sexta-feira, maio 19, 2006

As lições de São Paulo

António Vitorino
Jurista

"As imagens e os relatos que nos foram chegando de São Paulo, no Brasil, revelaram uma realidade de violência e confronto entre um grupo de crime organizado e a polícia que provavelmente para muitos foi uma surpresa. Surpresa não tanto pelo fenómeno em si mesmo, mas sobretudo pela dimensão do conflito e sua natureza. Com efeito, à decisão das autoridades estaduais de procederem à transferência de oito cabecilhas de um grupo de crime organizado (significativamente autodesignado de Primeiro Comando da Capital!) reagiram os criminosos primeiro através de ataques armados a cerca de cinquenta esquadras de polícia, em seguida promovendo rebeliões com tomada de reféns em praticamente todas as prisões do Estado e, finalmente, provocando uma onda de saques e de ataques indiscriminados, visando empresas, transportes públicos e até casas de particulares.

O balanço é trágico: mais de uma centena de mortos, na sua maioria agentes policiais, e um elevado número quer de feridos graves quer de reféns à mercê do chamado PCC, sobretudo nas prisões sublevadas.

As causas profundas desta onda de violência são conhecidas há muito tempo: o tráfico de droga, claro, que gera proveitos financeiros fabulosos e que alimenta uma organização criminosa sofisticada, dotada de meios bélicos pesados, com capacidade de recrutamento e de organização interna de tipo militar, disciplinada e obedecendo a vozes de comando capazes de lançarem uma cidade de 20 milhões de habitantes no mais completo caos! Acresce que a dimensão e o poder de facto deste tipo de grupos criminosos beneficiam de conivências nos aparelhos policiais e de ligações internacionais que propiciam esquemas de abastecimento de armamento e de lavagem dos proveitos do crime.

A primeira tentação dos observadores europeus é a de considerar que este é um fenómeno típico da América Latina. Talvez esses observadores devessem não esquecer que quer as causas quer as manifestações deste tipo de criminalidade também se podem encontrar noutras paragens, designadamente na própria Europa! E se até hoje não assistimos nos subúrbios das grandes metrópoles europeias a manifestações deste tipo com esta dimensão, existem inúmeros sinais de que essas condições de base também se podem encontrar em vários países europeus.

Se regressarmos ao que se passou em Paris há cerca de três meses, talvez me seja permitido recordar que então emiti um sinal de preocupação sobre a possibilidade de a agitação levada a cabo por jovens das minorias étnicas poder vir a ser aproveitada por grupos de crime organizado, o que felizmente não veio a suceder. Mas o facto de, desta vez, tal não se ter verificado não impede, contudo, que reconheçamos que algumas das condições de base para este tipo de escalada de violência urbana estão presentes também em várias cidades europeias hoje.

Com efeito, desde há vários anos, sobretudo após a crise dos Balcãs na década de noventa, as polícias europeias têm assinalado um fluxo permanente de tráfico de armamento, tendo como destino grupos de crime organizado na Europa ocidental. Armamento ligeiro na sua maioria, mas também armamento pesado, o qual, por vezes, tem surgido à luz do dia, embora, no essencial, em confrontos de "ajuste de contas" entre esses grupos. As redes de tráfico de armas confundem-se muitas vezes com as próprias redes de tráfico de droga ou de seres humanos, gerando assim "cartéis" de crime organizado dotados de grande capacidade de violência e de perturbação da ordem pública.

Estes grupos de crime organizado só podem ser combatidos com base numa intensa cooperação internacional, na medida em que têm uma natureza transnacional e actuam em vários países ao mesmo tempo, segundo uma cadeia de relações cujo desmantelamento exige troca de informações, acção concertada e convergência no plano das sanções aplicáveis onde quer que os seus responsáveis se encontrem.

Neste combate contra o crime organizado tem-se progredido no plano europeu, graças à acção da Europol e da própria Interpol. Mas há dois sectores que normalmente aparecem como pouco cuidados: por um lado, a acção destes grupos nos estabelecimentos prisionais, que cada vez mais funcionam como centros de recrutamento dos próprios gangs e até das organizações terroristas (realidade posta bem em evidência no relatório das autoridades espanholas recentemente divulgado sobre os atentados do 11 de Março de 2004); por outro, a necessidade de conferir prioridade à cooperação na luta contra o tráfico de armas, sejam as de pequeno calibre sejam as armas pesadas que têm visto a sua circulação intensificada após o desmantelamento das indústrias de armamento dos países do antigo bloco soviético.

Durante estes últimos meses, a Comissão Nacional Justiça e Paz levou a cabo, entre nós, um ciclo de debates sobre o tema dos riscos das armas nas sociedades democráticas. Esta reflexão, aliada à recente investigação desencadeada pela PSP sobre o funcionamento do seu próprio departamento responsável pela matéria, bem como a adopção de uma nova legislação sobre uso e porte de arma, constituem sinais de que quer as autoridades quer a sociedade civil se mostram conscientes de um problema fundamental para a segurança das populações e para a estabilidade da nossa democracia. São iniciativas que devemos saudar e dos seus resultados práticos deve ser dado conhecimento público para bem da tranquilidade dos cidadãos."

in Diário de Notícias

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