Luís Eloy Azevedo
Procurador da República - Círculo Judicial de Oeiras
"De comentadores a jornalistas, de políticos a advogados, muitas opiniões têm sido emitidas sobre o que deve ser o perfil do próximo procurador-geral da República. A indesejada fragilização do actual procurador-geral da Republica, cujas complexas causas, próprias e alheias, internas e externas, não incumbe aqui analisar, provocou que a meses de terminar o mandato todos estejam a pensar na figura do futuro titular do cargo.
O mínimo que se pode dizer é que existem grandes dificuldades para quem escolhe e espera uma árdua tarefa para o escolhido.
O ex-presidente da República, dr. Jorge Sampaio, teve uma sábia percepção dessas dificuldades ao enunciá-la como "a escolha mais difícil" que deixava ao seu sucessor.
De facto, as grandes dificuldades dessa escolha resultam para o poder político de um facto óbvio, mas pouco enunciado: o poder politico desconhece completamente o que é a magistratura e, até mais importante do que isso, desconhece completamente quem são, realmente, os magistrados entre os quais tem de escolher (vamos dar aqui de barato que o poder político não se inclinará para a desajustada solução de escolher um não magistrado).
Tratando-se de um cargo unipessoal, as qualidades pessoais do escolhido são, certamente, essenciais para o exercício do cargo. Ora, a nosso ver, o aspecto técnico-jurídico é apenas um de entre muitos aspectos fundamentais para o bom desempenho do cargo. De facto, parece assente que não será bom ter alguém a quem sobeje qualidade técnica e falte capacidade judiciária e qualidade comunicacional.
Embora tal possa chocar algumas pessoas, mesmo magistrados, a verdade é que a capacidade judiciária, um sólido encorpamento judiciário, é fundamental para um bom desempenho como procurador-geral da República.
Conhecer o Ministério Público, ter uma ideia mobilizadora conhecida para o Ministério Público e ter um projecto de renovação consistente é bem fundamental. Diria ser pelo menos tão fundamental como a capacidade técnica. O que torna a aposta ainda mais difícil.
Ora, como alguém que se debruça sobre a magistratura portuguesa há vários anos e que conhece o sistema por dentro, parece-me que as escolhas (e as aceitações) para o perfil certo são muito escassas ou, até pior do que isso, são praticamente inexistentes.
Na verdade, a magistratura portuguesa tem tradicionalmente pouco debate interno e despolitizou-se, deixou de intervir na pólis (e quando o faz traduz normalmente inconfessados interesses narcísicos ou corporativo-sindicais).
A nossa magistratura, com os seus perfis mínimos de intervenção, reduz a sua visibilidade externa e comprime consideravelmente as margens de sucesso da escolha.
E, a este nível será interessante analisar comparativamente o rasto político e pessoal do congénere espanhol, o fiscal-general Cândido-Conde Pumpido, o tipo de obra publicada previamente (colorida, variada e activa) e de intervenção sócio-judiciária anterior ao actual desempenho.
Por outro lado, uma árdua tarefa espera o futuro procurador-geral da República.
Desde logo, precisa de ter capacidade para conter o poder político para propósitos inconfessados de acabar com a autonomia da instituição e reduzir o seu peso relativo (ver o triste episódio de pretender passar o procurador-geral da República de sexto para 13.º no protocolo de Estado).
E ao mesmo tempo ter capacidade de ver e mudar o que não funcionou. De facto, na nossa opinião, o Ministério Público português, fruto de um determinado passado histórico, judicializou-se no mau sentido (usado este termo no sentido de reprodução de um modelo copiado da magistratura judicial). Pensou-se, na verdade, que a judicialização seria a melhor forma de proteger o Ministério Público das influências do Executivo. Mas os velhos erros do passado não evitaram novos erros no presente: a essa luz, criou-se uma estrutura com pouca mobilidade (a par do juiz natural criou-se um quase Ministério Público natural), com colocações de magistrados erráticas, sem levar em conta as capacidades individuais (acentuadas por um recrutamento onde se deu preferência ao número em relação à qualidade, convivendo, hoje, o muito bom e o muito mau em patamares igualitários e um mecanismo de progressão na carreira ancilosado), com uma estrutura hierárquica pouco clara (com equiparações à judicatura sem lógica qualitativa) e um diminuto papel uniformizador (com a completa paralisação das estruturas hierárquicas intermédias, reconduzidas a entidades de controlo meramente burocrático, sem qualquer papel para evitar a balcanização da aplicação da lei). Ou seja, o nosso Ministério Público perdeu autonomia de projecto, agilidade, organização, espírito de equipa, laços hierárquicos estreitos e isolou-se da comunidade.
