segunda-feira, maio 22, 2006
"Há no poder uma visão jacobina sobre o MP"
Com a sucessão do procurador-geral da República (PGR), Souto Moura, a regressar à agenda política, António Cluny traça um retrato actual do Ministério Público (MP): não admite que haja apatia, mas fala em desmotivação, fruto de um ano e meio de relacionamento com o Governo. O presidente do Sindicato dos Magistrados do Mininistério Público espera que Cavaco Silva consiga levantar o clima de crispação.
Há ou não uma apatia interna no Ministério Público (MP), uma espécie de sonolência, que leva a que os magistrados percam o rasgo e a iniciativa?
Há em geral no sector da justiça uma desmotivação muito grande. Essa desmotivação resultou da falta de condições para desenvolver o trabalho, de uma falta de preparação para compreender algumas críticas e da falta de uma política que tem exposto o papel dos magistrados de uma forma negativa e que o vai acantonando em posições de alguma passividade.
Os magistrados não deveriam ser imunes a essas situações?
Teoricamente toda a gente deve ser imune, mas os magistrados são humanos e tem havido alguma pressão e desprestígio prolongados. As pessoas que estão no início das carreiras e que entram para a magistratura imbuídos de um determinado espírito têm uma tendência para descer. O que é natural. Não é isso que deve acontecer, mas é o que humanamente acontece. Isso é muito perigo numa sociedade como a nossa, com os problemas sociais e económicos que tem. E poderá determinar, de certa maneira, a neutralização do sistema judicial. Se a magistratura de iniciativa é acantonada, uma das componentes do poder judicial fica neutralizada.
Mas há também uma autoneutralização?
Temo que isso comece a verificar--se. Há já alguns indicadores de que começa a haver uma quebra de produtividade. Este ano assiste-se a uma inversão de uma tendência que se vinha a verificar há anos: há uma desmoralização e desmotivação muito grandes. Isto é o resultado deste acantonamento que esta magistratura tem sido sujeita neste último ano e meio.
Esse acantonamento, essa desmoralização, significa que o MP precisa de um líder?
O MP precisa, desde logo, não apenas de um líder, mas sim de novas regras e de um novo modelo organizativo, porque a realidade mudou: hoje ela é distinta daquela que existia há uns anos quando o Estatuto foi feito. Apesar de eu pensar que com este estatuto é possível organizar e dinamizar o MP de forma diferente. Isso implica uma reflexão aprofundada. O sindicato vai fazer essa reflexão, mas reconhecemos que a nível interno não tem havido essa reflexão.
O que é preciso mudar: os procuradores distritais, os departamentos de investigação e acção penal?
Não só. Todas essas áreas têm que ter um acerto. Sabemos que a investigação criminal e o julgamento não podem ser pensadas como fase diferentes. Quem dirige a investigação deve dirigi-la na perspectiva do julgamento. Isto implica uma nova relação com as polícias: se for boa, até não é necessário uma estrutura tão pesada.
Isso carece de uma intervenção legislativa ou o próprio MP poderia ter feito algumas modificações?
O MP já poderia ter dado passos mais significativos nessa direcção. Isso implica uma reflexão e, aí sim, o MP precise do tal líder que a fizesse. O que é que acontece hoje: o actual PGR tem sido alvo de uma campanha muito grande e isso tem efeitos externos e internos.
Souto Moura só foi colocado em causa quando surgiram processos relacionados com figuras do poder político?
É evidente que o poder político não estava culturalmente preparado para que determinado tipo de questões fossem colocadas em tribunal. Com a sedimentação do Estado de direito, as coisas mudaram. E há, nalgumas áreas do poder, uma visão jacobina sobre o papel do MP e dos tribunais. Todos defendemos o Estado de direito desde que não nos bata à porta.
Que contributo pode dar o actual Presidente da República para acabar com este clima de crispação?
O Presidente da República tem feito sobre a justiça um discurso acertado. Que é compreender que o sistema tem que funcionar e para funcionar não pode acontecer a sua descredibilização.
Por Carlos Rodrigues Lima / Eduardo Dâmaso / Rui Coutinho, in Diário de Notícias
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