quarta-feira, dezembro 21, 2005

Ficheiros dos tribunais nas mãos do Governo


Bases de dados informáticos da justiça não têm enquadramento legal.
A falta de enquadramento dos ficheiros informáticos foi denunciada pela Comissão Nacional de Protecção de Dados.

O programa informático utilizado nos tribunais para acompanhamento dos processos judiciais, denominado H@bilus, não tem enquadramento legal. E, embora guarde muita informação em segredo de justiça, da responsabilidade do poder judicial, o seu controlo está nas mãos do poder político e sem protecção contra piratas informáticos.

"Além da falta de enquadramento legal do sistema informático da justiça, gerido pelo poder político, há ainda a questão da segurança..."

Perante a possibilidade de os políticos acederem ao manancial de dados confidenciais, juízes e oficiais de justiça exigem a separação de poderes nesta matéria. Os procuradores apelam ao cumprimento da legalidade. O bastonário da Ordem dos Advogados quer o assunto debatido na praça pública.

É que em causa estão ficheiros informáticos dos tribunais com dados sensíveis sobre centenas de milhares de portugueses, nomeadamente dossiers do Ministério Público (MP) em segredo de justiça relativos a actividades criminosas, à tutela de menores e a todo o contencioso patrimonial do Estado.

Estes ficheiros do H@bilus estão reunidos no servidor de cada um dos tribunais, que, por sua vez, está ligado a um computador central controlado pela Direcção-Geral da Administração da Justiça (DGAJ). Esta entidade tem, assim, possibilidade de acesso a todos os dados. Inclusive aos confidenciais.

Mas não é o único organismo governamental a ter aquela faculdade. O mesmo acontece com o Instituto das Tecnologias de Informação na Justiça, uma vez que controla a rede informática dos tribunais onde está implantando o H@bilus. Ambas as entidades são tuteladas pelo Ministério da Justiça (MJ).

"Também aqui a separação de poderes deveria ser efectiva", defendeu o presidente da Associação Sindical de Juízes Portugueses (ASJP), Alexandre Baptista Coelho, em declarações ao DN - para quem as bases de dados dos tribunais deveriam estar sob a tutela de instituições judiciárias , "visto conterem informações muito sensíveis".

Posição que foi igualmente defendida pelo juiz Jorge Langweg, responsável na ASJP para as questões de informática. "É caricato que, não obstante a autonomia do MP e a independência dos tribunais, os sucessivos governos tenham ignorado os utilizadores dos sistemas informáticos, acabando por introduzir nos tribunais aplicações que não dão resposta adequada, nem legal, às solicitações", disse ao DN. "Nunca os governos tiveram a preocupação de saber o que se pode ou não fazer com o H@bilus", assegurou.

A falta de enquadramento legal deste programa foi, por sua vez, denunciada pela Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) em Janeiro de 2004. Esta entidade foi então chamada a pronunciar-se sobre um anteprojecto de decreto-lei do anterior Governo com vista a regulamentar os ficheiros de dados de gestão processual automatizados dos tribunais - ou seja, pretendia-se legalizar o que é hoje o H@bilus.

Segundo aquela entidade fiscalizadora, "a criação e manutenção de registos centrais abarcaria, necessariamente, o tratamento de dados pessoais relativos a informações que envolvem actividades ilícitas, infracções penais e decisões que apliquem penas e medidas de segurança". Para assegurar o sigilo dos dados, a CNPD concluiu que esses registos centrais "carecem de regulamentação por lei da Assembleia da República". Neste sentido, deu parecer negativo ao anteprojecto.

Desde então, e até hoje, nenhum outro projecto de diploma foi proposto, embora o H@bilus esteja a funcionar. A Direcção-Geral da Administração da Justiça, no entanto, esclareceu que "não existe nenhuma base de dados central que contenha documentos de processos", frisando que "esses documentos encontram-se nos servidores de cada tribunal". Só que estes servidores , apurou o DN, estão ligados a um computador central por onde, por exemplo, acedem advogados e solicitadores desde casa para consultar os seus processos.

Além da falta de enquadramento do sistema informático do poder judicial, gerido pelo poder político, também se coloca a questão da protecção contra piratas informáticos.

O sindicato dos procuradores, em Novembro, solicitou ao MJ e à Procuradoria-Geral da República que averiguassem da possibilidade de intrusos acederem a peças em segredo de justiça, através do H@bilus. Mas ainda não obteve resposta.