Por outro lado, temos um Ministério Público com autonomia, mas sem uma correspondente responsabilização comunitária. Ou seja, a sua judicialização, quer através da formação, quer através da blindagem do seu Estatuto, ajudou a fazer esquecer algumas das características que deveriam estar presentes na magistratura do Ministério Público, como a capacidade de iniciativa e a inquietude para o cumprimento integral de um projecto de cidadania plena.
Para consagrar um Ministério Público verdadeiramente de iniciativa comprometido com a qualidade de vida e a globalidade dos interesses sociais, seria também necessário romper com a sua conotação predominante de perseguidor penal e com uma perspectiva minguada de intervenção restringida ao processo judicial.
Em suma: para ter êxito, interna e externamente, espera o futuro procurador-geral uma tarefa ciclópica.
Diz-se que as personagens de Beckett carregam em si todo o peso do mundo.
Boa sorte para quem escolhe e para o escolhido. "
in Diário de Notícias
Procurador da República - Círculo Judicial de Oeiras
"De comentadores a jornalistas, de políticos a advogados, muitas opiniões têm sido emitidas sobre o que deve ser o perfil do próximo procurador-geral da República. A indesejada fragilização do actual procurador-geral da Republica, cujas complexas causas, próprias e alheias, internas e externas, não incumbe aqui analisar, provocou que a meses de terminar o mandato todos estejam a pensar na figura do futuro titular do cargo.
O mínimo que se pode dizer é que existem grandes dificuldades para quem escolhe e espera uma árdua tarefa para o escolhido.
O ex-presidente da República, dr. Jorge Sampaio, teve uma sábia percepção dessas dificuldades ao enunciá-la como "a escolha mais difícil" que deixava ao seu sucessor.
De facto, as grandes dificuldades dessa escolha resultam para o poder político de um facto óbvio, mas pouco enunciado: o poder politico desconhece completamente o que é a magistratura e, até mais importante do que isso, desconhece completamente quem são, realmente, os magistrados entre os quais tem de escolher (vamos dar aqui de barato que o poder político não se inclinará para a desajustada solução de escolher um não magistrado).
Tratando-se de um cargo unipessoal, as qualidades pessoais do escolhido são, certamente, essenciais para o exercício do cargo. Ora, a nosso ver, o aspecto técnico-jurídico é apenas um de entre muitos aspectos fundamentais para o bom desempenho do cargo. De facto, parece assente que não será bom ter alguém a quem sobeje qualidade técnica e falte capacidade judiciária e qualidade comunicacional.
Embora tal possa chocar algumas pessoas, mesmo magistrados, a verdade é que a capacidade judiciária, um sólido encorpamento judiciário, é fundamental para um bom desempenho como procurador-geral da República.
Conhecer o Ministério Público, ter uma ideia mobilizadora conhecida para o Ministério Público e ter um projecto de renovação consistente é bem fundamental. Diria ser pelo menos tão fundamental como a capacidade técnica. O que torna a aposta ainda mais difícil.
Ora, como alguém que se debruça sobre a magistratura portuguesa há vários anos e que conhece o sistema por dentro, parece-me que as escolhas (e as aceitações) para o perfil certo são muito escassas ou, até pior do que isso, são praticamente inexistentes.
Na verdade, a magistratura portuguesa tem tradicionalmente pouco debate interno e despolitizou-se, deixou de intervir na pólis (e quando o faz traduz normalmente inconfessados interesses narcísicos ou corporativo-sindicais).
