sexta-feira, julho 21, 2006

Carta aberta a Júdice


"Caro José Miguel Júdice. No outro dia dei por mim a pensar na necessidade de te escrever.

A OA em 2001, digamo-lo sinceramente, não tinha rumo, não tinha desafios; vê o que ela era quando terminaste o mandato de Bastonário.

A OA vivia a dar lustro a medalhas ganhas em anteriores combates mas não afiava as espadas para os novos que aí estavam. Entretínhamo-nos a gerir um conjunto de episódios e a reconstruir um sistema organizativo digno do melhor do século XIX.

A nossa razão de ser como advogados - dizer tudo aquilo que é útil à defesa dos interesses que nos estão confiados e não metade - leva-nos, por vezes, a perder a importância de compreendermos e assumirmos que esse basilar objectivo só pode ser conseguido se for concretizado de forma organizada.

Lembro-me de ti e do Lucas Pires na crise de 69 em Coimbra. Ficou a coragem intelectual (e física) da afirmação do pensamento e da opinião.

Nesse dia aprendeste, tal como eu (a contrario sensu) a necessidade da organização e de que esta só é útil quando adequada ao futuro e aos seus desafios.

Mas, para além disso, aprendemos, (tu e eu), nesse mês de Abril, que pelas mudanças, pela preparação do futuro se paga um preço.

Então tu pensavas que se modificavam as regras para que vençam os que trabalham, os que são capazes, os que correm riscos, fazem investimentos, se estruturam e nada se passava?

Então tu pensavas que demonstravas que és capaz de ganhar dinheiro, na profissão e na rentabilização do património familiar, que podias ter direito à tua vida pessoal e isso não se pagava?

Então tu pensavas que se pode advogar o fim do corporativismo, defender e implementar regras para que quem mande não sejam as corporações, mas sim o controlo democrático e nada se passava?

Então tu pensavas que se podiam partir as peias - quer ao nível do pensamento, quer ao nível organizativo, quer ao nível de leitura e integração social - e que nada aconteceria?

Então tu pensavas que, de um dia para o outro, tinham desaparecido os lápis de cor azul e vermelha; que, de um dia para o outro, as pessoas passavam a permitir que os outros pensassem e o pudessem expressar livremente e nada se passava?

Então tu acreditavas que se podia transformar um país rural, com elites (vê como estou simpático) que, apesar de viverem nas urbes, nada mais são do que envergonhados, cínicos, hipócritas rurais que só pensam em si e no modo de se manterem no melhor de todos os mundos.

Então tu pensavas que era possível mudar sem que os agentes da mudança não tivessem que pagar o preço?

Meu caro Zé Miguel,

Uma das coisas que me agrada em ti é a capacidade romântica, que manténs, de te bater por causas, sem curares de saber os custos que vais ter de pagar. Não duvido que, mesmo que algum contabilista te avisasse do débito a lançar nessa conta corrente, terias agido.

Sei que tu sabias perfeitamente - até pelo sofrimento da tua família - que todas as tentativas de mudança se pagam.

O que gosto em ti é que sei (eu e muita gente - eles também) que posso ir contigo até ao fim do mundo - que vamos discordar, que vamos discutir, que vamos ter bravatas, que vamos afrontar-nos, que vamos estar juntos ou em campo opostos - mas que nunca serás desleal.

Pudéssemos de todos os julgadores (dos dos factos já nem sequer penso nos de opinião) pensar o mesmo.

Aceita, meu caro, um abraço solidário e fraterno deste colega e amigo, que nem sempre concorda contigo, mas que sempre te considera e te estima."

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Nota da Redacção (JN)

O ex-bastonário da Ordem dos Advogados, José Miguel Júdice, começa hoje a ser julgado na sequência de dois processos disciplinares que a Ordem lhe instaurou. Num deles, a pena proposta é a suspensão do exercício da actividade profissional, algo que nunca aconteceu a um ex-bastonário.
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in Jornal de Notícias

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