PERGUNTAS E RESPOSTAS

Magistrados criticam rede informática dos tribunais

Os tribunais estão ligados em rede informática, sendo o sistema gerido pelo Instituto das Tecnologias de Informação na Justiça (ITIJ), tutelado pelo Ministério da Justiça. É dentro deste sistema que está instalada aplicação informática H@bilus, que os magistrados consideram ser pouco segura

1.O que é o H@bilus?
É um programa informático onde são registados todos os passos de um processo judicial, desde que nasce até que morre. No H@bilus é inserida toda a informação, desde o nome à filiação de réus e arguidos, assim como o número de identificação fiscal e do bilhete de identidade, ou outro elemento de identificação, o estado civil, o local de nascimento, a profissão, a morada, a alcunha, para além da cédula profissional dos advogados e solicitadores. A estes dados acrescenta-se toda a informação processual - que pode estar ou não em segredo de justiça -, nomeadamente notificações, despachos, sentenças, depoimentos de testemunhas e respectivas moradas, e demais diligências.

2.Os dados inseridos no H@bilus estão centralizados?
Não há um registo central de dados para todos os tribunais. Há, sim, ficheiros informáticos centralizados em cada tribunal cujo servidor está ligado ao computador central da Direcção-Geral da Administração da Justiça. O que permite, por exemplo, que advogados e solicitadores, desde casa, possam aceder aos seus processos em fase de julgamento.

3.Os tribunais estão ligados por uma rede informática?
Existe a chamada rede judiciária controlada pelo MJ que liga informaticamente a maioria dos tribunais. É dentro desta rede que está implantado o programa H@bilus.

4.A rede é segura?
Vários operadores judiciários, nomeadamente os magistrados, duvidam dessa segurança e têm-no denunciado publicamente, e pedido investigações.

5.Os magistrados podem proteger-se dos piratas informáticos?
Se um magistrado recebe um computador com o H@bilus instalado, não lhe é permitido pelo administrador do servidor local alterar a partilha do disco ou definir barreiras de segurança. Está sempre activa a partilha de ficheiros e impressoras (no Windows 98, por exemplo), permitindo que outros utilizadores se liguem remotamente ao seu computador (no Windows XP). Em vários PC com o H@bilus instalado é, inclusive, impossível ao magistrado alterar o fundo (wallpaper) do ambiente de trabalho.


Órgão fiscalizador prevê sanções

Foi a 7 de Fevereiro de 2002 que a Direcção-Geral da Administração da Justiça (DGAJ) notificou a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) sobre a existência do H@bilus. Esta notificação é obrigatória por lei, visto tratar-se de ficheiros com dados pessoais. Porém, desde então até hoje , aquele programa deixou de ser um mero registo informático de entrada de documentos, tendo vindo a aglutinar, a pouco e pouco, todos os dados relativos a um processo, incluindo a realidade jurídica e factual em segredo de justiça.

Aquando da notificação à CNPD, o H@bilus era como que a digitilização do antigo "livro de porta" existente nos tribunais e nos serviços do Ministério Público - no qual são registados todos os papéis e documentos. Note-se que aquela aplicação informática foi criada por oficiais de justiça, continuando a ser por eles desenvolvida. Hoje, é possível fazer directamente no H@bilus quase toda a tramitação processual, incluindo o registo de depoimentos de réus ou de arguidos, e de testemunhas.

Apesar de toda esta evolução, mantém-se na CNPD a notificação de 2002, como se aquela aplicação guardasse um ficheiro de mercearia. A Lei da Protecção de Dados, no entanto, prevê sanções para os responsáveis que mantenham uma base de dados ilegal, que podem ir da simples coima à pena de prisão. Contactada pelo DN, a CNPD diz desconhecer o H@bilus.


Segredos da justiça pouco seguros

A Direcção-Geral da Administração da Justiça (DGAJ) assegura que os administradores do sistema informático dos tribunais são funcionários judiciais, e que, tal como quaisquer outros funcionários do Estado que trabalhem nesta matéria, estão obrigados ao segredo de justiça.

A mesma entidade, tutelada pelo Ministério da Justiça (MJ), garante ainda que "não existe nenhuma base de dados central que contenha documentos de processos", frisando que "esses documentos encontram-se nos servidores locais de cada tribunal". Além de que "o acesso às peças processuais só é efectuado pelo magistrado titular do processo ou do inquérito e pelos oficiais de justiça das secções".

Estas explicações oficiais, no entanto, deixam pouco satisfeitos os vários operadores judiciários. "Também o SIS está sujeito ao segredo de justiça, e não deixa de ser o serviço de informações do poder político. Portanto, isso não tranquiliza os magistrados, para não falar nos hackers e outros piratas informáticos", disse um juiz ao DN.

Os magistrados têm demonstrado várias preocupações sobre esta matéria. A primeira é relativa à insegurança da rede informática do MJ, onde o H@bilus está instalado. Outra preocupação tem a ver com o projecto do MJ relativo à total desmaterialização do processo, começando com os recursos já em 2006. Os operadores lembram que o papel vai desaparecer em clima de total insegurança informática.


Por Licínio Lima e Paulo Spranger, in www.dn.sapo.pt

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