A nossa magistratura, com os seus perfis mínimos de intervenção, reduz a sua visibilidade externa e comprime consideravelmente as margens de sucesso da escolha.
E, a este nível será interessante analisar comparativamente o rasto político e pessoal do congénere espanhol, o fiscal-general Cândido-Conde Pumpido, o tipo de obra publicada previamente (colorida, variada e activa) e de intervenção sócio-judiciária anterior ao actual desempenho.
Por outro lado, uma árdua tarefa espera o futuro procurador-geral da República.
Desde logo, precisa de ter capacidade para conter o poder político para propósitos inconfessados de acabar com a autonomia da instituição e reduzir o seu peso relativo (ver o triste episódio de pretender passar o procurador-geral da República de sexto para 13.º no protocolo de Estado).
E ao mesmo tempo ter capacidade de ver e mudar o que não funcionou. De facto, na nossa opinião, o Ministério Público português, fruto de um determinado passado histórico, judicializou-se no mau sentido (usado este termo no sentido de reprodução de um modelo copiado da magistratura judicial). Pensou-se, na verdade, que a judicialização seria a melhor forma de proteger o Ministério Público das influências do Executivo. Mas os velhos erros do passado não evitaram novos erros no presente: a essa luz, criou-se uma estrutura com pouca mobilidade (a par do juiz natural criou-se um quase Ministério Público natural), com colocações de magistrados erráticas, sem levar em conta as capacidades individuais (acentuadas por um recrutamento onde se deu preferência ao número em relação à qualidade, convivendo, hoje, o muito bom e o muito mau em patamares igualitários e um mecanismo de progressão na carreira ancilosado), com uma estrutura hierárquica pouco clara (com equiparações à judicatura sem lógica qualitativa) e um diminuto papel uniformizador (com a completa paralisação das estruturas hierárquicas intermédias, reconduzidas a entidades de controlo meramente burocrático, sem qualquer papel para evitar a balcanização da aplicação da lei). Ou seja, o nosso Ministério Público perdeu autonomia de projecto, agilidade, organização, espírito de equipa, laços hierárquicos estreitos e isolou-se da comunidade.
Por outro lado, temos um Ministério Público com autonomia, mas sem uma correspondente responsabilização comunitária. Ou seja, a sua judicialização, quer através da formação, quer através da blindagem do seu Estatuto, ajudou a fazer esquecer algumas das características que deveriam estar presentes na magistratura do Ministério Público, como a capacidade de iniciativa e a inquietude para o cumprimento integral de um projecto de cidadania plena.
Para consagrar um Ministério Público verdadeiramente de iniciativa comprometido com a qualidade de vida e a globalidade dos interesses sociais, seria também necessário romper com a sua conotação predominante de perseguidor penal e com uma perspectiva minguada de intervenção restringida ao processo judicial.
Em suma: para ter êxito, interna e externamente, espera o futuro procurador-geral uma tarefa ciclópica.
Diz-se que as personagens de Beckett carregam em si todo o peso do mundo.
Boa sorte para quem escolhe e para o escolhido. "
in Diário de Notícias
2 comentários:
" despolitizou-se, deixou de intervir na pólis"
" convivendo, hoje, o muito bom e o muito mau em patamares igualitários"
Se o MP é uma estrutura hierarquizada e a lei igual para todos acho que é bom que se confirme a "despolitização" e que o sistema de escolhas funcione com base no mérito traduzido pelos resultados obtidos...Quanto aos muito maus devem ir exercer outra actividade...na privada!Será assim tão difícil?
Parece realmente ser "assim tão difícil"!...
Os interesses políticos, hoje mais do que nunca, corroem o que resta das estruturas do MP.
Os "muito maus" têm vindo a ter possibilidade de o ser simplesmente porque outros ainda piores já lá estão há muito mais tempo. Os fracos protegem-se em conluio contra os fortes, competentes e rectos. Este é o curso nornal da história de qualquer organização em Portugal, daí que também o MP não seja excepção.
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