domingo, setembro 03, 2006

Sobre uma certa sensação de (des)ordem


João Pereira da Rosa
Advogado

"Estimo o dr. Lacerda Machado, cujo trabalho no Ministério da Justiça apreciei, e que conheço há anos. Por isso, sinto-me compelido a debater a sua opinião sobre o futuro da advocacia [DN, 24 de Agosto].

Se bem li, defende a constituição de um mercado aberto, livre e transparente, de serviços de advocacia.

Constata a desadequação do Estatuto da Ordem dos Advogados com os tempos modernos, tendo aquele ficado cristalizado na época "do antigo regime", e não considerando a existência de duas grandes categorias de advogados: os organizados "empresarialmente", de um lado, e os "solitários", pobres, e com clientes de escassos recursos, de outro, que vive do apoio judiciário.

E acha impossível considerar que estas duas "categorias" sejam técnica e moralmente iguais...

Propõe, assim, a criação de uma agência de regulação e fiscalização independente, para a "categoria empresarial", e um sindicato, para a "categoria dos solitários".

Obviamente, discordo.

O ofício de advogado vem da Roma antiga, e sempre com a mesma filosofia.

O advogado sempre teve, tem e - espero - terá o desejo, a obrigação, o mérito, a finalidade e a honra de defender interesses legítimos de quem, sem a capacidade teórica e técnica para o efeito, clama por justiça.

Este desígnio acompanha a profissão desde o início, insensível à formação da nacionalidade, à dinastia dos Filipes, à República, ao Estado Novo, ao regime...

Legislação que regule esta actividade, seja ela o velho Estatuto Judiciário, o Estatuto de 1984, ou o de 2005, só pode ser eficaz se considerar indiscutível que o advogado tem que ser livre, independente, paladino dos Direito Humanos, da verdade e da liberdade, e que goza do privilégio de ser depositário da defesa de interesses de terceiros.

E isto impõe-me a certeza de que os advogados são todos iguais.

Não interessa se "empresarialmente organizados", ou se em "prática isolada".

Diga-se que nas grandes, médias e pequenas sociedades de advogados existem profissionais de enorme competência, como existem outros menos competentes.

O mesmo se passa relativamente aos advogados da dita "prática isolada".

Que grandes advogados "isolados" tenho conhecido ao longo destes 30, que trabalham sozinhos, que estudam sozinhos, que representam, sozinhos, os seus clientes, que formam, sozinhos e com grande eficácia, os seus estagiários, que só pensam na advocacia, nos interesses que lhes estão confiados e na melhor forma de os defender, mesmo sabendo que, por vezes, o seu esforço é apenas retribuído de acordo com a miserável tabela de honorários do apoio judiciário.

Alguém que diga que diferença existe entre nós todos. Alguém que diga e explique.

Haverá "mercado" mais aberto, mas livre e mais transparente que este, em que cada um tem a clientela que conquistou com o seu esforço, a sua dedicação, a sua proficiência e a sua eficácia?

Uma agência de regulação e fiscalização independente?

Será possível colocar, sequer, a hipótese de um advogado, sendo independente, possa ou tenha que ser "fiscalizado" por quem quer que seja, que não outros advogados igualmente independentes e livres?

Algum advogado, sócio, associado ou colaborador de uma grande, média ou pequena sociedade de advogados aceitaria que um não advogado controlasse o seu trabalho, e a forma como o desempenha?

Não perceberia que a instituição da tal "agência" seria o triste fim da advocacia? Com franqueza!...

Um "sindicato para os pobres advogados isolados"?

Subjugar-se-iam os advogados a ditames de um "dirigente sindical", que mandasse:

- "Hoje não se fazem defesas oficiosas";

- "Hoje não se atendem requerentes de apoio judiciário";

- "Hoje vamos a uma demonstração à porta da Assembleia da República"?

Por isso os advogados jamais serão meros "prestadores de serviços de persuasão", comandados por preocupações mercantis. Têm que ser muito, muito mais que isso.

E a escolha é deles."

in Diário de Notícias

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