sexta-feira, julho 28, 2006

Uma lei discreta


António Vitorino
Jurista

"Na última sessão antes de férias do plenário da Assembleia da República foram votadas diversas leis e procedeu-se a um debate sobre os exames do 12.º ano. Os meios de comunicação social deram extensa nota quer desse debate quer de algumas das leis em causa, designadamente a da mobilidade na função pública, a de alteração do Estatuto dos Deputados e a lei de Programação Militar.

Uma das leis aprovadas passou, contudo, sem ser noticiada. Talvez porque tenha sido aprovada por unanimidade, talvez porque desde o início o partido maioritário tenha afirmado a sua intenção de construir uma solução de consenso, talvez porque o tema seja na aparência demasiado árido para polémicas que despertem a atenção da opinião pública.

Refiro-me à nova lei de acompanhamento e participação da Assembleia da República no processo de construção europeia.

Nos tempos que correm é difícil pensar em lei que seja mais estruturante do nosso sistema político.

O facto de a lei anterior vigorar desde 1994 e de não ter ainda incorporado as alterações da revisão constitucional de 1997 justificavam a urgência desta revisão. Nos últimos anos terminaram, sem conclusões, pelo menos três tentativas de proceder à sua revisão e, na presente Legislatura, todos os partidos com assento parlamentar apresentaram iniciativas sobre a matéria. No curto espaço de tempo de um mês foi possível lograr um consenso sobre as regras que presidirão ao relacionamento do Parlamento português com o Governo no âmbito do processo de construção europeia.

Esta alteração legislativa justifica-se, em primeira linha, por razões de política interna. Não se pode aceitar que a lei portuguesa não seja conforme à Constituição, designadamente naqueles aspectos em que o legislador da revisão constitucional de 1997 previu uma ampliação do protagonismo político do Parlamento nacional: um direito de pronúncia sobre actos legislativos e não legislativos em curso de apreciação nas instâncias da União Europeia e um direito de participação no processo de designação de titulares de cargos europeus indicados por Portugal com excepção do Comissário.

Ainda razões de política interna impõem que o Parlamento português ganhe uma cultura de escrutínio alargado da agenda europeia. Com efeito, cerca de 60 a 70 por cento das leis nacionais são, directa ou indirectamente, condicionadas por regras comunitárias. Qualquer ausência ou timidez de intervenção no momento da adopção dessas regras no plano europeu significa um estatuto de menoridade induzida quando do exercício dos poderes legislativos internos. Nesta dimensão o reforço dos poderes de participação da Assembleia da República corresponde a uma forma de minorar o denominado "défice democrático" do processo de construção europeia, o qual, como sempre tenho dito, começa na nossa própria casa.

Este perfil mais saliente que a lei confere ao Parlamento português corresponde a uma tendência geral nos vários países da União Europeia. É certo que do ponto de vista dos mecanismos jurídicos o Tratado Constitucional que se encontra num limbo vegetativo consagrava regras comuns de valorização do peso e da eficácia dos parlamentos nacionais no controlo do princípio da subsidiariedade. Sem se estar a antecipar um tal mecanismo que dependerá do destino do próprio Tratado Constitucional, as novas regras nacionais permitem começar a criar uma prática de escrutínio alargado que, com o tempo, poderá mais facilmente desembocar nas regras previstas no próprio Tratado Europeu qualquer que seja a forma com que ele venha a entrar em vigor. Ao mesmo tempo as alterações introduzidas na lei portuguesa conferem ao nosso Parlamento um campo de intervenção no processo europeu que coloca Portugal em linha com os países onde esse controlo parlamentar se apresenta como mais eficaz, como é o caso dos países nórdicos ou da Holanda.

É bem sabido que só os juristas é que acreditam que as leis mudam o mundo! E, mesmo assim, excluem-se deste grupo os juristas cínicos, que não são tão poucos quanto isso... Alterar a lei, nesta matéria de escrutínio da política europeia, é provavelmente o mais fácil...Usar com sabedoria e de acordo com prioridades politicamente adequadas os mecanismos da lei será o desafio com que a Assembleia da República estará confrontada a partir da rentrée.

Vencer esse desafio depende mais de uma questão de cultura política do que de mecanismos institucionais.

Desde logo porque um escrutínio efectivo das opções políticas europeias e dos concretos actos legislativos que as traduzem exigem reconhecer que pertencer à União tem ónus do ponto de vista da acção política interna que, muitas vezes, os responsáveis políticos nacionais gostam de esbater ou mesmo esconder... Nesta sede, a visibilidade das opções significa responsabilização democrática acrescida.

Mas também porque se os mecanismos de participação do Parlamento nacional forem usados apenas na estreita perspectiva da contabilidade de ganhos e perdas dos governos em funções em cada momento, então estaremos a reconduzir à pura dimensão paroquial um mecanismo que visa, antes do mais, responder ao próprio "défice democrático" europeu, deste modo aproximando-se os cidadãos do próprio ideário europeu através dos seus representantes eleitos no Parlamento nacional. Ora as mudanças de cultura normalmente levam mais tempo que a mudança das leis. E provavelmente serão menos consensuais também..."

in
DN Online

Sem comentários: