apoio.

in Jornal de Notícias

Sem comentários: