segunda-feira, dezembro 12, 2005

"JUSTIÇA: A CRISE QUE SE QUIS E DEIXOU ACONTECER" - António Cluny (Semanário 30.11.05)

1.Que existe uma crise na justiça, todos parecem saber. Que essa crise não é um exclusivo português, sabem os mais versados nestes assuntos. Que a crise se baseia, antes do mais, em questões políticas de competitividade e adequação do Direito e dos modelos judiciários existentes às realidades da vida económica e social, moldadas, agora, pelo processo de globalização, já só os mais ilustrados podem conhecer.

Os políticos, académicos e sociólogos nacionais que de preferência o são no limitado espaço dos jornais, na televisão e na blogoesfera, continuam, contudo, a esforçar-se para transmitir aos portugueses a ideia simplista, mas politicamente oportuna, de que o problema reside, no essencial, no péssimo desempenho dos juízes, na perfídia do Ministério Público e nas tranquibérnias dos advogados; enfim, que o problema reside na maldade intrínseca das corporações judiciárias, nos seus vícios e incapacidades.

Diz-se de tudo. Envoltas em meias verdades, meias mentiras e muita ignorância, expõem-se opiniões decisivas sobre as culpas e os culpados antecipados de todos os casos que se conhecem e mesmo dos que se não conhecem. Tudo, sem contraditório; que esta nossa comunicação social, tendo aprendido, recentemente, umas luzes de processo penal, parece, em simultâneo, ter olvidado o código ético e deontológico da profissão.

2. Uma parte dos cidadãos com questões a resolver nos tribunais fica, entretanto, tranquila consigo mesma, porque tendo como responsáveis principais pelo mau funcionamento da Justiça os magistrados e advogados, pode descansar e sobrestar sobre as decisões dos tribunais que directamente aos afecta e manter-se crítica – muito convenientemente crítica – quanto ao afamado e evidente mau funcionamento do sistema.

O poder político que temos, ciente dessa predisposição social, aproveita para descarregar responsabilidades próprias no que respeita à qualidade e realização das reformas que anuncia, que raro concretiza em pleno, geralmente por falta dinheiro, mas, também, correntemente, por falta de estudo, imaginação e capacidade técnica e de diálogo profissional.

Aproveita, além disso, quando lhe convém, para desacreditar ainda mais a acção dos tribunais e dos magistrados, infamando todos e uns quantos em especial, aliciando alguns e procurando até substituir ou pedir a substituição daqueles que, de alguma forma, tiveram de cumprir o seu dever em condições funcionais e mediáticas que não dominam nem, de facto, controlam.

Inventam-se, depois, para gáudio geral, simbólicas reformas de fundo para vergastar publicamente a invocada indolência dos magistrados e advogados, pouco importando se elas são tecnicamente viáveis e se, assim, se prejudica ainda mais a eficiência do sistema. Outros arcarão com a responsabilidade e se enterrarão com ela.

Rebaixa-se o estatuto dos magistrados, na certeza de que os comissários e comentadores de serviço – que ganham numa noite de larachada televisiva mais do que um magistrado de primeira instância num mês –, ali estarão sempre obedientes e dispostos a apoiar o justo corte de privilégios; desde que sejam os dos outros.

Acusa-se as magistraturas de violação sistemática da constituição, das leis e do segredo de justiça – a que muitos têm acesso e podem, também, violar – sem se cuidar de saber a quem interessa, no fundamental, essa violação. Tudo, como se os magistrados fizessem, em geral, parte de uma seita iniciática interessada na descredibilização da democracia, do estado de direito, da honra dos nossos políticos e homens de negócios, dos tribunais e de si próprios.

Espera-se, por fim, que não reajam como os outros cidadãos, porque integram órgãos de soberania, mas sempre se acrescenta, de seguida, que não podem esperar ter direitos diferentes dos demais funcionários públicos e trabalhadores, mesmo que, concomitantemente, tenham deveres mais rigorosos, maiores responsabilidades e obrigações e efectiva exclusividade de funções.

