quinta-feira, maio 25, 2006

Segredo de Justiça - A implosão final de um mito ou a interminável continuação da hipocrisia?


"Em Portugal, o segredo de justiça, em vez de ser um instrumento sério para salvaguardar as finalidades da investigação ou para proteger a imagem, o bom nome e a honra dos visados no inquérito, é, cada vez mais, uma arma de arremesso.

E num processo penal em que a igualdade de armas é expressão de uma realidade inexistente, sobretudo para o cidadão comum, o segredo tem sido arma utilizada para finalidades várias que não as da justiça.

A história recente é rica de patologias graves, de quebras patentes de sigilo e de fugas patentemente cirúrgicas, que só desprestigiam a justiça e os seus profissionais, sem excepções. Mas nunca, como hoje, se foi tão longe.

Cirúrgica e dirigidamente, são revelados factos e actos cobertos pelo segredo, quantas vezes para construir a priori cenários de pressão sobre a justiça, urdir acusações ou reacções, ainda que injustas, mas credíveis aos olhos do público e destruir, com a manipulação e a consequente morte civil, cidadãos que se presumem, e quantas vezes são mesmo, inocentes. Fomos agora confrontados com uma entrevista do procurador-geral da República ao “Expresso” em que se descreve e comenta, com pormenor inusitado, um processo concreto, ainda em segredo de justiça, e sem que se vislumbre ou justifique a necessidade desta concreta prestação de esclarecimento.

Já houve quem dissesse que “a sua entrevista é um acto político e não um acto processual”. E que se “antecipou para o país a versão oficial que iliba procuradores, aponta o dedo à PT de uma forma que o próprio sabe ser inconsequente, cai em cima dos jornalistas porque é o mais fácil”. Não havia necessidade!

Discute-se na reforma do processo penal a manutenção, o âmbito e as consequências da violação do segredo de justiça.

Já o disse, tal qual está o segredo de justiça é um segredo de polichinelo. O fruto proibido é o mais apetecido. E num país em que toda a gente fala do que não sabe e em que a maior parte não consegue conter o que sabe, manter segredos parece tarefa votada ao fracasso.

Não faz sentido haver segredo de justiça generalizado a todas as investigações e haver intermináveis investigações sujeitas a segredo cuja discussão, e especulação, andam nas bocas do mundo. Alguém, com acesso ao processo, ou que com o processo contacta, dá com a língua nos dentes. Disso não há dúvidas. Com que propósitos? Com que agenda? Com que finalidades?

Não podemos continuar a assistir a detenções em directo, interrogatórios judiciais de arguido detido sob as luzes dos holofotes e outras aberrações tais como o anúncio prévio de buscas ou outro tipo de diligências investigatórias que deviam estar cobertas pelo sigilo. Nem com indiciações pormenorizadas em fases iniciais ou com antecipações do despacho de encerramento do inquérito em fases finais...

Por outro lado, não se justifica que, por exemplo, um abuso de liberdade de imprensa após a queixa crime apresentada fique imediata e automaticamente a coberto do segredo. Ou uma condução sob o efeito do álcool. Ou um crime de injúrias. É um contra-senso.

Justifica-se pois restringir o segredo ao que deve ser secreto. Isto é, só deveria ser secreta a investigação que o justificasse. Assim seria no tráfico de estupefacientes, na corrupção, na criminalidade violenta ou altamente organizada, sempre que o titular do inquérito o entendesse fundamentadamente.

O que não haveria era segredo como regra. Mas sim como excepção. Casuística e justificadamente o Ministério Público decidiria se o processo, ou algum elemento do processo, ficava sob sigilo.

Mas mesmo este segredo não pode ser absoluto e interminável.
O segredo não pode ser absoluto porque, se necessário, deve ceder para garantir necessidades de defesa. Se, por exemplo, for fixada como medida de coacção a prisão preventiva, no mínimo os fundamentos do despacho, e todas as provas a que ele se refere, têm que ser dadas a conhecer à defesa para que esta as possa impugnar ou contraditar.

O segredo não pode ser interminável porque os processos não podem arrastar-se e continuar cobertos pelo manto do segredo. Permitir esta opacidade é permitir, ou facilitar, toda a espécie de abusos, negligências ou displicências.

Não se pode, pois, cair na tentação de perseguir quem critica a Justiça. Ou de quem desvende a Verdade. Ou de quem ponha em causa rotinas instaladas.

Pergunta-se, pois, porque não há um escrupuloso respeito pela legalidade? Para quando a implosão final de um mito? Ou porquê a interminável continuação da hipocrisia?

Carlos Pinto de Abreu"

(N.B. - negrito nosso)

Fonte: Ordem dos Advogados

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