sábado, outubro 28, 2006

Xerifado


Eduardo Dâmaso
(Editorial Diário de Notícias)

"Os números revelados esta semana no Parlamento pelo Governo, sobre a utilização da arma de fogo pelas polícias nos últimos quatro anos, são preocupantes. O ministro António Costa considerou-os "excepcionais" e, na verdade, são-no em toda a frieza estatística da proporção dos mais de seis mil tiros para as 18 mortes. Nesta matéria, porém, não há lugar para exercícios puramente aritméticos. Estamos perante demasiados disparos, demasiados mortos, demasiados feridos. As polícias voltam a disparar com facilidade excessiva e matam mais do que forças de segurança de países com taxas de criminalidade mais altas.

Neste debate não confundimos os planos: a polícia deve ser fortalecida, defendida e encorajada no seu papel de garante da segurança da comunidade. Mas isso não significa que ela deve ter luz verde para tudo ou que as suas obrigação perante a lei são, no fundo, decorativas. O exercício da função policial é balizado por leis que devem ser escrupulosamente cumpridas, sob pena de estarmos a aceitar uma insuportável relativização das regras democráticas a partir do topo. De estarmos a aceitar a pulsão mais primária que também está em todos nós e gostaria de ter um Dirty Harry, essa famosa criação de Clint Eastwood, em cada esquina. Não reconhecer isto é admitir uma deplorável instrumentalização de um importante corpo do Estado e do valor essencial que é a segurança na luta puramente política e ideológica.

Uma das consequências mais perversas do que se tem passado com os casos recentes de disparos mortais em circunstâncias não esclarecidas está, aliás, concretizada na inaceitável dispensabilidade para que se vê empurrada a Inspecção-Geral da Administração Interna (IGAI). Em corajosas declarações que faz nesta edição do DN, o magistrado Clemente Lima põe o dedo na ferida e denuncia o ostracismo a que este importante órgão fiscalizador está a ser votado, uma velha aspiração dos sectores mais fundamentalistas das polícias tuteladas pelo MAI. A criação do IGAI foi uma das mais importantes medidas do então ministro da Administração Interna, Alberto Costa, no sentido da democratização de forças de segurança ainda imbuídas de uma mentalidade e de uma agressividade tributárias dos tempos do Estado Novo. Os resultados foram muito positivos porque à sua criação correspondeu o adequado investimento em meios humanos e uma liderança forte de Rodrigues Maximiano. Passou a haver menos disparos, menos mortes, mais formação, mais segurança para todos. Seria trágico se todo esse trabalho fosse pura e simplesmente para o lixo em nome de um novo xerifado."

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