sexta-feira, maio 19, 2006

Lei de procriação assistida pode ser inconstitucional


A exclusão das mulheres que não façam parte de um casal heterossexual do acesso à procriação medicamente assistida (PMA), consignada no texto da lei que está a ser finalizada na Comissão Parlamentar de Saúde, é vista pelo constitucionalista Vital Moreira como "um problema constitucional interessante, um problema sério do ponto de vista da igualdade de tratamento". O jurista defende que Cavaco Silva deve requerer a fiscalização preventiva da lei: "O Tribunal Constitucional deveria ser consultado."

Esta possibilidade é uma das esperanças da Associação Portuguesa de Infertilidade, um grupo de cidadãos inférteis que enviou uma carta aberta ao Parlamento e escreveu também ao Presidente da República, solicitando uma audiência. "Não há muitas mulheres nessa situação - a de terem um diagnóstico de infertilidade e estarem sós - mas por uma questão de princípio não as podemos discriminar", diz Fernando Oliveira, da comissão instaladora da Associação. "E consideramos que essa discriminação é inconstitucional."

Para Vital Moreira, porém, a definição não é tão óbvia. "Quais são as razões para impedir uma mulher solteira de ter direito à PMA?", questiona. "Sob o ponto de vista constitucional, a questão é saber se existe uma motivação relevante para estabelecer essa discriminação." É que, frisa, apesar de a Constituição consagrar o princípio da igualdade, "nem todas as desigualdades são inconstitucionais".

Constituição campo de batalha

O que está em causa, explica o também constitucionalista Jónatas Machado, é "encontrar o equilíbrio entre a dimensão individual dos comportamentos e o risco de desintegração valorativa e moral da sociedade". E especifica: "A sociedade deve poder enviar alguns sinais aos indivíduos sobre o que considera serem os comportamentos ideais, mas deve fazê-lo sem beliscar demasiadamente os direitos e a dignidade das pessoas. O Estado pode tentar incentivar o ideal mas tem de o fazer cautelosamente e lembrar-se que há parâmetros internacionais de direitos humanos."

Ou seja, será que o "sinal" que a redacção actual da lei de PMA tão claramente "envia" - o de que o ideal de família eleito pelo Estado é o biparental e heterossexual - é aceitável quando funciona, em alguns casos, como uma imposição que exclui algumas pessoas da possibilidade de terem filhos? Jónatas Machado não tem resposta directa para estas perplexidades, como, frisa, a própria Constituição também não. "A sua interpretação é disputada pelos grupos ideológicos. É por isso que há um Tribunal Constitucional."

Direitos humanos em causa

E se "nem a família nem a sexualidade estão isentas da regulação social, se não está inteiramente disponível o direito de constituir família como se quiser e a sociedade tem alguma coisa a dizer em relação à forma como a família se organiza", Machado tem dúvidas sobre a sustentabilidade constitucional - e do ponto de vista dos direitos humanos -de uma lei que exclui as mães solteiras. "Ter um filho não é um direito inalienável, mas do ponto de vista dos direitos humanos parece-me que essa discriminação teria dificuldade em passar no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Provavelmente considerá-la-ia ilegítima." Nesta discussão, que vê como "uma batalha cultural" , a sociedade, diz, "tem de se auto-compreender". Porque existe "uma tensão dialéctica sempre mal resolvida entre a sua dinâmica normal e o seu instinto de auto-conservação".

Também com outras leis - estas "ordinárias" - poderá o texto em preparação colidir. O facto de a lei da adopção permitir que uma pessoa só adopte uma criança, por exemplo, é uma das contradições mais apontadas. Mas a própria lei de PMA parece ser autocontraditória, quando permite a possibilidade de um embrião resultante de um processo de procriação assistida em que participaram os dois membros de um casal ser implantado na mulher após a morte do homem, apesar de proibir que a mulher seja inseminada com o esperma do mesmo homem após a sua morte.

Coisas diferentes, defende o especialista de Direito Biomédico Guilherme Oliveira: "O embrião já existe, e há quem defenda que se devem viabilizar os embriões a todo o custo." Defesa de viabilidade que poderia colocar a possibilidade de os embriões excedentários fossem disponibilizados para implantação, por exemplo, em mulheres sós. "É uma hipótese", assente Guilherme Oliveira, para quem toda esta matéria se resume a uma questão de perspectiva: "Se me colocar do ponto de vista da mulher só que tem uma dificuldade de procriar, considero que ela tem esse direito; mas se me puser do ponto de vista da criança, acho que gostava de ter um pai. Há coisas em que podemos andar uma vida inteira sem saber como escolher."

Por Fernanda Câncio, in Diário de Notícias

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