Pasma-se, depois, com exuberantes, hipócritas e encomendadas manifestações de indignação pública e mediática, com o facto de estes privilegiados se atreverem, ainda assim, a reagir. Não deveriam eles, afinal, ser solidários com semelhantes medidas e com os políticos que as aplicam tão respeitosamente?

3. Que existe uma crise da Justiça todos sabemos. Mas, mais grave do que ela, é a crise de valores e de cultura que orientam os conceitos de relacionamento e responsabilidade institucional dos que nos governam. Políticos a quem incomoda, simplesmente, o confronto com o pequeno espaço de autonomia profissional, intelectual e moral e a autoridade social que resta nos corpos profissionais intermédios.

Como ultrapassar esta crise – ou estas crises – é questão que os portugueses que ainda se podem dar ao privilégio de pensar sem ser pela cabeça e interesses que comandam os gurus da nossa pós-modernidade política, económica e mediática, se colocam.

Como ultrapassar esta crise, apostando sempre na diversidade democrática das ideias, sem alienação dos discursos políticos e dos princípios ideológicos, é a questão mais importante que se põe, nos dias de hoje, aos portugueses; sejam eles magistrados, advogados, professores, militares, funcionários públicos, trabalhadores e empresários.

4. No que diz respeito à Justiça, muitas das soluções para a (muito e para muitos conveniente) crise encontram-se já medianamente definidas, tanto ao nível do método da reforma, como no das ideias e propostas concretas.

O método definiu-o e defendeu-o sempre o actual PR, quando se empenhou, pessoalmente, na realização do Congresso da Justiça e na concretização de um acordo mínimo sobre as bases da reforma da Justiça, que contasse com a diligência, mobilização e interesse activo das diversas profissões judiciárias, dos distintos representantes das forças políticas parlamentares e do Governo.

As medidas e soluções mais importantes encontram-se claramente esboçadas nas conclusões desse Congresso e nas precisões que, depois delas, foram sendo feitas em inúmeras iniciativas protagonizadas pelas associações de magistrados, pela Ordem dos Advogados, pelos partidos e pelas associações cívicas. Muitas foram, aliás, depois, adoptadas pelos programas políticos dos partidos e dos governos (incluindo o actual) que se lhe seguiram.

São elas, no essencial:
- Uma reforma radical da formação das profissões judiciárias que, sem quebra dos traços próprios e distintivos, lhes permita um melhor conhecimento da vida, as integre numa cultura judiciária comum e evite, assim, as dissolventes guerras inter-corporativas e o populismo miserabilista que lhes está associado e ameaça algumas delas;
- Uma reforma das carreiras dos magistrados que aposte, na verdade, numa especialização e na formação permanente, como instrumento privilegiado de progressão profissional e, assim, de maior responsabilização técnica, deontológica e cívica;
- Uma reforma racional e integrada das diversas leis de processo, da organização judiciária – especializada e territorial – e dos quadros de magistrados e funcionários. Uma reforma que garanta direitos individuais, mas não impeça o apuramento da verdade e favoreça os poderosos. Uma reforma que torne a Justiça mais eficaz, porque efectiva e a aproxime dos cidadãos, sem que isso signifique sumptuários gastos com burocracias desnecessárias e meramente rituais;
- Uma reforma das iníquas leis de acesso ao direito e à assistência judiciária que impedem a efectiva acção da Justiça e a concretização dos direitos dos cidadãos mais carenciados e tendem mesmo a arredá-los de vez da garantia judiciária, em nome de uma eficácia que já não é Justiça;
- Uma reforma tecnológica bem pensada e flexível.

5.Tudo isto é lógico, tudo isto foi reflectido e aceite por todos no Congresso da Justiça. Tudo isto pode (deve) ser feito e tornará a Justiça, não só mais eficiente e geradora de riqueza, como, no fundamental, mais efectiva e democrática.

Só falta, verdadeiramente, um poder político que seja capaz de todos mobilizar, sem anátemas populistas e demagogia; métodos e atitudes que apenas têm servido para esconder incapacidades evidentes, complexos antigos e revanchismos circunstanciais.

Uma pergunta, entretanto, fica por responder: São estas reformas ainda possíveis na actual conjuntura, depois de tudo o que se quis e deixou acontecer?

António Cluny

Fonte: www.smmp.pt

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