Diogo Lacerda Machado
Advogado, Barrocas e Sarmento Neves
"Ao olhar hoje um dos muitos Palácios da Justiça implantados no País sou devolvido à primeira ocasião em que, aluno da primária, reparei num edifício proeminente e vi nele inscrita e saliente a expressão latina Domvs Iustitiae. Incapaz de decifrar o significado, foi-me dito que ali funcionava o tribunal. Tendo ideia do que fosse um tribunal pelos imperdíveis relatos das sessões do caso da herança Sommer no Diário Popular - que fariam de mim o resultado precoce dessa magnífica dádiva democrática que é a mediatização da Justiça - fiquei, todavia, intrigado por me escapar a razão da preferência por expressão vinda de um tempo remoto, em vez do uso da designação comum, mais moderna, simples, útil e de todos conhecida.
Volvidos quase quarenta anos, ainda sobrevivem dezenas de palácios da Justiça com essa inscrição, que é, afinal, sugestão de legitimação por apelo expresso à tradição (mesmo se em alguns casos a inscrição surge agora desfigurada pela queda e falta definitiva de parte das letras). Mas, claro, palácios, ainda e sempre como edifícios que, entre a ressonância conotativa, a localização no centro urbano, a volumetria e o aspecto arquitectónico, apontam simbologias idealizadas para afirmação da superioridade que tem de distinguir os lugares (e os altares) do poder.
Sucede, porém, que no decurso dos mesmos quarenta anos, a pressão da vertiginosa transformação das necessidades da Justiça conduziu a que, de par com esses sítios e lugares de um tempo perdido, se viessem a instalar tribunais em inimagináveis apartamentos T3, providos de pequena casa de banho e kitchenette, metidos em prédios de habitação situados nas periferias urbanas.
Ora, o surrealismo da coexistência de instalações que, por excesso, talvez já não devessem existir e de instalações que, por defeito, talvez nunca devessem ter existido serve, sobretudo, para ilustrar o que foi a longa ausência de uma política governativa assente em ideias, critérios funcionais e regras para a concepção, planeamento e gestão do vasto, muito valioso e nem sequer completamente identificado património confiado aos serviços da Justiça.
Na reforma orgânica de 2000, que arredou a lógica organizativa de 1972, o Ministério foi dotado de instrumentos institucionais, como o Instituto de Gestão Patrimonial e Financeira da Justiça, pensados para recensear esse património, avaliar a sua (in)utilidade e preparar o seu reaproveitamento. Mas, muito para além disso, esses novos instrumentos deveriam servir para começar já a antever e configurar as instalações (físicas e virtuais) apropriadas para a Justiça que se haverá de fazer em 2020 e em 2050 e que, estimo, já não vão ter de ser nem a Domvs Iustitiae nem aqueles disparatados apartamentos."
in DN Online
Advogado, Barrocas e Sarmento Neves
"Ao olhar hoje um dos muitos Palácios da Justiça implantados no País sou devolvido à primeira ocasião em que, aluno da primária, reparei num edifício proeminente e vi nele inscrita e saliente a expressão latina Domvs Iustitiae. Incapaz de decifrar o significado, foi-me dito que ali funcionava o tribunal. Tendo ideia do que fosse um tribunal pelos imperdíveis relatos das sessões do caso da herança Sommer no Diário Popular - que fariam de mim o resultado precoce dessa magnífica dádiva democrática que é a mediatização da Justiça - fiquei, todavia, intrigado por me escapar a razão da preferência por expressão vinda de um tempo remoto, em vez do uso da designação comum, mais moderna, simples, útil e de todos conhecida.
Volvidos quase quarenta anos, ainda sobrevivem dezenas de palácios da Justiça com essa inscrição, que é, afinal, sugestão de legitimação por apelo expresso à tradição (mesmo se em alguns casos a inscrição surge agora desfigurada pela queda e falta definitiva de parte das letras). Mas, claro, palácios, ainda e sempre como edifícios que, entre a ressonância conotativa, a localização no centro urbano, a volumetria e o aspecto arquitectónico, apontam simbologias idealizadas para afirmação da superioridade que tem de distinguir os lugares (e os altares) do poder.
Sucede, porém, que no decurso dos mesmos quarenta anos, a pressão da vertiginosa transformação das necessidades da Justiça conduziu a que, de par com esses sítios e lugares de um tempo perdido, se viessem a instalar tribunais em inimagináveis apartamentos T3, providos de pequena casa de banho e kitchenette, metidos em prédios de habitação situados nas periferias urbanas.
Ora, o surrealismo da coexistência de instalações que, por excesso, talvez já não devessem existir e de instalações que, por defeito, talvez nunca devessem ter existido serve, sobretudo, para ilustrar o que foi a longa ausência de uma política governativa assente em ideias, critérios funcionais e regras para a concepção, planeamento e gestão do vasto, muito valioso e nem sequer completamente identificado património confiado aos serviços da Justiça.
Na reforma orgânica de 2000, que arredou a lógica organizativa de 1972, o Ministério foi dotado de instrumentos institucionais, como o Instituto de Gestão Patrimonial e Financeira da Justiça, pensados para recensear esse património, avaliar a sua (in)utilidade e preparar o seu reaproveitamento. Mas, muito para além disso, esses novos instrumentos deveriam servir para começar já a antever e configurar as instalações (físicas e virtuais) apropriadas para a Justiça que se haverá de fazer em 2020 e em 2050 e que, estimo, já não vão ter de ser nem a Domvs Iustitiae nem aqueles disparatados apartamentos."
in DN Online
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