sexta-feira, maio 26, 2006
Reprodução assistida: as verdadeiras questões
Maria José Nogueira Pinto
Jurista
"A procriação medicamente assistida constitui a resposta que a ciência e a tecnologia associada deram ao legítimo anseio de milhões de casais no mundo inteiro de poderem ter filhos. Há algumas décadas a infertilidade era considerada apenas uma fatalidade. Hoje é algo superável. Os casais que se incluíam, conformadamente, na vasta categoria dos que não podiam ter filhos foram substituídos por casais que acedem a diagnósticos antes impensáveis e a tratamentos com crescente taxa de sucesso.
Trata-se pois de uma conquista como muitas outras de que as sociedades actuais são beneficiárias, e como sempre acontece nestas questões em que a ciência abre horizontes novos, obriga a reflexão e ao estabelecimento de regras que impeçam a perversão dos fins que se pretendem alcançar.
E é aí que entra o legislador, e dele espera-se que reconheça uma necessidade social à qual a ciência e a tecnologia deram resposta, proteja as expectativas criadas e assegure a orientação das práticas que respondam primordialmente à finalidade reprodutiva, tendo presente que tais práticas actuam sobre um elemento - o embrião humano - no qual reside um bem - a vida humana - com respaldo constitucional.
Não se espera que, por menor reflexão ou maior despique ideológico, abra a porta a que esta finalidade, claramente reprodutiva, venha a ceder, de modo sub-reptício, a outros motivos ou fins exteriores ao nascituro.
Nos últimos 50 anos, com a pílula contraceptiva, a liberalização do aborto e as técnicas cada vez mais sofisticadas da procriação medicamente assistida, consolida-se um processo de dissociação entre procriação e sexualidade. Independentemente do juízo de valor que cada um faça, é generalizado o entendimento de que esta ruptura antropológica requer um tratamento esclarecido e prudente.
E não é nem esclarecido nem prudente um tratamento legislativo que possa permitir - sobretudo se essa não é a intenção do legislador - um progressivo desvio da finalidade claramente reprodutiva, para satisfazer um mercado crescente através da criação de puro material de investigação (denominada terapêutica), de doadores (bebé-medicamento), de selecção de um nascituro em função de um interesse terceiro, da clonagem, do comércio livre de óvulos, embriões, etc.
É este o ponto mais relevante da lei: saber se as suas lacunas, omissões ou pequenas "frestas" abertas, mais em função de circunstâncias do que de princípios claramente assumidos, podem conduzir a que a mesma lei sirva como norma de promoção do uso de embriões na investigação, e até na clonagem, com fins não reprodutivos, do comércio de pré-embriões e o seu uso industrial.
Um aspecto particularmente relevante e elucidativo suscita preocupação: o uso dos embriões excedentários para fins de investigação.
De facto não se entende se a opção foi feita com base em dar um "destino útil" a embriões que não vão ser implantados, ou se o legislador quis consagrar a investigação em embriões viáveis. Na primeira hipótese estamos perante uma mera circunstância, já que os embriões excedentários tendem a diminuir com o estado da arte, prevê-se o incremento da doação de embriões, o alargamento das técnicas de conservação permitindo uma selecção natural. Ou seja, é razoável pensar que estamos perante uma situação cada vez mais residual, não justificando uma solução legislativa como que de "aproveitamento de desperdícios", aparentemente desproporcional ao princípio que derroga.
Mas se estamos perante a segunda hipótese, isso significa que o legislador quis consagrar a investigação em embriões humanos viáveis e a pergunta é porque não o fez claramente e usou a forma encapotada do falso problema dos embriões excedentários?
A ser assim, o que se legislou, na prática, foi a eliminação, numa matéria desta natureza, da distinção fundamental entre sujeito/pessoa e objecto/coisa no que se refere a embriões não transferidos.
Quando falo na necessidade de esclarecimento e prudência em matérias cuja substância toca questões essenciais que a evolução científica e tecnológica obrigam a rever, estou a antecipar-me a futuras próximas atrapalhações políticas face a uma agenda anunciada. Esta lei deveria ter sido feita há anos mas o vazio legal era mais cómodo. Comodidade é o que não se espera nestes tempos de profunda mudança fruto da enorme sacudidela a que a condição humana foi sujeita na segunda metade do século XX, obtendo pela primeira vez o domínio da própria espécie. O poder político, a sociedade civil, a comunidade científica devem ter presentes os desafios que, neste século, se lhes vão colocar. Os quais se resumem, no essencial, a esta coisa simples: que humanidade vai ser a nossa e como poderemos usar a ciência e o progresso, sempre e ainda, ao serviço do valor essencial da sua dignidade."
in Diário de Notícias
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